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Para Vyacheslav Zadorenko, a guerra não é só a defesa da pátria ucraniana. Transformou-se numa questão pessoal, com ajustes de contas no horizonte. Tem a cabeça a prémio na terra onde tinha a sua casa e onde era presidente da câmara até ao início da ocupação russa. Kozacha Lopan, 45 km a norte de Kharkiv, é a última localidade ucraniana antes da fronteira. Na administração local, onde antes podia estar emoldurado o seu retrato de autarca, está agora afixado um papel com o seu rosto e um preço: “Os russos pagam 1 milhão de rublos de recompensa a quem me apanhar”. Um milhão de rublos são cerca de 13.600 euros.
O presidente da câmara de Dergachiv, cidade que abrange administrativamente a povoação de Kozacha Lopan, sabe que é procurado porque tem havido ucranianos a conseguir fugir da localidade ocupada, que lhe descreveram a situação. O caso mais recente é o de uma diretora municipal, que saiu de Kozacha Lopan no fim da semana passada, tendo o seu carro sido alvejado pelo caminho.
A diretora está já a passar esta informação da recompensa e outras aos serviços secretos, que reúnem, assim, elementos sobre a atuação do inimigo, mas também sobre os ucranianos que estão a colaborar ativamente com os ocupantes — que se arriscam depois a ser julgados por traição, se e quando a Ucrânia recuperar o controlo desta localidade.
“Se eu o apanhar, mato-o pessoalmente com um tiro”
O caso mais flagrante de um alegado traidor será o do administrador provisório nomeado pelos russos para gerir “o território libertado do distrito de Kharkiv”, que abrange esta localidade na fronteira. Trata-se de um homem que foi, até 2014, chefe-adjunto da polícia de Dergachiv, e que toda a cidade conhece. Depois passou para Lugansk, juntou-se aos separatistas pró-russos e voltou agora ao lado do inimigo, que está a bombardear e ocupar a região onde vivia.
Além de o ex-chefe da polícia ter ficado com o cargo que era de Vyacheslav Zadorenko, ficou também com a casa do presidente da câmara em Kozacha Lopan. O autarca não está disposto a perdoar:
O que vai acontecer ao administrador nomeado pelos russos se a Ucrânia recuperar o território?
Se eu o apanhar, mato-o pessoalmente com um tiro.
Não o levará a um tribunal?
Não o levaremos para a prisão. Os nossos militares tratam os prisioneiros de forma humana, em comparação com a forma como tratam os nossos. Nós transferimo-los para os russos e lá eles contam que bombardeiam cidades pacíficas e que ninguém os tortura.
A esta promessa de vingança de Vyacheslav Zadorenko não será alheio o facto de os russos terem perseguido um membro da sua família, que pede para não ser identificado, uma vez que permanece numa cave na zona ocupada: “Foi interrogado, humilhado, colocaram-no de joelhos, encostaram-lhe a espingarda à cabeça, tiraram-lhe todos os documentos”.
Desde que a invasão começou, também já teve de enterrar uma cunhada, mulher do irmão, alvejada pelos russos quando saía de Bucha (perto de Kiev) numa coluna humanitária que supostamente tinham autorizado. O irmão e a sobrinha, que ficaram feridos na sequência desse ataque, refugiaram-se noutro país europeu, longe da guerra.
Tudo o que Vyacheslav perdeu desde o início da ocupação ajudará a alimentar esta sua ira, ao ponto de não ter problemas em admitir que está disposto a matar o seu sucessor russo que lhe ocupou a residência: “A minha casa foi logo vandalizada, o meu negócio de família foi-me retirado, portanto eu agora sou obrigado a viver em Dergachiv, numa casa emprestada”.
Torturas na estação de comboios e ucranianos nus na neve, a responder sobre nazis
O medo, a confiscação dos telemóveis ou a falta de rede dificultam bastante a comunicação entre os ucranianos que estão em localidades ocupadas pelos russos e o resto do país. Daí a importância do testemunho da diretora municipal que fugiu de Kozacha Lopan debaixo de fogo, também para se perceber como os russos estão a tratar os ucranianos naquela localidade de fronteira.
