Março, 1970. O Diário de Lisboa é distribuído pelos lares de Portugal. A manchete é extraordinária: “Neve no norte do país”. Ao mesmo tempo, abaixo, uma observação ordinária: “Visado pela censura”. Adiante, a edição daquele sábado, dia 14 de março, dedica-se ao lazer. No Monumental, “A Pobre Milionária” é uma comédia à francesa, “com duas horas de gargalhadas”. A “Batalha para Além das Estrelas” — “empolgante filme de ficção científica” – está no Coliseu, com preços populares. E ainda, estranhamente, quatro figuras de capacete e armadura circundam o anúncio mais resoluto daquele jornal:
“Fala-se muito da nova música portuguesa. QUARTETO 1111. No seu primeiro LP dá o exemplo de como se faz o melhor.”
Há 50 anos, a banda de José Cid lançou um dos álbuns fundamentais da canção portuguesa, não tinha gargalhadas, canções de amor, fantasias empolgantes ou apreço popular. O álbum Quarteto 1111 não trata Portugal de 1970, sequer de 2020, com paninhos quentes, é uma força de resistência e alarme social, integrado na tradição do nosso cancioneiro, do medieval ao contemporâneo, sem qualquer paralelo na história do pop-rock português. “Inspirámo-nos não sei como, nem com quem, era tudo parte da loucura da juventude”, recorda agora José Cid, reiterando ainda, na mesma coragem que está por detrás das melhores canções do rock nacional da época: “Podem fazer os programas de televisão ou escrever os artigos que quiserem, o verdadeiro underground português começou com os Quarteto 1111”.
O comentário de José Cid não é descabido. Enquanto Portugal era essencialmente embalado pelas canções do nacional cançonetismo, quatro miúdos reúnem-se num anexo no Estoril, Alapraia, e concebem o arquétipo português de uma banda de garagem, de um movimento underground, à revelia do gosto vigente. “O meu pai é que sugeriu transformarmos a garagem em estúdio, até porque não tínhamos carro”, explica Michel Mounier, o baterista cujos pais cederam a própria casa às excentricidades de José Cid. “Montámos a garagem como se fazia nos estúdios, com vidros oblíquos, e forrámos com embalagens de ovos, que é ótimo para o som”.
No programa “Discorama”, de Carlos Cruz, podemos ver as caixas de ovos e o restante aparato, instalado com ajuda do técnico Paco Ayuoso, um vislumbre para uma época diferente, quando a gente de Alapraia se sentava na mureta próxima à garagem para ouvir este exercício de liberdade. “Na Alapraia partimos à procura de qualquer coisa de verdadeiramente novo, foi onde tudo começou”, lembra Cid sobre a garagem que tinha um número de telefone particular: 1111.
O álbum Quarteto 1111 é gravado ao longo de 1969 de forma totalmente independente na garagem de Michel Mounier, com produção de Jorge Hipólito e Mário Soares. “Gravávamos a bateria, baixo e as teclas ou a guitarra num Revox [gravador de fita magnética], e depois passávamos desse Revox para outro, gravando as vozes e as restantes guitarras”, explica Cid. “Era uma trabalheira, horas e horas a fio de tentativas, quando conseguimos uma gravação não era o take bom. Foi um trabalho exaustivo e de muito rigor”. “Fizemos coisas extraordinárias como gravar com uma fita ao contrário”, acrescenta Michel, dando uma série de outros exemplos, desde atiçar um cão para captar um latido, a colocarem José Cid dentro do seu Volkswagen a tocar flauta — “tinha uma boa acústica, o carro era almofadado”. As bizarrias não assustam o pai de Michel, funcionário da Marconi em Lisboa, que depois de um dia de labuta e transportes públicos, tinha miúdos a brincar com baldes de água e a fazer sons de grilos na garagem (“A Fuga dos Grilos”). “O meu pai adorava, sempre gostou muito de música, ele é que me apresentou o ‘Rock Around the Clock’”. A ideia dele é que se queria controlar os filhos era melhor convidá-los para estarem em casa. Passamos muitas noites ali”.
