Se acreditarmos que as pessoas só ouvem aquilo que realmente querem ouvir, o primeiro discurso de Boris Johnson como primeiro-ministro britânico poderia ser visto como brilhante. Se num minuto garante que em 99 dias o país vai abandonar a União Europeia, sem ‘ses’ nem ‘mas’ — e quase podemos ouvir as palmas dos que defendem a saída rápida e ‘hard’ da UE, custe o que custar —, a seguir defende que é preciso criar uma nova parceria com “os amigos europeus”, “tão calorosa, próxima e afetuosa quanto possível” — e podemos ver os mais cautelosos a rejubilar com tamanha prudência.
Perante os que profetizam a desgraça com a saída da UE, dá a mão à palmatória e assume que “sim, haverá dificuldades”, mas logo a seguir pisca o olho aos otimistas e garante que, “com energia e aplicação”, os problemas “serão muito menos sérios do que alguns afirmaram” — e que uma saída sem acordo é “uma possibilidade remota”. Lança farpas aos pessimistas e aos que preveem o desastre (“doomsters e gloomsters”, que, dito com sotaque britânico, soa bastante melhor), e apesar de lhes dizer que estão errados, promete que vai ser “o primeiro-ministro de todos os britânicos”.
[“Não substimem este país”. O discurso de Boris Johnson em dois minutos:]
Com um discurso centrado no Brexit — como não podia deixar de ser —, o brilhantismo pode, porém, cair por terra quando se tenta encontrar sumo nas palavras de Boris Johnson. O vigor do seu discurso relembra o de Theresa May, que, quando entrou pela porta do número 10 de Downing Street, também estava certa de que conseguiria levar o Reino Unido para fora da União Europeia. Não aconteceu. Três anos depois, é Boris Johnson quem está cheio de certezas absolutas, quando garante que em 99 dias estará fora do mercado comum. No ar, deixa uma mão cheia de nada, parecendo esquecer-se de que o Brexit e as certezas absolutas já levaram dois primeiros-ministro a irem a Buckingham apresentar a sua renúncia à rainha Isabel II.
A trindade de Boris: europeus e acordos são bem-vindos, o backstop não
Há três novidades no discurso de Boris Johnson, enviados para dentro e para fora do país, para os críticos e para os amigos próximos. Em primeiro lugar, Boris Johnson tranquiliza todos os cidadãos da União Europeia que vivem no Reino Unido — e, numa tentativa de criar proximidade, fala diretamente para esses cidadãos. Olhando-os nos olhos, promete-lhes que não será por opção do seu governo que serão obrigados a abandonar as terras de Sua Majestade. E 3,2 milhões de cidadãos europeus respiram de alívio.
“Digo-o diretamente a vocês: obrigado por contribuírem para a nossa sociedade. Obrigado pela vossa paciência. E posso assegurar-vos que, sob este governo, podem ter certeza absoluta de que terão direito de aqui viver e permanecer.”
Tranquilizados os estrangeiros que fizeram do Reino Unido a sua casa, Boris olha para o seu quintal e deixa clara a sua posição sobre o backstop e sobre os privilégios que traria à Irlanda do Norte: nem pensar. O primeiro-ministro tem um não claro na ponta da língua sobre esta solução que cria uma fronteira sem realmente a criar. O backstop prevê a criação de um território aduaneiro entre UE—Reino Unido, mas que, segundo a solução europeia, cria a fronteira a meio do Mar da Irlanda: Inglaterra, Escócia e País de Gales ficariam fora do mercado comum, mas, na prática, a Irlanda do Norte continuaria dentro.
Brexit. 5 pontos para compreender o impasse provocado por uma fronteira
“Esqueçam o backstop”, diz claramente Boris Johnson. “The buck stops here”, diz o novo primeiro-ministro, recorrendo a uma frase popularizada pelo presidente dos EUA Harry S. Truman e que significa que quem toma decisões tem de aceitar a responsabilidade por elas. Nas entrelinhas, lê-se: digam o que quiserem, mas ,no fim, a decisão é minha e lidarei com as consequências, porque sou o primeiro-ministro. Aliás, a expressão idiomática é usada imediatamente a seguir a Johnson garantir que “assumirá responsabilidade pessoal pela mudança” que quer ver, mesmo estando a cercar-se de uma “grande equipa de homens e mulheres”. E o que Johnson quer ver é o Reino Unido fora da UE. Sem controlos aduaneiros.
Como é que isso se faz sem criar uma fronteira física entre as duas Irlandas — o ponto fundamental que todos recusam? Boris não diz, mas garante que é possível.
“Digo isto aos nossos amigos na Irlanda, e em Bruxelas, e em toda a UE: estou convencido de que podemos fazer um acordo sem controlos na fronteira irlandesa, porque nos recusamos, em qualquer circunstância, a fazer esses controlos e recusamos esse backstop antidemocrático”, clarificou o novo chefe do Executivo.
No seu discurso também há uma novidade dirigida aos amigos europeus, os mesmos com quem quer manter uma relação “tão calorosa, próxima e afetuosa quanto possível”. O Reino Unido está pronto para criar novos acordos comerciais, tão cedo quanto possível. Se depender de Boris Johnson, será antes de se chegar ao centésimo dia.
“Faremos um novo acordo, um acordo melhor que maximizará as oportunidades do Brexit, ao mesmo tempo que nos permitirá desenvolver uma nova e empolgante parceria com a restante Europa, baseada no comércio livre e no apoio mútuo”, esclareceu.
