Por trás da Catedral de São Miguel, ergue-se um miradouro de onde se alcança quase toda a capital ucraniana. Será um local muito procurado por turistas e pelos residentes noutras alturas, mas não em tempo de guerra. A duas horas do início do recolher obrigatório excecional de 36 horas, esta terça-feira ao fim da tarde, a cidade já estava praticamente sem ninguém na rua. Apenas se encontrava ali um casal ucraniano, que decidiu levar à rua o seu filho de 4 anos, a brincar no parque infantil junto ao miradouro: cada pai de um lado do escorrega, enquanto a criança descia e voltava a subir, alheada dos horrores da violência que a vai cercando sem que ela saiba.
O pai, Maxim Budyakov, 36 anos, diretor financeiro de uma empresa de eletricidade e gás, afastou-se um pouco da mulher e do filho para falar com o Observador. Confirmou que vão tentando manter a criança à margem do stress da aproximação da guerra. A maior dificuldade tem sido explicar as sirenes que alertam a população para os ataques aéreo: “Às vezes ele pergunta o que é o barulho das sirenes. Respondemos que são os maus que carregam em botões e que por isso devemos ficar em casa e esperar o tempo que for preciso. Mas ele não está assustado. Tentamos mantê-lo calmo. Ele não compreende o que se está a passar.”
Ouça aqui o relato dos enviados especiais do Observador a Kiev no podcast “A História do Dia”.
Já o pai, Maxim, não esconde a ansiedade face à incerteza dos próximos dias: “Eu estou preocupado com isto e com o que vem a seguir. Temos comida em casa para uma a duas semanas. Todos os dias vamos tentando comprar mais. Neste momento não é difícil conseguir comida. Mas tentamos armazenar comida que dê para uma a duas semanas.” A conversa é momentaneamente interrompida pelo som de um bombardeamento ao longe.
O nervosismo de Maxim não é falta de confiança nas forças militares ucranianas. Sente-se mais ou menos protegido apesar de todos os dias estarem a ser atingidos prédios na capital: “Kiev é o local mais seguro de toda a Ucrânia. A baixa é controlada pelas nossas forças. E acho que os nossos soldados nos vão manter seguros”.
Além disso, ficou em Kiev porque acha que é importante não parar de trabalhar: “Pagamos impostos, tentamos manter a economia a funcionar e apoiamos o esforço de defesa militar. Acho que é por isso que devemos continuar a trabalhar nestes tempos tão duros.”
“Se os russos cercarem Kiev e cortarem os cabos e as linhas elétricas, it’s over”
A empresa em que Maxim trabalha como diretor financeiro fornece eletricidade e gás natural por exemplo a fábricas que produzem pão na Ucrânia — e ajuda assim indiretamente a alimentar a população numa altura crítica. “Muitas empresas pararam de produzir, tanto clientes como fornecedores, o que provoca algumas dificuldades e obriga a reduzir alguns custos. E muitos clientes têm problemas em abastecer partes do território. É um tempo difícil para nós.”
As canalizações e cabos elétricos têm sido afetados um pouco por todo o país, mas vão continuando a funcionar, para já. O que acontece a Kiev se os russos cercarem a cidade? “Depende dos cabos e das linhas elétricas. Se cortarem, it’s over”, admite.
Para já, Maxim ainda se sente mais útil ao país no seu trabalho, mas caso a empresa suspenda a atividade, admite juntar-se também à força territorial de defesa, para tentar resistir à invasão.
O diretor financeiro não votou em Zelensky nas eleições, mas admite que tem ficado impressionado com a postura do Presidente. “Faço uma melhor avaliação dele agora, porque mostrou uma nova forma de fazer política, que tem sido muito interessante. Tenta ser uma espécie de herói nacional e está a sair-se muito bem. Não tem outra opção. Deve ser forte para proteger o território, que deve manter-se integral, sem cedências aos russos.”