Numa dessas noites, o Volkswagen de José Cid despista-se na Marginal, capota e o compositor embate no espelho retrovisor. “O Zé estava com um amigo nosso, que saiu do Volkswagen todo escalavrado, foi a pé desde o acidente até à Alapraia e bateu à porta assustado a dizer que estava tudo morto, tudo morto”. No mesmo ano, na mesma estrada, morre João Manuel Alexandre, radialista do célebre programa “Em Órbita”, a quem é dedicado o álbum Quarteto 1111. Naquela noite, Portugal não foi privado de um dos seus grandes compositores pop. “Foram seis meses de recuperação. Não via da vista direita, só via da esquerda”, revela-nos José Cid deste período de má memória. “Foi muito traumatizante”.
A garagem é um espaço de convívio em tempos de repressão. Michel traz discos novos de além Pirenéus, consequência feliz do emprego na TAP, onde esteve durante 42 anos. “Apareciam muitas pessoas, inclusivamente o Michel não gravou as baterias todas do álbum porque estava a voar, aparecia o Necas [Eduardo Oliveira], o Celso de Carvalho, o Carlos Zíngaro”, conta Cid. Carlos Zíngaro, dos Plexus, é o violino em “João Nada”, temerosa canção que trata o desconsolo da emigração, os caminhantes “em busca de melhor sorte”, com pouco mais que, “saudades do seu país”. Outra com Zíngaro é “Domingo Em Bidonville”. O desfasamento da voz de José Cid, acompanhado pelo saudoso acordeão, recria naquela estação parisiense — “da Gare de Austerliz” — uma paragem para dentro do corpo emigrado, com uma tristeza que não se consegue explicar.
O sentimento de deslocamento deve ter repercutido em Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tonicha e Maria Bethânia, inesperadas testemunhas oculares de outro ensaio na garagem. José Cid cruzou-se com os músicos brasileiros nas arcadas do Deck, até hoje o refúgio da juventude na Linha de Cascais. Outro convidado inesperado era o gigante manso da canção de intervenção: Adriano Correia de Oliveira. “Tínhamos uma grande cumplicidade, estávamos sempre na brincadeira”, conta José Cid. “O Adriano era meu amigo de Coimbra. Depois esteve comigo na tropa. O Adriano tinha uma voz extraordinária. Ele ainda pensou muito seriamente gravar connosco, mas acabou por não o fazer, acho que o Partido Comunista não permitiu”. A única versão do álbum Quarteto 1111 é “As Trovas Do Tempo Que Passa”, de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Alegre, o poeta que esteve na Guerra Colonial em Nambuangongo, município de Angola que inclusivamente inspirou “Lenda De Nambuangongo”, uma das canções mais truculentas do álbum:
“Ao norte de Angola
há altas montanhas
que guardam tesouros
nas suas entranhas
Ao norte de Angola
rajadas de vento
tingiram o céu
de sangue cinzento”
A fronte combativa deste álbum que celebra cinco décadas está muito distante das origens do Quarteto 1111. Michel Mounier e os irmãos António Moniz Pereira e Jorge Moniz Pereira — sobrinhos do professor Moniz Moreira, figura emblemática do Sporting — integravam a banda de instrumentais Conjunto Mistério. “O meu irmão estava a tirar Educação Física no INEF e disse-me que tinha um colega com jeito e com coisas giras. Era o Zé Cid”, lembra-se Michel. “Eu tinha um piano na garagem, o Zé tocou logo o esquema pronto de ‘A Lenda d’EL-Rei D. Sebastião’, que coisa fantástica”. “Fui aprovado imediatamente”, confirma Cid, que com a saída de Jorge Moniz Pereira, e a entrada do baixista Mário Rui Terra, compõe a formação que gravou o álbum Quarteto 1111.
Ao lado do compositor, António Moniz Pereira — falecido em 2008 — é um dos principais responsáveis pelo som característico da banda, com um dedilhar sensível que capta os tons do tempo, desde o revivalismo folk ao psicadelismo de final de sessenta. “Ele era muito inteligente e criativo, não era um super executante, mas era um executante com muito bom gosto. Costumo dizer que era o esteta da banda”, diz-nos Cid, enquanto Michel realça: “Se ouvirmos bem ‘A Lenda d’EL-Rei D. Sebastião’ tem ali um sinal de viola muito bonito”.
