Era o nome que soava mais alto no cartaz e o grande motivo para a enchente do primeiro dia do festival Primavera Sound: Kendrick Lamar. O concerto, marcado para as 00h20, era o único alento de quem olhava para o céu com desconfiança e pedia a benevolência de São Pedro. Já o palco tinha sido deixado por Baby Keem e centenas de pessoas aguardavam pelo rapper-celebridade quando a ameaça se concretizou: começou a chover copiosamente.
Poucos arredaram pé. Grupos de amigos dividiam parkas ao centímetro, desconhecidos deixavam-se ficar uns segundos sob guarda-chuvas alheios, pingos grossos de água atingiam cabeças desprotegidas. Nas primeiras filas, reinava a entreajuda dos contagiados pelo otimismo de quem está prestes a ver uma estrela maior do rap mundial. Mas um pensamento pairava qual assombro: estaremos prestes a assistir a mais um dilúvio como o do inesquecível concerto de Nick Cave em 2018, ali mesmo?
A escassos minutos da hora esperada, o tempo deu tréguas ao mar de fãs já encharcados. Ei-lo: Kendrick Lamar a romper o palco ao som de “N95”, canção do último álbum editado no ano passado, Mr. Morale & the Big Steppers. “Hello, new world, all the boys and girls / I got some true stories to tell”.
Finda a explosão inicial, foi um princípio morno para quem sabe o que a casa gasta — isto é, o que Lamar pode dar. Quem o viu em 2014, no NOS Primavera Sound, então estrela em ascenção (havia lançado apenas o álbum Good Kid, m.A.A.d City, dois anos antes), ou, mais tarde, em 2016, no Super Bock Super Rock já com To Pimp a Butterfly e a aclamação inequívoca da crítica e do público no regaço, esperava porventura mais do espetáculo desta quarta-feira: mais pujança, uma banda em palco, um concerto absolutamente apoteótico.
Não foi isso que aconteceu. O rapper de Compton, bairro de Los Angeles em que cresceu, que se tornou numa das vozes de consciência política nos Estados Unidos, e que foi galardoado com um Pulitzer para a música em 2018, não perdeu o carisma, mas está diferente. Menos efusivo. Tal como havia acontecido no concerto deste mesmo festival em Barcelona há poucos dias, Kendrick Lamar surgiu sozinho em palco. Colocou-se à frente de uma enorme cortina (foi sugerido na comunicação social espanhola aquando do espetáculo em Barcelona que poderia haver uma banda atrás do pano, mas, no Porto, da segunda fila não foi possível verificá-lo). Ocasionalmente, o cantor foi acompanhado por meia dúzia de bailarinos em palco, sem grande aparato. Em nenhum momento do espetáculo se deixou fotografar pela imprensa.
Nada disso retirou Kendrick Lamar do trono que ocupa como um dos maiores artistas do seu tempo. Ao longo das quase 1h30 de concerto em que manteve a área do palco Porto à pinha, o artista foi desfilando êxitos que o público foi cantando a plenos pulmões, como ‘m.A.A.d City’ ou ‘Bitch, Don’t Kill My Vibe’, com uma predileção por temas de “Mr. Morale & The Big Steppers”.
Ouvimo-lo entoar “Element”, e a questionar repetidamente: “Alguém está apaixonado neste momento?”. Com inexplicáveis pausas entre canções, foi medindo o pulso aos fiéis percorrendo temas como “ADHD”, “King Kunta”, “SwimmingPools (Drank)” ou “WorldwideSteppers”. Não esqueceu “Loyalty”, “PurpleHearts”, “DNA”, “RichSpirit”, “Count Me Out” ou o hino que é “Humble”, em que acabou praticamente ajoelhado perante os que o ouviam e acompanhavam.
A chuva foi voltando e abalando, sem levar a melhor sob quem estoicamente não abandonava o recinto. “É uma ocasião especial, sabiam? Passou muito tempo desde que estive neste palco. Não tenho isto como garantido. Vocês ficaram à chuva e tudo”, constatou o cantor. “Os fãs mais dedicados e leais do mundo estão aqui”.
Houve ainda tempo para “Money Trees”, “Die Hard” e ‘Family Ties’, dueto com o primo Baby Keem, que voltou a subir ao palco onde tinha atuado já horas antes. No fim, Kendrick Lamar escolheu terminar com “Alright” e Savior” — e uma nova ameaça de chuva à espreita. “Podiam estar em qualquer parte do mundo. Adoro-vos e voltarei”, prometeu.