Quanto ao inimigo Vladimir Putin, acredita que não vai durar muito tempo, por não ter apoio internacional. E faz um apelo aos vizinhos russos: “Deviam abrir os olhos e perceber o mundo em que vivem. É tempo de ajudarem também.”
O pianista sem-abrigo que manda cumprimentos à Rússia antes de tocar o hino ucraniano
A cerca de 150 metros do parque infantil está o edifício do Ministério dos Negócios Estrangeiros ucraniano. E a mais cem metros fica a parede com o retrato feito pelo português Vhils da primeira vítima do massacre da praça Maidan, em 2014. Não passaram mais de uma dúzia de pessoas a pé por esta zona ao fim da tarde. Mas um pianista sem-abrigo habituado a tocar em troca de comida ou moedas resistia, apesar da ausência de público, e sobretudo apesar do medo, de que falava incessantemente. “Vocês não têm medo de estar aqui?”
“Se me matarem, matam. Se não me matarem, não matam. Eu não sou ninguém. Estou só a tocar aqui. Não posso comentar nada porque não sei nada”. Habituado a tocar músicas para os turistas que agora não vêm a Kiev, ensaiou um tema de Avril Lavigne, outro dos Nirvana, mostrou-se admirador dos Metallica e dos Slipknot.
Sozinho junto ao miradouro, sem ninguém a assistir além do Observador, tocou o hino ucraniano, fazendo questão de o acompanhar antes de uma dedicatória especial: “Cumprimentos à Rússia soviética, da cidade de Kiev.”
A mãe e o filho militares cercados em Mariupol que ligaram a pedir uma missa
Os residentes em Kiev não estão a usar as igrejas como abrigo para se protegerem das bombas mas continuam a procurar ali o conforto espiritual possível para enfrentar as adversidades. A catedral Vladimir, antes um alvo privilegiado de excursões turísticas, continua a ser muito procurada por ucranianos que ali vão acender velas pela paz.
“Antes vinham pedir pela saúde dos familiares, agora é mais pelo fim da guerra”, confirma Leonid Radchenko, 44 anos, responsável pelo funcionamento da catedral, que nem quer sequer conceber a hipótese de uma eventual destruição da igreja: ”Tenho fé que Deus vai salvar o edifício e trazer paz à Ucrânia.”
Muitos fiéis ainda colocam a máscara contra a Covid (ao contrário do que acontece em toda a cidade) para entrarem no templo, acenderem uma vela e fazerem as suas orações. “Antes da guerra, a igreja enchia-se, com cerca de 400 pessoas nas missas. Agora há menos, mas ainda há sempre quem venha rezar para que toda a gente se mantenha viva”, diz o funcionário.
E também há quem não consiga vir, mas continue a pedir proteção divina: “Uma senhora que é militar e tem um filho militar, ambos em Mariupol, ligou a dizer que não consegue vir cá, mas ligou a pedir para rezarem: por ela, pelo filho e pelos militares que estão em Mariupol, enquanto a cidade está cercada pelos russos.
A cidade de Kiev parece deserta esta quarta-feira, durante o recolher obrigatório de 36 horas que se estende até às 7 da manhã de quinta-feira. Há notícia do bombardeamento que atingiu um prédio de 12 andares, na zona de Shevchenkivsky, a seis quilómetros do gabinete do Presidente Zelensky na Rua Bankova, ferindo duas pessoas e obrigando à retirada de 37 residentes.
De resto, o silêncio apenas tem sido interrompido pelas sirenes que avisam para ataques aéreos russos iminentes. Ou por um ou outro carro que passa de hora a hora: só pode circular quem tiver uma credencial específica para passar os checkpoints neste dia, essencialmente militares. Nem mesmo os jornalistas podem sair à rua, numa altura em que os meios de comunicação locais dão conta de uma contra-ofensiva ucraniana. Ao longe, nos subúrbios de Kiev, as colunas de fumo negro indiciam que os combates continuam às portas da cidade.