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A carreira de Ana Moura fez-se na Península Ibérica. Em Portugal, passou pelo Eleven, chefiou o Cave 23 e a Bacalhoeira Moderna. Em Espanha, passou pelo El Arambol, El Almacen, Arzak e Astelena.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

A carreira de Ana Moura fez-se na Península Ibérica. Em Portugal, passou pelo Eleven, chefiou o Cave 23 e a Bacalhoeira Moderna. Em Espanha, passou pelo El Arambol, El Almacen, Arzak e Astelena.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Que Alentejo é este que a chef Ana Moura serve em Porto Covo?

É a nova cozinha alentejana num menu que se faz de memória, tradição e inovação. Uma chef que não deixa a equipa e a sala, mesmo sentido FOMO dos amigos em Lisboa. Fomos ao Lamelas, em Porto Covo.

A pele da chef Ana Moura está com cores de sol, já vai acusando uma vida que se faz à beira mar. Passaram-se dois anos desde que se mudou para Porto Covo, vila no litoral alentejano. É de cabelo puxado e apanhado para trás, que, concentrada, finaliza os pratos no balcão da cozinha que está aberta para a sala. A diluição das barreiras entre quem prepara e quem usufrui foi um dos elementos que mais a atraíram na primeira vez em que visitou o espaço que seria o futuro Lamelas, restaurante de portas abertas desde maio de 2021, cujo nome é uma homenagem aos avós maternos. Foram eles que cuidaram dela durante os verões passados nesta terra da costa vicentina. As temporadas, lembra, eram enormes, não tinham os dias contados, pareciam infinitas. Brincava na rua, ia às rochas, toda a gente a conhecida.

O dia é de sol, corre uma brisa que nos escuda do calor. Sentamo-nos numa mesa no canto da escondida esplanada nas traseiras do restaurante, uma belíssima surpresa com vista privilegiada para as águas e sossego em Porto Covo numa quinta-feira de julho. “Água da torneira em garrafa”, anuncia desde logo o funcionário, dando pistas de alguns dos princípios que, “sem fundamentalismos”, aqui vão sendo praticados.

Se o nome é uma homenagem aos Lamelas que dela cuidaram, o que sai da cozinha de Ana Moura é também o honrar dos sabores e costumes deste seu Alentejo, onde tenta sempre utilizar o produto que está mais próximo — do patê de fígados de abrótea (um peixe que existe em abundância na região) ao almece com peixe curado, a seleção diária das “entradinhas” são bom exemplo disso, não fizessem referência ao hábito do bom petiscar da região.

As entradinhas incluem desde paté de fígados de abrótea, saladinha de polvo, saladinha de ovas, lulas fritas com maionese de limão, almece com peixe curado, salada de gaspacho (entre 5€ e 6€)

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Mas a tradição não está sozinha e anda de braços dados com a destreza criativa e o método de quem se formou no universo da alta cozinha. Na dúvida, basta saborear os canelones de sapateira, com salada de funcho e molho feito a partir da casca exterior deste crustáceo, o coral, para provar esta “nova cozinha alentejana”. O currículo de Ana Moura inclui uma temporada expressiva em Espanha, com destaque para o Arzak, três estrelas Michelin, em San Sebastian, onde sempre sonhou trabalhar. Desta zona do País Basco trouxe várias coisas, incluindo a tarte de queijo, inspirada na versão do popular no La Viña, que saboreamos na sobremesa.

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O serviço terminou. Ana Moura está pronta para se sentar connosco. Reconhece-nos da última edição dos prémios Mesa Marcada. Nesse dia, ela estava nervosa, recordamos. Afinal, estava nomeada para a categoria de Revelação do Ano, numa edição em que a organização destacou, precisamente, a fuga dos grandes centros urbanos, premiando vários projetos fora de Lisboa e do Porto. Acabou por vencer André Cruz, do Feitoria, mas não era essa a questão sequer. Não tinha receio de ganhar ou de perder, os prémios pouco lhe interessam, percebemos depois. “O meu medo era de ganhar e ter de ir falar em público”, brinca. Não é que fique nervosa com a ideia de ter de discursar para várias pessoas. Numa cerimónia que juntava os maiores protagonistas da gastronomia em Portugal, eram aquelas pessoas em particular, as que “admira”, que a deixavam especialmente inquieta. Será isto também o reflexo de um setor que, entre a sua elite, é conhecido por ser altamente competitivo? Não, pelo contrário, considera: há tantos problemas para resolver, que a classe está cada vez mais unida. É esse o pontapé de saída para a nossa longa e descontraída conversa, onde entram vários temas, desde o FOMO, à crise dos recursos humanos no setor, à gestão de um negócio que se faz numa pequena vila alentejana.