Antes da tempestade houve sol
Antes do dilúvio noturno, um clima tropical pairava no ar quando abriu a décima edição do Primavera Sound Porto. Não foi uma abertura fácil. Esperou-se 20 minutos para lá da hora apontada no relógio e a impaciência a tomar conta da fila que se ia adensando Circunvalação abaixo. Chegou-se a temer que isso fizesse descambar os horários dos concertos, mas Beatriz Pessoa, indiferente a atrasos, deu o pontapé de saída do festival pouco depois das 17h45.
Acelerámos o passo para irmos ao encontro da rapariga que se diz “Dona da Verdade”. Ela, sorridente, cantou-nos de mansinho “vai ver o mar e vê como és pequeno” (“Passou Pequeno”) e nós pusemo-nos a imaginar o mar que se escondia por trás do palco Porto., uma das principais novidades desta edição. De facto, a estrutura imponente fez-nos parecer bem pequeninos cá de baixo, da plateia entapetada de trevos.
“Ô sorte”, diria o mestre Wilson das Neves lá do seu Rio Janeiro, cidade para onde Beatriz voou para gravar “Prazer Prazer” (2023), o seu segundo álbum de originais. “A minha música é muito inspirada na música brasileira”, explicou, trazendo Gal Costa e Rita Lee para palco, com um medley de homenagem feito de “Vaca Sagrada” e “Lança Perfume”.
A certo ponto do concerto, a intékae rprete que colaborou com Marcelo Camelo na produção do disco, considerou simular um “momento Rihanna” para anunciar a sua gravidez, mas fê-lo antes com doçura. A plateia deu-lhe amor e até os fãs de Kendrick Lamar, que se faziam identificar com todo o tipo de vestimenta K-Dot nas primeiras filas, cantaram as letras de Beatriz, cheias de mar.
A atuação foi competente, mas algo tépida, contrastando com a entrada a todo o gás de Georgia no palco que outrora fora NOS e este ano virou Vodafone. À primeira música (“Started Out”), a amiga e ex-baterista de Kae Tempest já tinha agarrado o público pelo colarinho, que se foi aglomerando na relva com curiosidade. Até o sol deixou de se esconder no céu por breves minutos, furando as nuvens para ver o que ali se passava.
O que se passou, vimo-lo com os nossos olhos, foi uma performance de uma londrina que já não tocava há 10 anos em Portugal e que estava com ganas de fazer a festa. Desdobrou-se na bateria eletrónica e nos teclados, enquanto das colunas saíam uns beats de matriz pop que juntavam os anos 90, Rina Sawayama, Dj Tiesto e a mítica “Samba de Janeiro” numa sonoridade só. Confuso? Sim, sem dúvida. Mas no final das contas, a fórmula lá resultou. Tirando uma ou outra passagem mais sonhadora pelo último álbum “Ir’s Euphoric”, o público respondeu a Georgia abanando o corpo e a energia manteve-se quase sempre assim, em cima, em cima, em cima até à derradeira cover “Running Up That Hill”, de Kate Bush.
A senhora que se seguiu, não por acaso fã confessa de Bush, foi Alison Goldfrapp que, emancipada do duo com William Gregory, propôs-se a inventar o amor no seu primeiro álbum a solo, lançado no mês passado. Foi precisamente com “Love invention” que entrou em palco, 10 minutos de atraso em cima de si e umas purpurinas azuis absolutamente clubbing que fariam inveja a qualquer ave exótica.
A onda revivalista do synth pop e da disco marca esta nova fase da carreira de Alison, ela que já mergulhou nestas águas noutros tempos, com trabalhos como Black Cherry (2003). Daí foi buscar “Train”, aquela música que “vocês conhecem”, disse imperturbável, e de “Head First” (2010) resgatou “Rocket” e uma guitarra-teclado (keytar) do tempo em que as permanentes eram moda e o Prince fulminava tops de vendas. A atuação saltou entre presente e passado, entre Goldfrapp com e sem Alison no prefixo, numa viagem que nos fez orbitar entre Jessie Ware e Kylie Minogue.
Na expressão, Alison manteve a atitude blasé do início ao fim, voz arrastada como se tudo fosse um fastio tremendo. Na verdade, isso faz parte da sedução desta britânica de 57 primaveras, que, pese os seus mais de 30 anos de carreira, ainda mostra vontade de flirtar. No final cantou-nos “Never stop loving”, mandando um “snog” (beijinho) ao público, e “Strict Machine”, outra que todos conhecem e que, duas décadas volvidas, continua a ser malha boa de se dançar.