“Na cave da estação de comboios, eles instalaram um campo de tortura: cortam orelhas; partem coxas; arrancam as unhas às mulheres; colocam espuma de construção [poliuretano] dentro do ânus dos homens; enfim, também dão choques elétricos nos genitais das pessoas”, descreve Vyacheslav Zadorenko, com base nas informações e testemunhos que foi recolhendo.
Também relata casos em que os russos colocavam sacos na cabeça dos ucranianos e os deixavam nus de mãos atadas e joelhos na neve, durante três horas, enquanto perguntavam pelo paradeiro dos nazis. “Eles acreditam profundamente que há nazis e perguntam por eles. Os nossos até pediram: ‘Pelo menos mostrem-nos a aparência que eles têm’.”
A outros ucranianos que queriam sair de Kozacha Lopan para evitar os bombardeamentos foi dada como única opção atravessar a fronteira para a Rússia e foram depois transferidos para zonas remotas, como a Sibéria, de onde muitos não conseguem sair. “Aqueles que tinham consigo pequenas possibilidades financeiras saíram da Rússia para a Letónia e outros países da Europa e estão a tentar regressar para a Ucrânia. Mas quem saiu sem 1 centavo e sem documentos tem de ficar lá.”
As vendas forçadas de casas com notários e as investigações por traição
O inimigo também tenta identificar as pessoas mais ricas que ficaram, para os espoliar de casas, propriedades e carros. “Trazem notários do Donbass e obrigam as pessoas a assinar escrituras para colocarem as propriedades em nome de pessoas de Donetsk. Também batem nos agricultores para roubar todos os cereais.” Metade das fábricas de Dergachiv foram destruídas ou ocupadas, incluindo uma de salsichas, que foram distribuídas pelos militares russos, outra de filtros para cigarros e várias de móveis.
Além dos ricos, entre os alvos de violência dos russos encontram-se ainda pessoas que tinham ligações à administração ucraniana, como um deputado da assembleia local. “Prenderam-no e agrediram-no ao longo de quatro dias. Depois capturaram o filho dele e também o agrediram. A vida dos funcionários públicos que têm acesso a informação confidencial e a dos seus familiares está ainda mais em risco”, conta o presidente da câmara.
Os ucranianos que continuam a viver nas terras ocupadas não enfrentam só o perigo de serem alvo de violência e tortura dos russos. Muitos estão a ser alvo também de investigações dos próprios serviços secretos ucranianos. As vilas e aldeias podem ser libertadas das forças ocupantes, mas muitos dos residentes continuarão presos a uma teia de denúncias e intrigas de vizinhos e arriscam-se a enfrentar um julgamento por traição.
Vyacheslav Zadorenko está especialmente preocupado com o destino da chefe da comunidade (uma espécie de presidente da junta) de Kozacha Lopan. “Ela aguentou até à última. É uma mulher patriota. Tirava as bandeiras russas e colocava as bandeiras ucranianas, mas foi humilhada. Estava moralmente esmagada e exausta, mas aguentou até eles terem nomeado o novo chefe de comunidade. Neste momento, ela encontra-se com toda a família no território ocupado, não sai de casa, não contacta com ninguém. Ainda por cima, agora ‘os nossos’ acusam-na de traição ao Estado, mas nós vamos todos juntos salvá-la.”
O autarca explica que os serviços de segurança ucranianos abrem processos contra todos os funcionários públicos que trabalham para o Estado e que se encontram em territórios ocupados, e só depois investigam: “Se não colaboraram nem deram informações acerca das posições dos militares ucranianos, o processo criminal é encerrado”.
O próprio Vyacheslav já foi considerado suspeito de traição e interrogado pelos serviços secretos, por ter entrado nos territórios ocupados, de forma clandestina, para perceber o ponto de situação, entregar comida e tentar (sem sucesso) resgatar o seu familiar. Numa dessas incursões, enquanto conduzia por atalhos, viu sair de uma curva uma coluna militar russa. Fez pisca, parou numa aldeia, percebeu que os inimigos estavam a tentar bloquear a saída e teve de fugir por caminhos de mato, em grande sobressalto.