Ana Moura mudou-se de Lisboa para Porto Covo e abriu o Lamelas, em maio de 2021.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Achas que essa sensação pode ter que ver com o facto de te teres afastado e de estares em Porto Covo há dois anos?
Talvez, mas acho que há tantas coisas para resolver — os no shows, a falta de trabalhadores… Acho que as pessoas acabaram por unir-se por terem problemas em comum. Muito mais do que antigamente, em que havia muito menos restaurantes, em que era só abrir e havia público. Há tanta coisa a acontecer. Acho que começámos a respeitarmo-nos uns aos outros e a perceber que se nos unirmos, se formos todos melhores, vamos ter um público melhor e vamos estar cheios. É assim que vejo. Claro que estando aqui é completamente diferente, não sou concorrência para a malta de Lisboa ou do Porto, não tem nada a ver. Mas cada vez vejo mais que as pessoas são amigas umas das outras. Do que eu vejo, toda a gente se dá bem. Acho que já não há aquela competitividade. Ou se há, acho que é uma competição saudável.

Que outros problemas na área têm potenciado esta entreajuda maior?
Acho que os no shows, os clientes fazerem reservas e não aparecerem. Houve um momento muito grande à volta disso. Acho que isto de Espanha ter mais estrelas Michelin do que Portugal também pode ter ajudado porque temos orgulho no nosso país, e queremos que evolua no setor. E ajuda que todos tenhamos estagiado uns com os outros, ou que tenhamos, pelo menos, passado por sítios parecidos. Faz com que nos identifiquemos todos uns com os outros de alguma forma.

Está contente com a cerimónia do guia Michelin exclusivamente portuguesa?
Não diabolizo o guia espanhol, ate porque já trabalhei em Espanha e adoro Espanha. Mas acho que este é o caminho que faz sentido.

Isto significa que vai haver mais estrelas para Portugal?
Espero que tenhamos mais estrelas por termos aumentado a qualidade e não por nos termos separado de Espanha.

Algum dia vai apontar para um Bib Gourmand?
A verdade? Nem tenho bem a certeza do que é que isso é [risos]. É o quanto me preocupo [risos]. Acho que os prémios são o que são e aparecem quando têm de aparecer. Não é isso que me inquieta. A minha prioridade é que os clientes saiam daqui com um sorriso na cara, que digam que foi a melhor refeição que tiveram em Portugal, quando são estrangeiros, ou que digam que gostaram muito, quando são portugueses. Preocupo-me também em ter uma equipa que está feliz e que gosta de vir de trabalhar. E ter um restaurante financeiramente estável e rentável.

Tem tido esse feedback?
Acho que sim. Tenho tido clientes que voltam cá e que me dizem que gostaram mais do que da primeira vez. É bom sinal. O nosso serviço de sala também melhorou, estamos com uma boa equipa de sala. Vamos afinando algumas coisas. A felicidade do cliente não depende só da comida, também depende do serviço, depende de tanta coisa.

Falava na crise dos recursos humanos. Em Porto Covo, sente-se da mesma forma ou é diferente?
Em Porto Covo uma das grandes dificuldades é arranjar casas, que não há. É difícil alugar uma casa a longo prazo. A dificuldade de alojamento é uma dificuldade real. Depois também já não é fácil conseguir pessoas que queiram fazer horários repartidos.

Consegue fazer adaptações? Há muitos sítios em Lisboa que estão a acabar com os repartidos para conseguirem reter trabalhadores.
Não consigo fazê-las. Em Lisboa ou no Porto, um restaurante pode funcionar o dia todo. Aqui, não dá. Mas já pensei muito nisso. Para já, ainda não é viável.

Reter aqui é mais fácil? As pessoas que trabalham consigo vieram todas de fora ou são de cá?
É a mesma coisa. Nenhuma é de cá, algumas trabalhavam relativamente perto, já. Mas ninguém é daqui.

