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Queen In Portugal
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Joseph McKeown/Picture Post/Hulton Archive/Getty Images

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Quando Salazar conheceu Isabel: milhares na rua, récitas e um banquete em que a rainha esfarelou pão na sopa

Há 65 anos, Isabel II chegava no Terreiro do Paço para a 1.ª visita oficial a Portugal. Houve uma marca de batom, pides furibundos num jantar privado, um Rolls Royce em 2.ª mão e muito vinho do Porto.

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(Este artigo foi originalmente publicado em fevereiro de 2022. É republicado a propósito da morte da Rainha Isabel II, esta quinta-feira, 8 de setembro de 2022)

Numa carta enviada pela Embaixada de Portugal em Londres, a 9 de março de 1957 ao cuidado do Ministro dos Negócios Estrangeiros, consta um clipping das notícias que à época davam conta da primeira visita oficial de Isabel II a Portugal, em fevereiro desse ano. Entre os recortes de jornais, consultados pelo Observador no Arquivo Histórico Diplomático, meticulosamente dobrados e colados em folhas anexas à correspondência, um título em particular salta à vista: o do britânico Evening News sobre sete dezenas de garrafas de vinho do Porto oferecidas ao príncipe Carlos aquando da visita, numa altura em que o herdeiro à coroa não tinha nem 10 anos — na verdade, o presente dizia respeito a uma pipa capaz de encher 730 garrafas. O vintage de 1955 foi oferta de 13 casas britânicas pertencentes a uma associação de produtores, e se Carlos recebeu vinho fortificado para durar uma vida, a irmã, a princesa Ana, teve direito só a uma boneca.

Naquele que foi o final da estadia real no nosso país, uma outra pipa de Tawny foi oferecida especificamente a Isabel II para comemorar a primeira visita de uma monarca britânica à Invicta. A ida ao Porto foi a última paragem antes de regressar a Londres e, já no aeroporto, foi recebida por uma chuva de pétalas de rosas brancas. A despedida terá sido tão emotiva quanto a chegada, com multidões em diferentes pontos do país na derradeira receção a uma jovem monarca que, dias antes do arranque da visita oficial, escolhia território português para se reencontrar com o marido que não via há quatro meses — nem de propósito, na imprensa internacional multiplou-se, à época, a expressão “segunda lua-de-mel”.

O reencontro na Base Aérea do Montijo e um beijo marcado a batom

Há quatro meses separados, Isabel II e o duque de Edimburgo — que morreu em abril de 2021 aos 99 anos — reencontraram-se finalmente na Base Aérea do Montijo. Até então, o príncipe Filipe andara pela Austrália, Nova Zelândia, Gâmbia e Gibraltar, com o derradeiro encontro com a mulher a acontecer no pequeno aeródromo, poucos dias antes do arranque da tão aguardada visita oficial. Na tarde de 16 de fevereiro de 1957, marido e mulher eram novamente fotografados juntos, ambos sorridentes, “ela de tailleur escuro, ele de fato discreto — e batom na face”, tal como se conta no livro Os dias portugueses de Isabel II (editora Parsifal). À data, o Diário de Notícias assinalava que o duque de Edimburgo chegaria às sete da manhã de sábado a Setúbal, “precisamente oito horas e vinte minutos antes da chegada da rainha ao aeródromo do Montijo” — o casal seria esperado por uma centena de “cinegrafistas e fotógrafos”, com a imprensa internacional em peso em Portugal, incluindo 45 jornalistas ingleses, outros 30 de diversas nacionalidades e 150 portugueses.

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Com um beijo, escrevia então o jornal venezuelano El Nacional, Isabel II punha fim a rumores de um desgosto real na sequência da separação de largos meses, ainda que o Palácio de Buckingham os negasse categórica e sistematicamente. O beijo selado na intimidade da cabine do avião que momentos antes transportara a monarca seria confirmado àquela publicação por um “alto funcionário do governo português”, com a citação que lhe foi atribuída a não conseguir ser mais clara: “Claro que se beijaram”. Antes da reunião familiar que foi assinalada vezes sem conta na imprensa, o príncipe tinha feito um giro à volta do mundo de 57.900 quilómetros, sempre a bordo da embarcação real Britannia — os quatro meses resultaram na separação mais longa do casal desde o seu casamento, em 1947.