O importante é não esquecer as raízes
Mesmo não tendo sido eleito primeiro-ministro — e Jeremy Corbyn, líder do Partido Trabalhista, não o deixará esquecer isso tão cedo, tendo mesmo, horas antes no Parlamento, sugerido que o país fosse a votos —, Boris Johnson não esquece de onde vem e quem vota no Partido Conservador. Pelo sim, pelo não, as promessas já estão feitas, até porque “os políticos precisam de se lembrar que o povo” é o seu chefe.
“O meu trabalho é tornar as ruas mais seguras — e vamos começar com o aumento de mais 20 mil agentes nas ruas, e que iremos começar a recrutar imediatamente. O meu trabalho é garantir que não tenham de esperar três semanas para ver um médico — e começamos a trabalhar esta semana com 20 novas atualizações hospitalares, garantindo que o dinheiro para o NHS chegue realmente à linha de frente. O meu trabalho é proteger-vos a vocês, aos vossos pais e avós do medo de terem de vender a vossa casa para pagar os custos de cuidados”, prometeu o novo primeiro-ministro.
E continuou: “E assim estou a anunciar — nos degraus de Downing Street — que vamos resolver a crise da assistência social, de uma vez por todas, com um plano claro que preparamos para dar a cada idoso a dignidade e a segurança que merece.” Houve também uma palavra para as crianças e a garantia de que terão “uma excelente educação”, através do aumento do financiamento por aluno nas escolas primárias e secundárias.
As áreas que escolhe como prioritárias, por isso, não surpreendem, sobretudo quando elege os serviços sociais e a educação — duas bandeiras que os tories não podem permitir que sejam arrebatadas pelos trabalhistas.
“E esse é o trabalho que começa imediatamente atrás daquela porta negra”, garantiu, em frente ao número 10 de Downing Street. A fazer fé numa sondagem divulgada esta quarta-feira pelo The Economist, Boris Johnson está no bom caminho para manter uma alta popularidade, já razoável ainda antes do seu primeiro discurso oficial. Quando se comparam vários parâmetros dos últimos primeiros-ministros britânicos no início de funções, Boris Johnson está imparável.
Quando é analisada a capacidade de liderança, surge em quarto lugar. À sua frente, estão John Major (1.º lugar), Theresa May e Tony Blair. Atrás de si, David Cameron (5.º), Margaret Thatcher e Gordon Brown. Quando analisada a honestidade em comparação com a de outros políticos, aparece em terceiro lugar. Só Major e Thatcher o ultrapassam.
Tornar o Reino Unido grandioso de novo
“As pessoas que apostam contra a Grã-Bretanha vão perder as suas camisas”, disse. Até porque é também sem ‘ses’ nem ‘mas’ que Boris Johnson promete devolver a grandiosidade ao Reino Unido. E embora nunca tenha usado o slogan do presidente norte-americano Donald Trump — “Make America great again” —, com as devidas alterações geográficas, a frase feita caía que nem uma luva no espírito patriótico do discurso. “Chegou a hora de agir, de tomar decisões, de ter uma liderança forte e de mudar este país para melhor.”
Boris Johnson sabe que a imagem do Reino Unido sai fragilizada do impasse dos últimos anos e que é preciso apelar não só aos britânicos que recusam abdicar da ideia antiga de um país imperial, mas também dos que, com uma visão mais moderna, querem sentir de novo o orgulho de ver o Reino Unido respeitado como uma grande potência — mais do que alvo de chacota pela própria indecisão.
E como vai o primeiro-ministro operar essa transformação? “Com ruas mais seguras e melhor educação e novas infraestruturas fantásticas de estradas e caminhos-de-ferro e banda larga total em fibra, iremos aumentar o nível em toda a Grã-Bretanha com salários mais elevados, melhor qualidade de vida e maior produtividade.” Os jovens serão proprietários das suas casas e às empresas será dada confiança para investir no Reino Unido, prometeu também.
De criança tímida a político exuberante: Boris Johnson não é uma piada
“É hora de soltarmos o poder produtivo não apenas de Londres e do Sudeste, mas de todos os cantos de Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. O incrível quarteto que está encarnado naquela bandeira vermelha, branca e azul — que juntas são muito mais do que a soma de suas partes, e cuja marca e personalidade política são admiradas e até amadas em todo o mundo”, afirmou o primeiro-ministro.
Para terminar, deixou claro que, ao fim de três anos de dúvidas infundadas, é hora de mudar o caminho, para recuperar “o papel natural e histórico como uma Grã-Bretanha empreendedora, voltada para o exterior e verdadeiramente global, generosa e comprometida” com o mundo.
“Ninguém nos últimos séculos conseguiu apostar contra a coragem e ambição deste país. E não será hoje que conseguirão. Nós, neste governo, trabalharemos para dar a este país a liderança que ele merece, e esse trabalho começa agora.” E foi com estas palavras que Boris Johnson terminou o seu primeiro discurso oficial como primeiro-ministro do Reino Unido.
Os próximos 99 dias dirão se o trabalho por trás da porta preta correu tão bem quanto o otimismo no discurso fez crer. Para já, os britânicos receberam do primeiro-ministro uma espécie de cartão, ao jeito daqueles que quem vai casar envia aos seus convidados. Diz apenas: “Save the date: 31 de outubro.” O dress code fica para mais tarde, consoante seja festa ou funeral.