Baby Keem foi real, mas os The Comet is Coming roçaram o celestial
Saímos de Alison Goldfrapp com vontade de dar uma oportunidade a Holly Humberstone, o novo rebuçado da Gen-Z que em 2022 foi distinguida com o Brit Award de Rising Star. Talvez devido ao encadeamento de concertos ou à sensação de que estávamos perante uma versão recauchutada de Phoebe Bridgers, as dores de Humberstone não se fizeram nossas dores. A isso juntou-se a fome e o plano jantar levou a melhor sobre a britânica.
Se há matéria onde o Primavera Sound é forte é na arte da tainada. 40 propostas de restauração, do tradicional à cadeia de shopping, do fast food ao saudável, da carne pingona na brasa ao puro vegetariano, fazem as delícias de todos os estômagos. Há inclusivamente opções gourmet, como aquela que Vasco Coelho Santos, estrela Michelin do Euskalduna, e Mauricio Ghiglione, estrela argentina do Belos Aires, trouxeram para o festival. No seu Prima, projeto que já vem da edição passada, há um menu de degustação que requer reserva prévia no site do Primavera Sound. O preço por pessoa ronda os €75.
Não seríamos nós a provar o menu de degustação, porque Baby Keem chamou-nos para servir o seu bufete de uma dezena de canções. A estreia do protégée e primo de Kendrick Lamar no Porto foi algo inconstante. Não que tivessem restado dúvidas do talento deste miúdo de Compton, que com 22 anos já tem um Grammy nas estantes lá de casa e que ao flow do rap junta uma voz melodiosa ao ponto de, a espaços, nos fazer lembrar o The Weeknd dos tempos de “House of Balloons” (2011).
Cantou “Pink Panties” e “Killstreaks”, músicas que estão entre as suas favoritas, mas foi “Orange Soda”, “Praise God”, tema em colaboração com Kayne West, e “Family Ties”, gravada com Kendrick Lamar (que uns poucos na plateia ainda esperavam que aparecesse em palco para a interpretar ao lado de Keem) que mais braços fizeram erguer no ar.
Embora a solidez e a tranquilidade em se mostrar sozinho num palco enorme, os intervalos entre músicas demoraram-se para lá do ritmo que um concerto deste género pede. Faltou dinâmica e um certo apelo emocional, o tempero chave que enleva um espetáculo para o patamar de memorável. Até na despedida, Baby Keem foi algo insólito: fitando a multidão em silêncio, como se fosse proferir os dez mandamentos de Moisés ou então a “Range Brothers”, omissa na set list, saiu à francesa com um “I love you” tirado do guião e não do coração.
Por esta altura, já sabíamos que a edição do Primavera Sound de Madrid tinha cancelado os concertos de quinta-feira, dia 8 de junho, dada a tempestade do demo que por lá se instalou. Lemos a notícia com as primeiras pingas da noite a caírem-nos na cabeça, longe de imaginar que acabaríamos este primeiro dia de festival encharcados até aos ossos, com os pés enfiados em lama, onde ao início da tarde havia trevos.
Não houve impermeável que valesse contra tanta chuva, mas os The Comet is Coming conseguiram-nos fazer esquecer o corpo empapado, pondo o sangue a circular com fervor. Este trio hipersónico, comandado por um Shabaka Hutchings endiabrado no saxofone, capaz de extrair improvisações viscerais do mais fino jazz, definitivamente não sabe dar maus concertos. Psicadelismo (os solos de Dan Leavers nas teclas pareciam os de Jimi Hendrix na guitarra), rock, eletrónica, stoner, funk, tudo se mistura na viagem cénica e sónica deste cometa londrino. Que nos venham salvar mais vezes de tempestades e intempéries que nós bem precisamos.
Esta quinta-feira, o Primavera Sound propõe Rosalía, The Mars Volta, Bad Religion, The Murder Capital e Arlo Parks como antídoto para fintar a depressão Óscar e o aviso amarelo decretado pelo IPMA. Os cinco palcos já estarão a funcionar, num recinto que tem mais 4,5 hectares do que o do ano passado e onde se esperam encontrar 45 mil almas melómanas por dia.
Como amontoar esta gente toda sem prejudicar a experiência do espetáculo é uma questão que nos paira na cabeça, nós que já hoje, com o festival a funcionar a meio gás, tivemos dificuldades em entrar no anfiteatro do palco principal. Sim, o Primavera cresceu, quer continuar a crescer e quem ainda tiver aquela ideia romântica das primeiras edições de toalhas na relva, espaço de sobra no verde imenso do Parque da Cidade, terá de desfazer-se dela. No campeonato dos festivais que se querem agigantar, é assim que as coisas funcionam, para o bem e para o mal.