Portugal, Montijo Airport. Arrival Of Hm The Queen Elizabeth Ii And Prince Philip Of Edinburgh In February 1957.

Chegada da rainha ao Aeroporto do Montijo (©Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images)

Nesse dia, o famoso Britannia estacionou nas águas do rio Sado, frente a “uma aldeia piscatória” a distar cerca de 50 quilómetros de Lisboa, com o intuito do casal ser uma reunião privada de dois dias que antecederia a azáfama de um itinerário meticulosamente desenhado pelo Governo português, ansioso que estava por ver a jovem monarca retribuir a viagem que poucos anos antes Craveiro Lopes fizera ao Reino Unido — mais especificamente, a Londres, em outubro de 1955. O automóvel que levou o duque de Edimburgo do Britannia ao pequeno aeroporto chegou um minuto após a aterragem do avião que trazia Sua Majestade, registou à data a publicação venezuelana, que foi ao pormenor de descrever como o duque saiu “precipitadamente” do veículo, e até “algo preocupado”, dirigindo-se de imediato ao avião. Três minutos depois apareceria em público com a mancha do batom no rosto. Em solo português, Isabel II foi recebida por Paulo Cunha, ministro dos Negócios Estrangeiros, e por uma guarda de honra de 12 elementos.

O iate real ficaria fundeado no Sado, em Setúbal, até ao começo da visita de Estado, marcada para 18 de fevereiro, que viria a ser considerada, entre os meios diplomáticos nacionais, a “visita do século”. Mas antes de arrastar multidões no seu encalço, a jovem e bonita rainha, com apenas 30 anos, dedicaria tempo aos “grandes amigos” Domingos de Souza e Holstein Beck e Maria do Carmo Pinheiro de Mello, duques de Palmela, que a receberam no Palácio do Calhariz, em Sesimbra (Domingos de Souza e Holstein Beck fora antes embaixador português em Londres).

O encontro na residência dos duques — que se estendeu depois numa visita à Arrábida com direito a explicações sobre o convento secular — não contou com a presença de Craveiro Lopes, que terá ficado melindrado com a omissão de convite. Sobre os contactos particulares da monarca, Salazar escreveria o seguinte numa carta dirigida ao então Presidente da República: “Podem invocar-se razões que desaconselharam a ida ao almoço, aliás íntimo e particularíssimo no Calhariz. É Vossa Excelência juiz do valor dessas razões. Mas os telegramas que vêm da embaixada e as cartas recebidas dos altos funcionários que privam com a rainha dão ideia de tal entusiasmo seu quanto à visita a Portugal, pelo conjunto de circunstâncias que se verificam nela, que eu, com receio de a magoar, tendo para a compreensão e aquiescência”. Na verdade, na visita que durou cinco horas não esteve presente qualquer representante do Governo português, com os dois agentes da PIDE destacados para o efeito a almoçarem “noutra ala”, sem ouvir ou anotar qualquer detalhe que fosse — como se conta no livro já citado, estavam “furibundos”. Os duques de Palmela acompanhariam a rainha durante a estadia no país, com o fim de semana que antecedeu a visita oficial a ser essencialmente passado no Britannia apesar das tempestades que varreram a baía de Setúbal na altura e que sacudiram a embarcação real.

Queen Elizabeth II poses with her husband Prince Philip, the Duke of Edinburgh, after their reunion at Lisbon on the roy

Isabel II e o príncipe Filipe, fotografados após a muito aguardada reunião em Portugal

Daily Mirror/Mirrorpix/Mirrorpix via Getty Images

Sirenes, salva de canhões, cortejo fluvial na chegada à capital. E Marcelo entre a multidão

As emissões televisivas regulares da RTP arrancariam a 7 de março de 1957, mas antes a visita de Isabel II seria uma prova de fogo, um passo importantíssimo, com a cobertura do evento a receber o apoio da BBC e a configurar a primeira grande reportagem da estação — além disso, o cineasta António Lopes Ribeiro realizou um documentário inteiramente dedicado à visita.