“A Lenda d’EL-Rei D. Sebastião” é uma das estreias mais memoráveis de uma banda rock em Portugal e logo em 1967, meia dúzia de anos após a primeira canção do género no nosso país. O programa revolucionário “Em Órbita”, do Rádio Clube Português — 97.4 — que dedicava-se exclusivamente aos novos ritmos anglo-saxónicos, abriu uma única exceção para “A Lenda d’EL-Rei D. Sebastião”, introduzindo a canção com um texto que continua a ecoar profético tantos anos depois:
“O que neste trecho impressiona mais, o que nele se inclui de mais nitidamente inédito, é que, em cima de uma melodia de encantadora simplicidade, há uma história singela, popular, portuguesa, dita em versos simples, certeiros, desenfeitados. Conta-se uma lenda. Como lenda que é, trazida até hoje pela herança popular, pertence ao folclore, ao património mais íntimo da comunidade e dos costumes do nosso país. É um tema eterno, de criação nacional e de validade perene e universal”.
O momento memorável é gravado em fita pelos mais afoitos, numa altura que o acesso a este género de música era escasso. Entre os ouvintes está Hugo Ribeiro, técnico da Valentim de Carvalho, figura omnipresente da história da música popular portuguesa, que fica imediatamente convencido da urgência de contratar esta banda.
Segue-se “Balada para D. Inês” — apresentada no Festival da Canção de 1968 — “Dona Vitória”, “Meu Irmão”, “Nas Terras do Fim do Mundo” e “Génese”, canções que Miguel Augusto Silva, fundador da editora Armoniz, descreve como “pop barroco misturado com rock progressivo” e “influenciado pelos cancioneiros medievais e renascentistas”.
“As edições da Armoniz não são feitas com visão comercial, são decisões puramente editoriais tendo em conta a importância da qualidade musical que esses discos tiveram no panorama da música portuguesa”, responde quando perguntamos porquê ter reeditado em 2016 o álbum que procede os primeiros singles de Quarteto 1111. “É o disco mais marcante do pop-rock português. Existe uma clivagem significativa entre este disco e o que se fez a seguir, sobretudo se enquadrarmos a experimentação e a qualidade da banda naquele paradigma musical”.
Uma das provas fulgurantes desta clivagem é a belíssima “Maria Negra”, canção que supera o seu tempo, tingida pela pop barroca, mas sem a ingenuidade dos contemporâneos ingleses. A Maria Negra é desprezada, não tem história, não tem nome, não tem nada, “mas continua a sorrir”, rodeada pelos brancos, “senhores do mundo e de tudo”. Ou “A Fuga dos Grilos”, onde a banda literalmente desceu e subiu escadas para transmitir a correria dos desertores da Guerra Colonial, inspirado pelo orgão swingado dos Booker T. & the M.G.s, blues que encadeiam novamente em “Escravatura”.
“É um álbum biconcetual sobre a situação política e social que se vivia”, explica José Cid, o compositor e letrista de praticamente todas as faixas. “Eu queria falar sobre as nossas preocupações, a falta de liberdade de expressão, a Guerra Colonial e emigração injusta, eram coisas do nosso dia a dia que entraram obrigatoriamente na escrita das canções”. Num ato extraordinário de coragem, e loucura, um lado de Quarteto 1111 é totalmente dedicado à emigração e o outro à Guerra Colonial. O tiro de partida é o desafiante “Prólogo” recitado por Rui Coelho Dias, manager e relações públicas da banda:
“Quando Deus criou o mundo
Deu ao Homem uma só cor de pele
Deu-lhe também um vale tranquilo
Onde pudesse viver em paz
Mas todos os infernos
Uma onda de fome e frio invade o vale”
E depois:
“Talvez que os homens
Possam um dia viver, num vale
Onde não haja fome nem frio
E sejam verdadeiramente irmão”.
