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Corações desenhados no passeio, poemas de Miguel Torga e Álvaro de Campos escritos em azulejos nas fachadas, pinturas coloridas e abstratas em postes e caixas de eletricidade, cartazes que anunciam festas e exposições colados nas paredes descascadas. Os edifícios abandonados e despidos contrastam com outros cheios de vida. A fruta, os legumes e as flores à porta da mercearia, a carne pendurada na montra do talho ou a esplanada concorrida do café da esquina confundem-se com as galerias de arte, da contemporânea à mais popular, as livrarias temáticas e as lojas de música, de moda de autor, de design, ilustração ou joalharia.
Há restaurantes tradicionais, com o prato do dia escrito num quadro de ardósia na entrada, e outros com sabores e cheiros brasileiros, italianos, mexicanos e do Médio Oriente. Há casas especialistas em chás, vinhos, cervejas ou cachaças e moradas onde o pão artesanal e a comida biológica são protagonistas.
Localizado entre as antigas freguesias de Cedofeita, Massarelos e Miragaia, o quarteirão Miguel Bombarda – composto pelas ruas de Miguel Bombarda, Rosário, Breiner, Maternidade, Adolfo Casais Monteiro e D. Manuel II — tem o nome do cientista, pensador e psiquiatra republicano, que morreu alvejado por um paciente dias antes da revolução de 1910. Ficou conhecido por albergar estudantes das faculdades situadas nas redondezas, mas em 2007 tornou-se uma das artérias mais criativas, estimulantes e relevantes na cidade do Porto.
Aqui o que é novo, sustentável ou em segunda mão não é olhado de lado — antes pelo contrário — e graças a um espírito aberto, desempoeirado e alternativo nasceu espontaneamente pela mão de alguns cidadãos um projeto cultural, artístico, económico, social e urbanístico. A iniciativa ganhou uma identidade, uma marca e uma comunidade fiel, que pelo menos seis vezes leva a rua a transformar-se em palco de espetáculos, oficinas, performances e concertos musicais, momentos em que as 15 galerias abrem gratuitamente para mostrarem o que têm de novo. Este sábado, 24 de setembro, celebram e convidam a cidade para a festa.
O projeto, que recentemente virou uma associação para ter mais voz junto da comunidade e da autarquia, passou por altos e baixos. Sobreviveu a uma crise económica, à euforia do turismo, à gentrificação e a uma pandemia, atualmente vive constrangimentos como o estacionamento excessivo ou as obras da Metro do Porto. A união e a sensação de que existe sempre algo por fazer permanecem, mas muitos reclamam mais apoio e investimento político, mudanças urbanísticas e pontes sólidas com outras zonas e projetos igualmente criativos na cidade.
Fernando Santos, Marina Costa e Ana Alves da Silva não nasceram no Porto, mas tomaram a cidade como sua e tornaram-na um sítio melhor. Com teimosia, liberdade e independência, ajudaram a construir o quarteirão das artes.
Fernando Santos, galerista
“Somos um projeto cultural único no país que devia ser mais acarinhado pela autarquia”
Cresceu em Amarante no meio de obras de arte e artistas consagrados, o pai era responsável pelo Museu Amadeo de Souza-Cardoso e com apenas 22 anos abriu a própria galeria. “Lembro-me que inaugurei a primeira exposição com obras de Júlio Resende, não eram tempos fáceis, não existia grande comércio de arte em Portugal e era difícil vender, mas lá fui fazendo o meu caminho.”
Em 1985, Fernando Santos muda-se para o Porto à boleia da histórica Galeria Nasoni, “uma verdadeira escola”, que ao longo de décadas expôs nomes como Andy Warhol, Picasso, Miró, Dali, Rogério Ribeiro, Paula Rego, Manuel Cargaleiro, Noronha da Costa ou Domingos Pinho. “Era uma galeria arrojada, coletiva, um projeto muito mais profissional e onde estive sete anos. Portugal tinha acabado de entrar na União Europeia, no Porto não existiam galerias, via-se arte apenas no Museu Soares dos Reis, era tudo muito virgem e por isso havia alguma curiosidade e interesse pelo desconhecido. O investimento em arte mais contemporânea começou a surgir aí.”