A visita oficial começaria a 18 de fevereiro no Terreiro do Paço, em Lisboa, com o desembarque da monarca no Cais das Colunas a acontecer pelas 11 horas da manhã, já o sol ia provavelmente alto no céu. Isabel II seguia a bordo de um bergantim histórico que liderava um cortejo fluvial — “com 12 arrastões bacalhoeiros, 50 rebocadores, oito barcos de pesca, 15 traineiras de Setúbal e 16 de Peniche, 10 embarcações do Instituto de Socorros a Náufragos e inúmeros ferryboats”, lê-se no livro Os dias portugueses de Isabel II. O bergantim, para o qual entrou a bordo a 300 metros do cais (até então estava no Britannia), fora encomendado no século XVIII para o casamento de D. João VI com D. Carlota Joaquina. Foi a última vez que a embarcação com 40 remos manobrados por 78 remadores, “provavelmente a galeota mais ricamente ornamentada, com inúmeras figuras mitológicas em fina talha dourada”, cruzou as águas do Tejo. Está hoje no Museu da Marinha.

© Direitos Reservados

Já em terra, a monarca foi recebida por Craveiro Lopes e sua esposa — ele em uniforme de gala, ela de vestido, capa e chapéu azuis — num cais revestido de flores brancas e encarnadas, com aviões a jato a sobrevoar em formação simétrica o Terreiro do Paço. Aos olhos de milhares de portugueses, Isabel II apareceu a usar um vestido de xantungue (seda) e chapéu azuis, a combinar com luvas brancas e um colar de pérolas ao pescoço e ainda um enorme alfinete de diamantes (Filipe no seu uniforme de gala de almirante de esquadra). Foi saudada por uma salva de 21 de tiros disparados do Castelo de São Jorge e ouviu ser tocado o hino “God Save the Queen”, mas também o hino português.

Na manhã de ares e temperaturas primaveris, multidões esperavam a chegada da rainha e, entre as mais de 500 mil pessoas que figuravam no Terreiro do Paço estava Marcelo Rebelo de Sousa como o próprio recordaria em novembro de 2016, quando foi recebido pela monarca no Palácio de Buckingham no final de uma visita oficial de dois dias a Londres. “Eu era uma criança”, recordou Marcelo imediatamente após beijar a mão da rainha, ao que esta respondeu “Estou certa de que era”. Uma troca de sorrisos depois, o Presidente contou que estava no Terreiro do Paço quando a viu passar num coche dourado na companhia de Craveiro Lopes. A carruagem oitocentista puxada por três parelhas de cavalos brancos foi usada pela última vez naquele dia, à semelhança do bergantim real. O duque de Edimburgo e Berta Craveiro Lopes seguiram na carruagem imediatamente atrás.

Portuguese Visit

A monarca na companhia de Craveiro Lopes (Derek Berwin/Fox Photos/Getty Images)

Quem também seguia com a atenção a rainha era o fotógrafo Fernando Corrêa dos Santos, na altura com 22 anos a caminho dos 23. A pedido da empresa para a qual trabalhava, tentou assegurar uma imagem da jovem monarca na Rua Augusta. Ao Observador, recorda como acompanhou a chegada da soberana ao Cais das Colunas e como correu atrás do coche onde esta seguiria depois. Já a meio da Avenida da Liberdade, perto do Hotel Vitória, ela sorriu — até hoje não sabe dizer se Isabel II estava ou não a acenar para si. O certo é que a fotografou aí, mas também no Parque Eduardo VII.