“Fazíamos aquilo com convicção, não era para vender, era a nossa crítica”, garante Michel, a confirmar que nenhum membro da banda era indiferente às angústias que assolavam José Cid e maltratavam a juventude de Portugal. “Eram temas muito controversos e muito censurados. O Quarteto 1111 teve mais de uma dezena de letras censuradas”, reforça o compositor. “Ninguém foi preso porque o regime salazarista perseguia basicamente os cantores que estavam inseridos no Partido Comunista.” “Pigmentação” incomoda o regime particularmente, explicando numa jam desenfreada de órgão e marimbas:
“Se a pigmentação do negro
É problema universal
A pigmentação do branco
é pigmentação normal”
O álbum é censurado pela PIDE, que destrói todos os exemplares à vista e proíbe a transmissão das faixas.
Em agosto, vida que segue, aproveitando a inevitável maré balnear da Linha de Cascais, José Cid decide organizar o Festival dos Salesianos, um programa com um cartaz ambicioso, que o Diário de Lisboa anuncia como “Música Moderna na Mata do Estoril”, onde “exibem-se conjuntos e cançonetistas com largas audiências nos meios jovens”. O vocalista do Quarteto 1111 diz ao Diário Popular que é uma proposta diferente, e que não faz sentido “um festival tipo corrida de cavalos, em que o que conta é o prémio”. Porém, no dia 26 de agosto, em cima da hora, a Polícia de Choque irrompe pelo festival adentro e dispersa a multidão. No dia seguinte, não existe nenhuma notícia no Diário Popular, no Diário de Lisboa, ou qualquer outro jornal. “O material estava todo montado no palco, aquilo foi uma desgraça, não estávamos à espera. Aparece a polícia e aparece os cães”, diz-nos Michel. “Alguém lembrou-se de ir buscar gatos para distrair os cães e na confusão a polícia até agrediu familiares do Américo Thomaz, que estavam num café ao lado”.
Até ao final do ano, a banda grava versões para o filme “O Cerco” de António Cunha e Telles e edita os singles “Back To The Country” e “Todo o Mundo e Ninguém” — este último reaproveitado recentemente por Jay Z como sample no álbum 4:44. Em 1970, ao invés das cópias apreendidas, o álbum Quarteto 1111 deveria estar a ecoar nas salas dos portugueses. Aos poucos, Michel dedica-se cada vez mais à TAP, o baixista Mário Rui Terra sai da banda, e entra um portista que altera a dinâmica do grupo: Tozé Brito.
“No espírito a banda não mudou, mas ter outra pessoa para cantar comigo fez muita diferença”, reflete Cid, que no ano seguinte liderou o Quarteto 1111 num concerto apoteótico em Vilar de Mouros. Na primeira edição do festival, a banda canta em inglês para driblar a censura, enquanto em França, José Mário Branco produz três álbuns que alteraram drasticamente o paradigma da canção popular — Cantigas Do Maio de José Afonso; Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades do próprio José Mário Branco, e Os Sobreviventes de Sérgio Godinho. A liberdade estava a passar por ali, distante de uma garagem em Alapraia.
“O 1111 acabou um bocadinho porque o Michel já não podia, estava a voar, o ToZé Brito tinha a sua carreira a solo, eu também”, justifica José Cid. “E começámos a tocar com alguns elementos que eram bons músicos, mas não tinham o espírito do Quarteto 1111. Foi melhor assim, cada um para seu lado”. Os pais de Michel Mounier vendem a casa, o estúdio é abandonado, e José Cid começava o seu trajeto particular na canção popular. “Não éramos de esquerda, nem de direita, e isso chateou muita gente. Éramos batidos de todo lado. E durante muitos anos a nossa música não se ouvia”, comenta o baterista. “Só recentemente é que a malta nova fica admirada com estas músicas”.
Como sempre, o compositor José Albano Cid de Ferreira Tavares é mais irrequieto, incendiário, e sobretudo, corajoso: “Eu tinha uma objeção de consciência que mantive durante toda a minha vida. Que ninguém tenha dúvidas neste país, mesmo que a opinião pública não aceite, o Quarteto 111 foi a melhor banda da sua época, o Quarteto 111 está na origem”. Está na origem e na eternidade:
“Oiçam o grito da Natureza
Quando se sentiu abandonado
Oiçam os protestos dos trigais
Gritam pois partiu o seu amante
O Homem
Negros vão cantando pelas ruas
Brancos emigraram para longe
Todos procuram encontrar Deus
Todos procuram a eternidade”
(“Epílogo – José Cid)