O Chega ainda mantém em aberto a possibilidade de suscitar a abertura de um procedimento criminal ao Presidente da República pelas declarações sobre a reparação às ex-colónias, mas a iniciativa está condenada ao fracasso. O partido de André Ventura até tem deputados suficientes para abrir um processo contra o chefe de Estado (é necessário um quinto do Parlamento), mas para este avançar seria necessária a aprovação de dois terços do hemiciclo e PS e PSD confirmaram ao Observador que votarão sempre contra esta iniciativa do Chega. O voto de condenação, que desceu na quinta-feira à Comissão de Assuntos Constitucionais, também tem os dias contados.
Tudo começou quando Marcelo Rebelo de Sousa defendeu, num jantar com jornalistas estrangeiros, a 23 de abril, a reparação das ex-colónias: “Temos de pagar os custos. Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso”. Quando o assunto se tornou público no dia seguinte, André Ventura acusou logo o Presidente de “traição à pátria”. Repetiu-o depois, a partir do púlpito, na sessão comemorativa do 25 de Abril na AR. Quatro dias depois, fez mesmo uma ameaça ao dizer que ponderava levar Marcelo à justiça. Puxou da representatividade do Chega e lembrou que “só precisa de um quinto dos deputados”.
Na quinta-feira, no programa Vichyssoise da Rádio Observador, o vice-presidente da AR e ideólogo do Chega, Diogo Pacheco Amorim, disse que as declarações eram “suficientemente graves” para que um procedimento criminal seja suscitado contra o Presidente, mas destacou que é a “André Ventura que caberá tomar a decisão”. Ao que o Observador apurou, o presidente do Chega ainda não decidiu se avança e mantém essa possibilidade em aberto.
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PS e PSD vão travar qualquer procedimento criminal ao Presidente
André Ventura mantém assim a ameaça de avançar para o processo contra Marcelo com base no artigo 130.º da Constituição, que diz que “por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República responde perante o Supremo Tribunal de Justiça” e que “a iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos deputados em efetividade de funções.”
Isto significa que André Ventura tem deputados suficientes (50 deputados do Chega são mais de um quinto do hemiciclo) para suscitar o processo, mas para o mesmo prosseguir seria necessária a aprovação por dois terços do Parlamento. Ora, PS e PSD, que têm 156 deputados, continuam a conseguir garantir mais de dois terços do hemiciclo (67,8%) e ambos vão votar contra esta proposta caso o Chega materialize a ameaça.
Fonte da bancada parlamentar do PSD confirmou ao Observador que o grupo votaria sempre contra esta proposta. Também Isabel Moreira diz que “evidentemente que o PS votaria contra“. A coordenadora do PS na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias diz ao Observador que “primeiro, não há crime; segundo, mesmo que o Chega com a sua simulada ignorância jurídica finja que esse processo pode andar para a frente, não pode. Precisa de dois terços dos deputados, que não tem”.
Além disso, Isabel Moreira acrescenta que “não há memória de um voto de condenação do Presidente da República”, defendendo o “princípio da separação de poderes: não se condena outro órgão de soberania, neste caso o cargo de Presidente da República”.
Voto de condenação condenado ao fracasso
Ao mesmo tempo, o Chega avançou com um voto de condenação a Marcelo Rebelo de Sousa. No documento, a bancada da direita conservadora escreve que “as recentes declarações do Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao sugerir a ideia de reparação e que Portugal deve pagar indemnizações pelo seu passado histórico nas antigas colónias, representam no entender do Chega uma traição a Portugal, ao povo português e à própria história de Portugal.”
Num texto em que é repetida várias vezes a palavra “traição” e em que são utilizados muitos pontos de exclamação, o Chega pretende que o hemiciclo manifeste “a sua mais profunda e severa condenação ao Sr. Presidente da República, e às palavras por ele proferidas, por reforçar a ideia de reparação e afirmar que Portugal deve pagar indemnizações pelo seu passado histórico nas antigas colónias”.
O voto já foi aceite, mas desceu à primeira comissão, onde vai ser debatida e votada (para data não agendada). Ainda assim, este voto de condenação está igualmente condenado à partida. Na reunião da bancada parlamentar de quinta-feira de manhã, o líder parlamentar do PSD, Hugo Soares, disse perante o grupo de deputados que naturalmente que o PSD votaria contra a proposta e até levantou dúvidas se a Mesa poderia aceitar a mesma. A Mesa da AR aceitou (não tinha outra alternativa), mas, sabe o Observador, a posição do PSD mantém-se: é para chumbar.
O voto de condenação é praticamente um nado-morto já que o PS também vai votar contra. Isabel Moreira diz ao Observador que a acusação do crime de traição à pátria de André Ventura é “não séria” e que “evidentemente que o PS votará contra” esta condenação. A deputada socialista alerta que os “pressupostos do crime não estão preenchidos” e que se trata apenas de uma manobra “irresponsável e populista do Chega”.
Para Isabel Moreira “dizer-se que o Presidente da República não pode falar ou que cometeu um crime, é do domínio do absurdo e da má fé jurídica”. A deputada adverte ainda que André Ventura é que pode ter incorrido num crime de ofensa à honra do Presidente da República. Ou seja: as declarações de Marcelo não são crime, mas as de Ventura a acusar Marcelo de ser criminoso podem ser.
Há, no entanto, duas certezas. Os dois procedimentos utilizados pelo Chega para “castigar” Marcelo pelas declarações — o voto de condenação e uma eventual abertura de procedimento criminal — estão condenados ao fracasso. PS e PSD não permitirão que nenhum veja a luz do dia. Apesar de Ventura já os ter conseguido impor no espaço mediático.