“Lisboa estava preparada para acolher em seu coração a rainha”, escrevia a publicação A Tarde, que assinalava ainda como “os navios ancorados no Tejo puseram em funcionamento as suas sirenes”. Já o Diário de Lisboa contava um milhão de pessoas presentes e descrevia uma receção “triunfante” — na verdade, “a mais bela receção de toda a gloriosa existência” da monarca de apenas 30 anos. A “apoteose histórica”, na qual participou “uma cidade inteira”, contou com lisboetas (e não só) acumulados nos passeios, mas também nas montras e nas janelas que, para aquela ocasião, se haviam tornado em autênticos camarotes. Era também nas varandas que se avistavam as “ricas colgaduras, vermelhas e azuis”, outras com o escudo português. Ainda antes da emocionante chegada da realeza, já o Terreiro do Paço e as ruas da Baixa davam ares de “grandes festas citadinas” apesar do mau tempo que se fazia sentir. “Mal se podiam circular nos passeios e chegavam a formar-se quatro a cinco filas de automóveis.”

Também a Revista Municipal, publicação cultural da Câmara Municipal de Lisboa, falava de semelhante aparato, não poupando elogios nas longas descrições do momento histórico que aconteceu há 65 anos, falando em “pompa”, “brilho”, “simpatia” e “entusiasmo”, fazendo referência a uma capital que “apareceu engalanada ainda o sol não tinha nascido”, com o povo a formar aglomerados “impossíveis de conter”. Após o desembarque, e ainda antes de se sentar no coche com Craveiro Lopes, Isabel II foi apresentada a Salazar na tribuna de honra: “Nos olhos da rainha vislumbrou-se um fulgor de admiração. No rosto de Salazar, sorridente, lia-se o respeito e o enternecimento”.

Isabel II foi apresentada a Salazar na tribuna de honra: "Nos olhos da rainha vislumbrou-se um fulgor de admiração. No rosto de Salazar, sorridente, lia-se o respeito e o enternecimento".

Ao cortejo pelas ruas de Lisboa, com a rainha no interior do coche dourado, acrescentou-se também um desfile militar com batalhões do Colégio Militar e da Escola do Exército, mas não só, que percorreu a Rua Augusta, onde o cortejo “fez brotar novas e entusiásticas manifestações”, com a “velha rua pombalina” a encontrar-se “pejada de bandeiras” inglesas e portuguesas “num abraço de amizade”. Enquanto isso, a multidão agitava freneticamente bandeiras e punha-se nos bicos dos pés para a ver a rainha passar, ecoando pela calçada lisboeta e ruas alcatroadas cânticos repetidos: “Viva a rainha! Viva a rainha!”. A carruagem chegou à Praça do Rossio, onde “não cabia mais gente” e as “árvores pareciam cachos humanos”. Percorrida a Avenida da Liberdade e alcançado o Parque Eduardo VII, batizado em homenagem ao bisavô da atual monarca, “Isabel de Inglaterra desceu do coche, como só uma rainha sabe descer” para depois serem largados 11 mil pombos correios, simbolizando a harmonia entre as duas nações. Homens indefinidos lançavam os seus chapéus ao ar, enquanto as mulheres agitavam lenços brancos em celebração.

QUEEN AND DUKE TOUR PORTUGAL'S HEARTLAND

Milhares de pessoas saem às ruas de Lisboa para verem a monarca passar

Express/Archive Photos/Getty Images

À boleia de um Rolls-Royce e as dormidas no Palácio de Queluz: “O programa cuidadosamente elaborado e escrupulosamente seguido”

Findo o cortejo, Isabel II foi transportada num Cadillac para o Palácio de Queluz onde ficaria a dormir — nos seus aposentos, por uma questão de organização pessoal, os móveis foram dispostos tal qual como em Buckingham. Nesse mesmo dia à tarde, a monarca voltaria a estar na presença do Presidente da República, agora no Palácio de Belém, onde receberia um cavalo lusitano — um garanhão com sete anos de idade que, 24 horas após o seu nascimento, “acusou 58 quilos de peso e 1,08 metros de altura no garrote”, tal como consta nas “Notas sobre o cavalo Alegrete III” submetidas pela Direção Geral dos Serviços Pecuários do Ministério da Economia.