Oito anos depois, sentiu necessidade de abrir um espaço em nome próprio que refletisse, por um lado, as suas referências e, por outro, a sua identidade. Foi num passeio pela rua Miguel Bombarda que se cruzou com o número 526, uma porta de chapa que lhe chamou a atenção pela dimensão, ligou para o senhorio e comprou o armazém que converteu em galeria de arte homónima.
Nessa altura Miguel Bombarda era “uma rua fantasma”, um “dormitório para estudantes” das faculdades vizinhas, com “meia dúzia de cafés e mercearias”, mas em menos de cinco anos o cenário mudou. “Rapidamente outras galerias começaram a chegar. Falei com vários colegas galeristas a informar que existiam espaços disponíveis, a um preço simpático e que era bom haver uma concentração de projetos destes. Isto era uma novidade no Porto, mas lá fora, nomeadamente na Europa, já acontecia.”
Em 2001, o Porto era Capital Europeia da Cultura e nesta rua, com apenas 650 metros de comprimento, moravam 15 galerias de arte e algumas lojas de antiguidades e velharias, mas faltava limpeza, iluminação e público. Foi com base nesta premissa que lojistas e galeristas se uniram para apresentar um projeto urbanístico à Câmara Municipal do Porto. “A intenção era tornar a rua pedonal até Cedofeita, divulgar eventos e criar mais animação. Inicialmente a autarquia não achou muita piada porque era uma coisa proposta por cidadãos, mas depois o presidente Nuno Cardoso aceitou. Infelizmente o projeto não foi concluído, só uma parte da rua ficou pedonal e rapidamente se transformou num parque de estacionamento.”
Ainda assim, a zona passou a ser um terreno cada vez mais fértil para projetos artísticos, criativos e novos na cidade, o fenómeno espalhou-se gradualmente por cinco ruas vizinhas, que hoje formam o quarteirão das artes, e desde 2007 que se organizam inaugurações de exposições simultâneas, onde as galerias abrem as portas gratuitamente e mostram as suas novidades. “Eram eventos únicos que juntavam milhares de pessoas, algumas vinham de Lisboa, Braga ou Coimbra, tínhamos o patrocínio de várias marcas e muito merchandising, mas depois veio a crise económica e vi galerias a fecharem.”
Fernando Santos permaneceu e até abriu um novo espaço, mais pequeno, do outro lado da rua para mostrar o trabalho de artistas emergentes e obras de pequeno formato. Quase todos os conhecem na zona, já ajudou locais e estrangeiros a comprar casa nas redondezas e orgulha-se de ter sido pioneiro a “desbravar caminho”. Lamenta não existir um museu de arte contemporânea portuguesa, “capaz de dar visibilidade aos artistas nacionais”, e não tem dúvidas de que o quarteirão que ajudou a promover “é um projeto cultural único no país que devia ser mais acarinhado pela autarquia”.
“Somos agentes culturais, verdadeiros museus vivos e urbanos, merecíamos que esta zona, com tanto potencial e turismo, fosse mais embelezada, que houvesse uma rede com outros espaços, como a galeria municipal ou o Palácio de Cristal. Atualmente a câmara tem uma verba anual de 100 mil euros para comprar obras de arte para a sua coleção e apoia na comunicação das seis inaugurações conjuntas por ano, mas podia fazer muito mais.”
A primeira galeria a instalar-se em Miguel Bombarda completa 30 anos de vida em 2023, irá lançar um livro sobre a sua história e as novidades não ficam por aqui. “Vamos aumentar o espaço para o dobro para fazer uma ligação direta para o Largo da Maternidade. Quero que a galeria não seja apenas um local de passagem para mostrar arte, mas um espaço de tertúlias, conferências e conversas, com uma programação regular, onde seja possível ler, pesquisar e beber um copo.”