À esquerda, arroz cremoso de peixe e camarão (32€); à direita, Lula recheada com migas de grelos, e paté de ovas de pescada (26€)

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

A mudança de Lisboa para Porto Covo e a abertura do Lamelas foram situações potenciadas pela pandemia? Ou seja, é um daqueles casos que veio para campo e acabou por ficar e mudar de vida?
Não. Durante pandemia estive em Lisboa. Podia ter vindo para cá, mas aqui ia ser muito mais difícil comprar comida porque aqui estava tudo fechado e ao menos em Lisboa tínhamos os supermercados abertos. Vim para cá de férias em junho de 2020 e foi nessa altura que os donos do espaço me convidaram para o visitar. Vim cá ver e gostei tanto que quis ficar com ele.

Nesta altura já estava fora da Bacalhoaria Moderna.
Sim. Fechou.

Por causa da pandemia?
Não foi só por causa da pandemia.

Vamos ainda mais atrás. Acumula muitas férias e fins de semana aqui em Porto Covo, desde pequena.
Sim. O meu avô nasceu cá. A minha bisavó também nasceu cá e viveu cá. O meu avô tinha alguns terrenos e até tem uma rua com o nome dele aqui — não me lembro qual é que é [risos], só sei que acaba em Lamelas. Os meus pais deixavam-me cá no verão, durante junho, julho e a agosto, quando tínhamos aquelas férias gigantes de verão (acho que já não existem férias tão grandes!). Passava cá essas temporadas com o meu avô, que já estava reformado. A minha avó também. Era daquelas senhoras que nunca trabalhou na vida. Ao contrário de Lisboa, em que passava muito tempo em casa, aqui estava sempre na rua, nas rochas, a andar de bicicleta, andava sempre sozinha de um lado para o outro, é uma terra muito pequena, toda a gente me conhecia. Acabei por crescer muito aqui e as minhas raízes gastronómicas são muito daqui.

Sente-se mais enraizada aqui?
Sim. Sou de Lisboa, tenho noção disso, é a minha cidade. Mas as minhas raízes de crescer estão aqui. Sempre me senti em casa em Porto Covo.

Partilhou no Instagram algumas memórias com o seu avô. Por exemplo: o que é a ouriçada?
Era uma coisa que se fazia antigamente, na altura da Páscoa, mais ou menos. Os pescadores apanhavam ouriços, punha-se caruma, pegava-se fogo à caruma, os ouriços ficavam cozinhados. A malta levava os farnéis e ficavam lá todos a comer e a beber. Agora é uma coisa mais comercial — vendem-se mais coisas, vendem-se bebidas. Antigamente, era só a malta daqui. Os ouriços davam para toda a gente, agora é preciso muito mais.

Antes de se fixar neste setor, ponderou outra área. Li que não lhe deviam perguntar porque é que foi para cozinha, mas antes como é que foi parar a marketing. Como é que isso aconteceu?
Naquela altura achava normal ir para a faculdade. Achava que tinha de ser, que esse é que era o caminho normal: escola, faculdade e depois trabalhar.

Acabou a licenciatura?
Acabei e gostei muito de estudar marketing, sobretudo gestão, que continua a ser muito importante na minha vida — deu-me bases para este trabalho, desde as fichas técnicas a perceber como funcionam os pagamentos, toda este logística. Gostei muito de marketing e de gestão enquanto áreas de estudo, mas não me imaginava a trabalhar nessas áreas.

E do marketing para a cozinha?
A verdade ou a verdade jornalística? [risos] A verdade é que sempre adorei fazer cozinha. Odiava limpar, arrumar o quarto, mas, se houvesse um jantar em casa ou com amigos, passava o dia a cozinhar. Adorava, não era trabalho para mim. Procurava e lia receitas, fazia coisinhas bonitas. Quando acabei o marketing não queria muito começar a trabalhar. E o meu pai disse-me: porque é que não vais estudar cozinha? E eu pensei: olha boa, mais um ano de férias. A verdade é esta, não é muito bonita de se dizer. Fui estudar cozinha, estagiei no Eleven e percebi que era mesmo isto que gostava fazer.

Seguiu logo para Espanha depois?
Sim, porque o Joachim Koerper [chef do Eleven] era consultor num hotel em Espanha. Acabei por ir para lá 15 dias ajudar, quando estava já a fazer quase dois anos no Eleven. Gostaram muito de mim e pediram-me por favor para ficar lá a trabalhar. E foi isso que aconteceu. Entretanto, as coisas acabaram por não correr assim tão bem, porque o Koerper acabou por sair. Estive lá só oito meses, mas foi um bocadinho a forma como acabei por me ligar a Espanha.