Tudo foi estudado ao pormenor e a viagem demorou vários meses a ser planeada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português, pelo Foreign Office e pelo Palácio de Buckingham. No livro já citado, publicado em 2016, lê-se que esta foi a receção “mais faustosa” que a soberana teve no estrangeiro, tendo sido também “a receção mais grandiosa que o Estado português organizou”. Salazar acompanhou detalhadamente o planeamento da visita tida como um importante passo na legitimação da política colonial dada a pressão internacional. “A aliança inglesa é uma realidade histórica e sentimental, política e diplomática que dura há mais de seis séculos, se remontarmos à troca dos documentos originais entre os reis portugueses da dinastia de Borgonha e os soberanos contemporâneos da Grã-Bertanha”, lia-se a 18 de fevereiro no jornal O Século.

Na correspondência analisada pelo Observador no Arquivo Histórico Diplomático é possível ler num relatório com o carimbo da Embaixada de Portugal em Londres, assinado por A. Fortunado de Almeida e datado de maio de 1957, as preocupações do país em organizar a visita da rainha, de maneira a retribuir a viagem de Craveiro Lopes, dois anos antes, a Londres, mas também a preocupação em não mostrar “pressa”. “Logo após a visita de Estado do Senhor Presidente da República, General Craveiro Lopes, a Inglaterra em outubro de 1955, pôs-se a questão da retribuição de tal visita. Recebeu o Senhor Embaixador instruções de Lisboa para fazer sondagens e orientar as coisas de maneira a que a retribuição da visita tivesse lugar em curto tempo”, lê-se.

No mesmo documento é ainda destacada a seguinte observação: “Procurei mostrar a conveniência de não se adiar por muito tempo a retribuição da visita, pois em 1958 realizar-se-ia a eleição para a Presidência da República e não se sabia o que o futuro nos reservaria”. Curioso ainda é a preocupação com o possível mau tempo em fevereiro, levantada pelo embaixador português, e a resposta de Isabel II: “Também eu arrisquei a convidar o seu Chefe de Estado a vir a Inglaterra em Outubro”.

  • Francisco Craveiro Lopes
    O Presidente da República à chegada a Londres para a vista de Estado, em outubro de 1955
    Reg Speller/Fox Photos/Hulton Archive/Getty Images
  • Theatre - 'The Bartered Bride' Gala Performance - Royal Opera House, London
    Isabel II e Craveiro Lopes, à direita, na visita de Estado a Londres em 1955
    PA Images via Getty Images

A chegada ao Montijo de “carácter absolutamente privado”, as preocupações com o tempo e, nesse caso, a possibilidade de o desembarque ser na Doca da Marinha e não no Terreiro do Paço, o desfile militar que não demoraria “mais do que oito minutos”, e, já na chegada a Queluz, o facto de serem o Presidente da República e a mulher a acompanhar os esposos reais aos respetivos aposentos, as reuniões que antecederam os preparativos eram detalhadas e extremamente pormenorizadas, desde onde dormiam e o que comiam a como se transportavam.

Em Portugal, Isabel II e o marido deslocaram-se quase sempre a bordo de um Rolls-Royce Phantom III comprado pelo Estado em Londres e em segunda mão ao príncipe de Berar, filho do Nizam de Hyderabad, na Índia. O veículo de 1937, pintado de amarelo, precisava de reparação. A casa Hooper encarregou-se de “restituir ao carro o aspeto e a comodidade de novo, estofando-o, pintando-o, revendo ‘chassis’ e ‘carros-serie’ e colocando novas madeiras no interior. (…) Foi dito ao funcionário da Embaixada que tratou do assunto que seria colocada uma nova capota e a respetiva capa. Por outro lado, a casa Rolls-Royce, tem a seu cargo a revisão geral da mecânica do carro”, lê-se numa carta endereçada ao Ministro dos Negócios Estrangeiros a 30 de novembro de 1956.

Na correspondência fica ainda evidente que o preço original do veículo de 3.850 libras, tido como “excessivo”, foi negociado para 3.522.10, numa aquisição feita Direção-Geral da Fazenda Pública. O carro haveria de chegar a Lisboa a 5 de fevereiro, dias antes da vinda de Isabel II, à boleia do “English Star” da Blue Star Line — a 28 de março de 1957, o modelo receberia a matrícula DD-30-92, passando a estar ao serviço da Presidência da República, tendo, inclusivamente, transportado figuras emblemáticas como o presidente Eisenhower e os Papas Paulo VI e João Paulo II, segundo a página do Museu do Caramulo, entidade cultural à qual o automóvel foi entretanto doado pela Presidência da República Portuguesa.