Marina Costa, gerente do Centro Comercial Bombarda
“Já temos provas dadas e algum poder. Agora somos uma associação”
Nasceu em Lisboa, mas aos três anos mudou-se para o Porto e foi a Norte que firmou raízes. Estudou design gráfico e tem na pintura, na arquitetura, no restauro, na fotografia e na serigrafia especiais interesses. “Sempre gostei de coisas manuais e antigas, não deixava ninguém deitar catálogos e papéis de parede ao lixo, via sempre uma possibilidade qualquer naquilo.”
Em 1995, Marina Costa abriu uma loja com o pai, junto à Quinta do Covelo. Do lado do progenitor reinavam as velharias, as gravuras e a pintura, do seu lado, uma “grande misturada”. “Vendia roupa do Luís Buchinho e da Maria Gambina, que eram meus amigos e tinham acabado o curso, livros da Assírio & Alvim que só existam em Lisboa filmes da Atalanta e organizava sessões de poesia. Dava para eu viver, o Manuel Luís Goucha era o meu melhor cliente, foi ele que me garantiu a renda durante cinco anos. Era flipado em coisas antigas, mandava vir chá e via todas as peças com tempo.”
Três anos depois, sentiu que precisava de uma morada sua, longe da alçada do pai e com um espaço maior onde pudesse vender mais coisas. “Já tinha ouvido falar que os galeristas, escultores e pintores estavam a ocupar uma rua na baixa e fui lá por curiosidade. Era uma rua feia com uma única loja, uma loja dos 300, mas apaixonei-me por uma casa antiga e foi lá que abri o Artes em Partes, em 1998.” A renda aumentou e Marina decidiu alugar os 10 quartos da casa, agora convertida em loja, a amigos com projetos artísticos, online ou acabados de nascer, misturando, assim, negócios, conceitos e vários públicos.
A ideia foi um sucesso e aos cafés, mercearias, padarias e talhos juntavam-se gradualmente livrarias, ateliês e outras lojas alternativas de roupa em segunda mão, candeeiros ou mobiliário vintage, no entanto o número 285 da rua Miguel Bombarda era uma galeria comercial que continuava fechada a sete chaves. “Sempre que passava por lá achava uma pena estar vazia, falei com o senhorio e em pouco tempo aluguei o espaço todo.”
Foi assim que em maio de 2007 inaugurou o Centro Comercial Bombarda (CCB), espaço que gere até hoje, albergando restaurantes, lojas de moda, design ou joalharia e alguns eventos, como um mercado biológico ou uma feira de discos vinil. “Comecei por fazer contratos de cinco anos, mas há gente que está aqui desde o início. Sempre tivemos uma lista de espera e muitas vezes não são os projetos que vêm ter comigo, sou eu que vou ter com eles.” O CCB tornou-se rapidamente o epicentro comercial do quarteirão, que nesse mesmo ano ganhou um mapa detalhado, um percurso delineado e uma sinalética própria.
Persistente, teimosa e destemida, Marina Costa é uma cara conhecida na comunidade artística da cidade, garante que anda sempre na rua com os olhos bem abertos, em cada esquina ouve sugestões de projetos ou queixas de lojistas e assegura que com o tempo aprendeu a gerir egos e expectativas. “Às vezes sou mesmo a psicóloga de serviço.” Depois de uma crise financeira e de uma pandemia, que obrigou a fechar o CCB e a reinventar negócios, a responsável sublinha que o bairro artístico do Porto é também “uma forma de sobrevivência e resistência” e que ao fim de 15 anos de trabalho coletivo ainda há muito por fazer, apesar de um dos passos mais importantes já ter sido dado.
“Ainda antes da pandemia criámos uma associação — chamada Quarteirão Criativo — de desenvolvimento local, urbanístico, social, cultural e económico com representares de moradores, galerias, restaurantes, lojas, hostéis e espaços de coworking. A ideia é termos cada vez mais voz junto das forças políticas e de quem toma as decisões. Sinto que já temos provas dadas e algum poder, mas agora somos uma associação. Se esta rua fosse minha, tornava-a pedonal, aumentava os passeios, criava zonas para cargas e descargas e dinamizava-a com mais investimento para eventos.”