Trabalhou num total de quatro restaurantes lá.
Sim. No Eleven e neste hotel trabalhei mais o fine dining, então senti falta das bases da cozinha tradicional. Através de pessoas fui depois para o El Almacén, em Ávila, para aprender mais neste registo. Depois fui parar ao Arzak, que era o meu sonho desde que comecei a trabalhar em cozinha. Tinha ido lá jantar aos 18 anos. Chateava toda a gente com isto. A chef de cozinha com quem eu estava a estagiar em Ávila um dia estava a jantar com o Juan Mari [Arzak] e acabei a ir para lá.

Lembra-se do dia em que soube?
Lembro. Eram três da manhã, estava de pijama em casa, onde tinha pouca rede. Ela [a chef em Ávila] começou a ligar-me, atendi e ela disse: “Vou passar ao Juan Mari”. Sai de casa de pijama a correr e fui para a rua falar ao telefone. A chamada não podia cair, era muito importante. Ele disse: “Queres vir estagiar comigo, não é? Começas quando, em janeiro? Então vá”. Ele é assim. Pronto, está feito.

Numa publicação do Instagram, a propósito de um jantar no Arzak em janeiro, escreveu que trouxe muitas coisas de lá. Que coisas foram essas?
Acho que essencialmente, dessa fase de vida, trouxe a forma como as pessoas vivem e sentem a gastronomia.. É impressionante a quantidade de festivais gastronómicos em San Sebastian. E mesmo nos festivais não gastronómicos, de música, por exemplo, há sempre alguém a fazer comida, sempre coisas boas. Não é cá hambúrgueres e cachorros, são sempre coisas boas, típicas de lá, como por exemplo a chistorra, que é tipo uma linguiça, mas mais mole por dentro… As pessoas vivem muito a gastronomia. As pessoas juntam dinheiro para ir aos restaurantes. Isso é muito bonito de se ver. A exigência dos clientes é tanta que a qualidade dos restaurantes sobe. Também trouxe amigos e muito crescimento. No Arzak éramos muitos estagiários, éramos para aí 30. Havia peruanos, mexicanos, canadianos, australianos. Abriu-me muito a cabeça, deu-me uma visão de mundo muito diferente ter ido para fora.

Fala-se muito nesta coisa da descentralização dos restaurantes, que fogem de Lisboa e Porto. A Ana é um exemplo disso. Quais é que são as coisas boas de estar aqui e não numa grande cidade?
Tenho de pensar um bocadinho nessa resposta. É difícil responder. A vista, a qualidade de vida, são diferentes. É mais calmo, nesse aspeto é melhor.

A questão dos preços, por exemplo… a renda não é uma vantagem?
Isso, claramente.

Conseguia ter este restaurante em Lisboa?
Não. Com as rendas de hoje em dia, impossível. Tinha de cobrar muito mais pelos pratos. As pessoas à vezes não percebem porque é que as coisas são tão caras, mas se tivermos de pagar dez mil euros de renda… é complicado.

Há rendas a dez mil euros?
Há. E trespasses a 250 mil, coisas assim mesmo exageradas.

A chef Ana Moura também tem um curso de sommelier. As referências que tem disponíveis no Lamelas são da região, de um raio de até 50 quilómetros.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Este tipo de vida, mais calmo de que falava há pouco, é algo com que se identifica mais?
Identifico-me mais com o caos de Lisboa, mas cada vez mais há aspetos que começam a custar-me, como aquele trânsito às quatro da tarde, que não faz sentido nenhum.

Já está aqui há dois anos. Sente a dureza do inverno junto ao mar?
O inverno é mais duro, sim. Há aqui menos gente, há menos coisas abertas. No verão há mais pessoas. Em agosto há sempre cá alguém.

É como quando éramos miúdos e passávamos o ano à espera de ver aquelas pessoas que só víamos nas férias do verão.
Sim. Às vezes até tenho medo. Perguntam-me se quero ir à praia e tenho de dizer que não, tenho de ir trabalhar [risos].

Então, prefere viver aqui? Não se sente isolada?
Às vezes. Mas não noto assim tanta diferença, porque no trabalho, no meu dia a dia, entro de manhã, tenho uma pausa à tarde, depois volto para trabalhar à noite e no final do serviço vou para casa. Era a mesma coisa em Lisboa. Às vezes é mais fácil beber um copo aqui, porque é mais rápido chegar a qualquer lado, demoro menos a chegar a casa. Acabo por viver mais nas minhas folgas do que no dia a dia. Nas minhas folgas também vou quase sempre a Lisboa.