O Estado português comprou um Rolls-Royce a propósito da vinda da rainha Isabel II

© Imagem cedida pelo Museu do Caramulo

Durante quatro dias, após o contacto inicial, o País inteiro acompanhou, interessado e rendido, a realização de um programa cuidadosamente elaborado e escrupulosamente seguido, cujo ritmo se manteve a um nível louvável sem cerimónias excessivas nem exibições vulgares”, escreveria, a 22 de fevereiro, o jornal O Século.

O discurso único no banquete, a noite na ópera e o tête-à-tête com Salazar

O banquete oficial aconteceu na noite de 18 de fevereiro, com a rainha a ser esperada no Palácio da Ajuda pelas 21h. De acordo com os planos elaborados pelo Governo, a monarca foi recebida na Sala Chinesa pelo Chefe de Estado e posteriormente encaminhada para a Sala A para aí se encontrar “com o Senhor Cardeal e o Senhor Presidente do Conselho”, com os convidados previstos a chegar entre as 20h30 e as 20h50 e a ocupar as Salas do Trono e da Música. “Às 20h50 abre-se a porta da sala de jantar, devendo os convidados ir imediatamente ocupar os seus lugares”, uma tarefa para a qual foram reservados apenas 5 minutos. O jantar estaria concluído às 23h e a despedida entre monarca e Chefe de Estado concluída às 00h15. O certo é que a cerimónia terminou às 00h30.

Na noite do banquete oficial, Isabel II fez um discurso único, expressando o “gosto” por se encontrar “no altivo e belo país que é Portugal” e agradecendo desde logo as “inesquecíveis boas-vindas”. Já o discurso de Craveiro Lopes em português foi atempadamente traduzido para inglês, com cópias do mesmo a serem colocadas no lugar de cada convidado, juntamente com a ementa, a pedido do próprio Salazar. A monarca de 30 anos, coroada quatro anos antes, em 1953, usava um “vestido de seda branco, bordado a fio de ouro, ostentando a Banda das Três Ordens, um colar de diamantes e esmeraldas e uma tiara Vladimir, de diamantes e esmeraldas, criada em 1880 para a casa imperial russa”, lê-se no livro citado. Entre as senhoras convidadas havia esmeraldas e diamantes, e vestidos de Christian Dior, Lanvin, Balmain, Beatriz Chagas e Salão Bobone.

O salão de jantar tinha um aspeto surpreendente, inundado de luz dos seus ricos candelabros, braçais e tocheiros de centenas de lâmpadas e emoldurado de sanefas, a toda a altura das portas, de damasco creme sobre renda branca. À volta, nos aparadores de talha dourada, foram colocadas obras cinzeladas de metais preciosos. Sobre as mesas viam-se, entre grinaldas de flores mimosas e fios de ouro, peças da baixela ‘Germain’, a mais completa de todo o Mundo, com o qual foi servido o banquete. Pequenas estatuetas ‘vermeil’, do célebre cinzelador francês Coussinet, e cristais finíssimos completavam a decoração e o arranjo das mesas”, lê-se na Revista Municipal da CML.

A orquestra tocou Mozart  e à enorme mesa onde o jantar do Hotel de Aviz foi servido — com direito galinha ao invés de perdiz por a época da caça já ter terminado — foram dispostas 200 cadeiras lacadas e douradas que, anos antes, D. Carlos havia encomendado a propósito da visita de Eduardo VII de Inglaterra. Entre ornamentos decorativos, espalhados pelo banquete e usados pelas convidadas, talvez a surpresa da noite tenha sido a normalidade com que Sua Majestade esfarelou pão na sopa. “Surpresos (na época só as classes populares o faziam), todos acabaram por acompanhá-la, migando desajeitadamente os seus pratos”.

A visita do Presidente do Conselho, tratada “discretamente com o embaixador britânico” aconteceu ainda no primeiro dia na forma de uma audiência particular, com a monarca a oferecer um retrato como dedicatória.