Depois do interrogatório, os serviços de segurança libertaram-no e hoje já colaboram ativamente com ele, fornecendo armas e equipamento para ajudar a defender a cidade de Derhachi. O próprio presidente da câmara não tinha experiência militar, mas diz que a ganhou agora, juntando um grupo de veteranos locais que combateram no Donbass em 2014 e 2015: “Criámos um destacamento de guerrilha e estamos todos armados, temos drones e etc., para trabalhar com as nossas forças armadas. Os russos fogem quando começam a ser atacados, largam as armas e abandonam o equipamento para salvarem a sua pele. Os soldados ucranianos mantêm-se corajosamente nas posições, sem darem um único passo atrás”.
O telefonema do lado russo horas antes de começar a invasão
Nesta terra vivem muitos ucranianos com familiares na Rússia e alguns têm mesmo vizinhos russos do outro lado dos quintais, que são atravessados pela fronteira. Já em 2014 se tinham preparado para o confronto, quando começou a guerra por Lugansk e Donetsk, 350 km mais a sul daqui. Enquanto os russos concentravam militares e armamento na fronteira, do lado ucraniano cavaram-se trincheiras, prepararam-se abrigos e minaram-se caminhos subterrâneos. Não chegou a haver confronto nem ocupação em Kozacha Lopan, mas a proximidade em relação ao país vizinho começou a esboroar-se nessa altura para uma parte significativa da população que antes pudesse ser pró-russa. “Eles já mostravam aos russos que não devem entrar aqui.”
Agora, em fevereiro de 2022, à meia-noite do dia em que começou a invasão, o presidente da câmara recebeu uma chamada do lado russo a avisá-lo de que estava a ser colocado equipamento bélico a 3 km da fronteira, com rockets prontos a serem disparados. Aconselharam-no a evacuar as povoações. O autarca não queria acreditar que os russos fossem fazer um ataque deste género, achou que era só para intimidar e exercer pressão psicológica, mas, mesmo assim, decidiu preparar as malas com bens essenciais, medicamentos e documentos para estar pronto a fugir.
Às 5 da manhã, quando começaram os ataques, sentia o barulho dos rockets a passar por cima de sua casa em direção a Kharkiv. “Em primeiro lugar, eles atacaram infraestruturas militares, os centros energéticos, de gás, os postes elétricos. Ficámos imediatamente sem luz, houve um apagão total.”
Decidiu não arriscar ficar e saiu de carro em direção a Kharkiv, que estava a ser bombardeada, numa coluna de civis com os seus vizinhos que também fugiam da guerra. No caminho cruzaram-se com viaturas das forças armadas ucranianas: 500 militares já estavam há uma semana estrategicamente colocados junto a esta fronteira, para travarem o eventual avanço de uma coluna militar russa.
O inimigo conseguiu ocupar Kozacha Lopan, instalando aí a sua base logística, mas não avançou em direção a Dergachiv. O caminho entre as duas localidades transformou-se numa “zona cinzenta”, perigosa por ser atravessada por militares dos dois lados, sem que nenhum dos lados a controle totalmente. Durante algumas semanas da ocupação, havia quatro voluntários ucranianos autorizados pelos russos a sair dos territórios ocupados para ir buscar comida a Dergachiv, para distribuir à população, mas essas deslocações foram interditas nos últimos dias, com a intensificação da ofensiva ucraniana para recuperar territórios.
Sem saber o que virá a ser descoberto nos territórios que permanecem sob controlo russo, o presidente da câmara estima que tenham morrido 200 pessoas na área de Dergachiv. Viviam nesta cidade e arredores 45 mil pessoas; agora não restarão mais de 7 mil. As outras fugiram ou continuam nos territórios ocupados, onde não é possível saber quantos ucranianos permanecem.
O presidente da câmara ainda tem quatro povoações ocupadas, mas conseguiu libertar outras quatro, de onde retirou as bandeiras russas, para voltar a erguer as ucranianas, com uma sensação de grande satisfação: “Graças ao apoio dado pelos países europeus e pelos EUA, tenho a certeza de que a vitória será da Ucrânia e iremos recuperar o nosso território. Tal como os soldados que estão em Kharkiv em relação ao resto do país, também a Ucrânia é hoje como um escudo para a Europa”.