A sua proposta gastronómica tem raízes tradicionais, mas tem uma vertente moderna também. Como é que faz esta gestão entre manter a autenticidade e dar-lhe este lado mais autoral?
Isso é o mais difícil e tenho de manter o foco para não me desviar. Quero que haja sabor a Alentejo, quero que as pessoas, quando provam, se lembrem desta região. Às vezes estou a fazer um prato e, sem querer, fujo para algo que faz menos sentido, como… pôr um molho de soja ou um rábano picante, só a título de exemplo. Depois penso: “Não, vai dar um toque muito fora”. Tenho sempre de provar o prato e perguntar: isto representa bem o restaurante? Depois tenho uns pratos mais criativos, como as lulas [fritas] ou os canenoles [recheados com sapateira], que são visualmente mais diferentes, mais bonitos, mas em que o sabor está lá todo na mesma.

Tem de criar balizas, então.
Sim. Também já tive situações em que estava quase a fugir para a alta cozinha e não pode ser. Já houve pratos que fiz e que acabei por não incluir na carta.

E o tipo de produto? Não é impactado pelo facto de estar aqui?
Isso é outra das vantagens, sim. A qualidade do peixe aqui, a facilidade em ter peixe aqui é excelente. Mas não me posso comparar com Lisboa, porque a qualidade lá também é excelente. Lisboa é o sítio onde se consegue tudo. Posso comparar-me com outros pontos do país, como o interior, por exemplo. Há zonas do interior onde o peixe chega uma ou duas vezes no máximo.

Há coisas a que não acede porque não entregam aqui?
Sim, há coisas que aqui não arranjo. O que pode acontecer é trazer de Lisboa, porque lá toda a gente entrega, até os produtores pequenos. Não fazem um desvio para me vir cá entregar, nem faria sentido que isso acontecesse. Está tudo ligado à sustentabilidade. Também temos água da torneira que oferecemos sempre ao cliente. Também temos engarrafada porque há quem prefira… mas é uma guerra para mim. Não dou água das torneiras às pessoas porque acho que elas não são importantes. Dou água da torneira às pessoas porque acho importante que se beba água da torneira. Não é por mais nenhuma razão.

Trabalha com produtos próximos daqui.
Sim, tanto em relação à comida, como com os vinhos. Muito mais do que trabalhadores locais, gosto de trabalhar com o talho daqui, com a peixaria daqui de perto, com a padaria local, com o mercado daqui. Acho importante que a economia local cresça. Isso faz com que a terra, para mim e para todos, fique melhor para todos. Com os vinhos a mesma coisa. A maior parte do vinhos da nossa carta são de produtos locais. Temos outras coisas de fora do Alentejo, mas o nosso foco principal é local, com Vicentino ou com o Monte da Carochina.

Abrótea com amêijoas em molho verde (19€)

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Quando chegou a abrótea à mesa, disse que gostava muito deste peixe, porque existe muito na região e não está em vias de extinção. Isto é exemplificativo sobre a forma como age em relação à sustentabilidade?
Não sou obcecada, mas tenho algumas preocupações de coisas que não quero usar. Gosto muito de trabalhar com sardinhas, mas se calhar não devia e se calhar por isso é que ainda não tive este ano — mas se calhar ainda vou ter. Mas tenho sempre algum cuidado com algumas coisas que podem não fazer sentido. Depois se calhar uso outras…

Neste aspeto, move-se pela intuição.
Sim, são decisões muito instintivas. Vejo produto a produto. Mas gosto de usar coisas diferentes. E, neste aspeto, a abrótea é um exemplo perfeito: é diferente de todos os outros restaurantes, não estás em vias de extinção e é de cá. Também uso o peixe-porco, que é uma espécie de carne de porco à alentejana, mas com este peixe, que é um bocadinho mais rija.

A carta tem indiscutivelmente mais peixe e marisco do que carne. Tens carne porque sentes que não podes eliminar.
Tenho dois pratos de carne porque tenho de ter. Num grupo, numa família, há sempre alguém que quer carne. Para as crianças, até tenho só a abrótea frita com batatas salteadas. Não tenho carne. Portanto, é tudo peixe, tirando estas duas opções e o couvert. A manteiga de porco, o toucinho frito, são muito típicos daqui e hoje em dia é muito raro encontrar e, por isso, decidi que o couvert seria esse.