O dia seguinte, 19 de fevereiro, ficaria marcado pela visita da monarca ao Mosteiros dos Jerónimos, onde lhe foram mostrados os túmulos de Camões e de Vasco da Gama, “com passagem pelo bairro das casas económicas da Ajuda”, ainda que fosse de evitar o trajeto pela Calçada da Ajuda. “O automóvel passará, sem parar, pelo bairro da Ajuda”, lê-se nos planos do Governo, que orientariam ordens para “preparar devidamente a limpeza e arranjo do Bairro da Ajuda”. Mais uma vez a monarca foi recebida com clamor pela população que a esperava. Ao mesmo tempo, o duque de Edimburgo, cujo amor ao mar era já uma evidência, além de ostentar os títulos de capitão-geral da Royal Marines e almirante da Marinha, ficava a conhecer a fragata D. Fernando II e Glória e o navio-escola Sagres. O casal encontrar-se-ia no átrio do Museu dos Coches e almoçou depois na Câmara Municipal de Lisboa.

Portugal, Hm The Queen Elizabeth Ii During Her Tour Of The Jerominos Monastery, In February 1957.

Isabel II no Mosteiro dos Jerónimos (©Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images)

A récita de gala no Teatro de São Carlos estava marcada para as 22h, com Isabel II a envergar “um vestido de tule branco bordado a diamantes, encimado pela tradicional tiara”. No camarote real, a monarca gozou da companhia do marido, mas também de Craveiro Lopes e sua mulher, dos duques de Palmela e da sua comitiva. Durante o intervalo, conversou em francês com Salazar. Segundo a obra Os dias portugueses de Isabel II, que cita as memórias escritas da duquesa de Palmela, naquela noite e naquele intervalo, Sua Majestade, que estava “lindíssima, cheia de joias”, conversou “animadamente” com o ditador português, ele “que trajava casaca negra com uma pontinha de um lenço branco saindo sorrateiramente da pequena algibeira”. Também o embaixador Franco Nogueira faria a seguinte observação: “A rainha não ocultava o deslumbramento por aquele homem antigo que lhe falava serenamente das coisas do mundo”.

Nazaré, Alcobaça, Batalha e Vila Franca: “A viagem triunfante”. E o “último dia descontraído” no país

Ao terceiro dia da visita, Isabel II e o marido tiveram a oportunidade de conhecer a Nazaré, um destino incluído no roteiro por causa do livro The Selective Traveller in Portugal, cuja dupla de autoras enviara antes um exemplar à monarca, recomendando a visita — folclore local foi exibido por dois ranchos e houve espaço e tempo para vislumbrar as “artes da pesca”. Seguiu-se Alcobaça, com o casal uma vez mais a ser recebido pela euforia dos populares, mas também pelo toque de sinos. Aí, estudantes de Coimbra estenderam as capas negras à passagem da monarca, que visitou também o mosteiro que havia sofrido importantes obras de restauro, com destaque para os túmulos de Pedro e Inês.

GNDN13022011SF3425 Visita da Rainha D. Isabel II a Portugal. Os estudantes de Coimbra, estendem as capas à passagem da Rainha. Alcobaça 20/02/1957 © Proibido o uso editorial sem autorização da Global Notícias. Esta fotografia não pode ser reproduzida por qualquer forma ou quaisquer meios electrónicos, mecânicos ou outros, incluindo fotocópia, gravação magnética ou qualquer processo de armanezamento ou sistema de recuperação de informação, sem prévia autorização escrita da Global Notícias.

Os estudantes de Coimbra, estendem as capas à passagem da Rainha, em Alcobaça

Arquivo DN

A visita à Batalha, de curta duração e próxima escala na viagem que agora se alongava para lá dos limites de Lisboa, incluiu colocar flores no túmulo do Soldado Desconhecido, “enquanto uma fanfarra de clarins executava, no claustro, a marcha de continência e, no exterior, uma bataria de artilharia fazia disparos compassados”. Em Vila Franca de Xira, o casal real teria direito à “exibição típica do Ribatejo”, incluindo a presença de 300 campinos e duzentos cavaleiros ribatejanos e alentejanos (para grande apreço de Isabel II, conhecida apreciadora da arte equestre), mas também ranchos folclóricos e espetáculo de apartação de gado. A tourada tradicional não foi considerada por receios de Salazar que a monarca pudesse ficar incomodada.