Ana Alves da Silva, designer de comunicação
“Há um grupo de pessoas com interesses comuns e isso sente-se quando se passeia pela zona”
Natural de Braga, Ana Alves da Silva instalou-se no Porto com 18 anos para estudar design de comunicação na Faculdade de Belas Artes, isto numa altura em que a cidade era capital europeia da cultura. “Lembro-me de visitar Serralves e a Livraria Lello, de ir às manifestações no Rivoli e no Mercado do Bolhão e de expor o meu trabalho de finalista no Cinema Batalha. Não conheço o Porto fantasma, mas sim uma cidade cheia de pessoas, ritmos e uma oferta cultural em crescimento.”
Visitou a rua de Miguel Bombarda pela primeira vez à boleia dos cartazes que via na faculdade e que anunciavam exposições e instalações artísticas naquela morada. “Nessa altura as galerias já existiam, mas não eram tão abertas ao público, tinham uma dinâmica diferente, já as lojas surgem muito com o impulso do CCB.” Ana Alves da Silva terminou o curso em 2006 e logo a seguir é convidada por Marina Costa para pensar num plano de comunicação que dinamizasse as inaugurações simultâneas que já aconteciam periodicamente. “Havia uma união, mas sem força, sem identidade, sem uma intenção concreta e que chegasse efetivamente ao público.”
Um ano depois, Ana desenha uma imagem, faz um site, idealiza cartazes, cria uma marca e envolve lojistas e galeristas no processo de construção de uma identidade. Num mapa traçou seis ruas do quarteirão – Miguel Bombarda, Breiner, Rosário, Maternidade, Adolfo Casais Monteiro e D. Manuel II — antevendo que o projeto poderia crescer, e definiu seis inaugurações simultâneas por ano, tornando o evento não exclusivamente focado nas visitas guiadas às exposições das galerias de arte contemporânea, mas contando com a participação de todos os projetos locais e independentes sediados na zona.
A intenção passava por chegar não apenas a uma comunidade artística e curiosa, mas também ao público mais generalista. “O objetivo foi cumprido, os números falam por si, mas as dificuldades foram muitas, não havia a noção de economia local que temos hoje. Lembro-me de começar a desenhar um desdobrável e duas ou três semanas depois os espaços tinham fechado e era obrigada a alterar os conteúdos todos.”
Apesar de ser flutuante e estar em permanente construção, o projeto tem ao mesmo tempo uma coerência na linguagem, nos produtos que estão à venda e no espírito que se vive em cada evento. “Aqui há um grupo de pessoas com interesses comuns e isso sente-se quando se passeia pela zona e observamos o que nos rodeia. Neste quarteirão tentamos que os negócios antigos comuniquem com os mais novos, que ninguém se anule e todos cresçam em conjunto.”
Ana Alves da Silva defende uma articulação maior do que se vive aqui com outras zonas da cidade e sublinha que o fenómeno de Miguel Bombarda não é apenas comercial ou artístico, é também social e multicultural, uma vez que nos últimos anos são várias as nacionalidades que se instalaram naquela zona. “O Sebouh Soghomonian, por exemplo, é sírio e veio para o Porto como refugiado em 2011, casou com uma portuguesa, tiveram uma filha e abriu um restaurante que é um sucesso. Uma polaca que andou a viajar pelo mundo nunca chamou casa a nenhuma cidade, mas conseguiu fazê-lo aqui. O que podemos fazer com estas pessoas? Integrá-las na nossa comunidade.”
O quarteirão das artes portuense conta atualmente com 15 galerias, 27 lojas e cerca de 100 espaços distribuídos por seis ruas, ao longo de 15 anos organizou mais de 90 eventos, capazes de juntar música, arte urbana, dança, sustentabilidade ou gastronomia, mas no próximo dia 24 será especial. Para celebrar os 15 anos das inaugurações haverá uma programação com direito a concertos, oficinas criativas, aulas de dança na rua, DJ set, intervenções artísticas no espaço público com a curadoria de Hazul e outras surpresas. Tudo acontecerá entre as 16h e as 20h simultaneamente nas seis ruas mais criativas da cidade do Porto.