O itinerário foi o de “uma viagem triunfante”, segundo a edição do Diário de Notícias à época, dando destaque às “estradas orladas de gentes, entusiasmadas, ansiosas por manifestar à gentil soberana toda a estima e respeito que lhe dedicam”, com o trabalho a “paralisar” nos campos e nas fábricas. Nessa noite, a capital haveria de ser enfeitada por um faustoso fogo de artifício durante o banquete oficial oferecido pela rainha ao chefe de Estado português, servido a bordo do Britannia, com os pontos mais altos de Lisboa a encherem-se de milhares de pessoas para ver o espetáculo noturno. O fogo de artifício queimado no Tejo foi festa popular, mas também o “último número do programa oficial de homenagens à soberana”. No dia seguinte, Isabel despedia-se de Lisboa rumo à Invicta com multidões a saírem, uma vez mais, à rua para clamar “Rainha! Rainha! Rainha!”.

A multidão cantou o hino nacional e o ‘God Save The Queen’. Isabel II, sempre a sorrir, dirigiu as últimas palavras ao sr. general Craveiro Lopes. Entrou no carro, cobrindo-se com uma manta cinzenta. O duque seguiu-a. Sorriram um para o outro. A multidão, formando uma mancha negra com os chapéus de chuva abertos, gritou o seu entusiasmo e mil lenços brancos acenaram na direção de Isabel II. O carro arrancou — e a rainha e o seu marido partiram”, lê-se na Revista Municipal já citada.

GNDN13022011SF3420 Visita da Rainha D. Isabel II a Portugal. Mosteiro da Batalha. 18/02/1957 © Proibido o uso editorial sem autorização da Global Notícias. Esta fotografia não pode ser reproduzida por qualquer forma ou quaisquer meios electrónicos, mecânicos ou outros, incluindo fotocópia, gravação magnética ou qualquer processo de armanezamento ou sistema de recuperação de informação, sem prévia autorização escrita da Global Notícias.

D. Isabel II visita o Mosteiro da Batalha

Arquivo DN

O Porto foi visitado em apenas duas horas pelo casal real já sem carácter oficial, sendo o recomeço da visita privada que começara em Setúbal. Isabel II e o marido tiveram, no entanto, tempo para passar pelo Palácio da Bolsa e pela Feitoria Inglesa. Ainda assim, a população felicitou a monarca e distinguiu-se pela “manifestação apoteótica” que protagonizou a partir do momento em que a soberana, a usar um vestido azul-claro e um casaco branco, surgiu à porta do avião que aterrara momentos antes em Pedras Rubras. As ruas encheram-se não apenas de portuenses e ingleses, com o Norte a concentrar-se na Invicta, dadas as milhares de pessoas que chegaram em “comboios especiais, automóveis a camionetas”.

Em concordância com o entusiasmo das gentes, o casal pediu uma mudança de última hora, ao trocar o automóvel em que seguia por uma velhinha camioneta aberta da polícia, até então usada para transportar fotógrafos e jornalistas — o duque de Edimburgo terá exclamado a um oficial “Era o que faltava atravessar estas multidões num carro fechado outra vez”. O feito foi notícia um pouco por toda a imprensa, que notou também a descontração e informalidade da soberana, que sorria enquanto segurava o seu chapéu, e o marido acenava ao mar de figuras anónimas unanimemente extasiadas.

“O povo esteve presente em toda a parte. O povo foi caloroso e espontâneo”, escreveria a 20 de fevereiro o jornal O Século. “Obedeceu a um impulso íntimo; deu-se inteiramente com aquela verdade que não ilude, porque se sentiu cativado pelo sorriso da galante rainha, pela gentileza da sua figura, porque compreendeu que ela o compreendera nos seus ímpetos generosos”.

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