Isto das entradinhas também é uma coisa muito típica aqui do Alentejo.
É. É bom porque na carta depois deixa de haver divisão entre entradas e pratos principais. A ideia é que as pessoas possam provar várias coisas. Tento que as coisas venham sempre em dois momentos, primeiro as entradinhas para começar a picar e depois os principais que demoram sempre mais a fazer.

Já passou por vários sítios, com registos diferentes, incluindo um três estrelas Michelin. Esta é a com cozinha com que se identifica?
Tudo o que aprendi no três estrelas tem mais a ver com a organização e coordenação, aspetos que depois se refletem na comida. O facto de ter técnica, cuidado com os tempos, com os produtos… é isso, sobretudo, que se aprende com o três estrelas. Aqui não estamos num três estrelas, mas se não tivesse estado num três estrelas, dificilmente faria isto que faço hoje. No Arzak as caixas, as etiquetas, o respeito pelos clientes foram as principais coisas que aprendi. Um cliente pagar 300 ou 50 euros é a mesma coisa. Se uma pessoa que vem cá comer — e muitas vêm cá de propósito — não sair feliz, não fez sentido nenhum. Acho que esse respeito se aprende também. Claro, não posso pôr crocantes de isto e daquilo nos pratos porque não tenho tempo, porque servimos 80 pessoas por dia e somos três, às vezes quatro.

Gostava?
Às vezes. Aliás, no verão [passado] tive um prato de canja de garoupa, que tinha umas algas, um crocante de arroz, uns fígados de abrótea, púnhamos o molho na mesa… Quando o restaurante começou a encher, tivemos de o tirar.

Com esta dimensão, tem de adotar uma abordagem mais pragmática.
Sim. Mesmo os canelones de sapateira, já tivemos a discutir se o tiramos da carta agora no verão. É muito giro, mas o trabalho que dá a fazer — fazer a massa fresca, arranjar as sapateiras. O Frederico está ali com elas ainda, desde o meio-dia e meia… [já passa das quatro da tarde]. Decidimos não tirar, mas fazer mais de vez em quando ou fazer só X por dia. Temos de ser capazes de fazer este balanço. Ao fim do dia, o importante é só que as coisas estejam boas. Com o restaurante cheio ou vazio, isso é a única coisa em que não se pode falhar. As pessoas até podem ter de, de vez em quando, esperar um bocadinho mais para fazer o pedido, esperar um bocadinho mais para comer, o que for. Isso é perdoável. Agora, que as pessoas comam mal, não é perdoável, nunca.

Os canelones de sapateira com salada de funcho e molho do seu coral (33€).

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Tem de enfrentar a sazonalidade. Como é a vivência do Lamelas no verão e no inverno?
A época balnear é a mais complicada. Temos que aproveitar o máximo possível, tendo sempre em mente que o importante desta época é que as pessoas venham, gostem e que depois no inverno as pessoas voltem para repetir a experiência ou que falem do restaurante às pessoas. É a época mais importante para ganhar dinheiro, mas também para criarmos prescritores do restaurante. No inverno temos sempre menos trabalho. Não há muito que se possa fazer. Vai acontecer, ainda que, pouco a pouco, vamos tendo mais pessoas nesses meses, porque, lá está, as pessoas vão conhecendo e vêm cá de propósito. Mas é mais ao fim de semana. Dezembro e janeiro são sempre meses mais complicados — em dezembro fica tudo em casa, entre jantares de natal e de família; em janeiro, ninguém tem dinheiro. As meias estações são boas alturas, porque há muitos caminhantes de umas rotas que existem aqui na zona e porque há estrangeiros.

Recebe aqui muitos locais de Porto Covo?
O mais difícil é trazê-los cá a primeira vez. Mas depois de virem, gostam. Às vezes têm ideia de que é um restaurante mais gourmet, de que é um sítio diferente daquele que é na realidade.

O teu pai recebeu-nos aqui. A tua mãe também esteve sempre aqui na sala. Tens os teus pais aqui a ajudar-te.
Sim. Foi uma coisa que foi acontecendo. Eles são sócios no restaurante. Não era suposto, mas têm ajudando cada vez mais.

Vivem cá também?
Sim.

Já cá estavam ou mudaram-se todos para cá?
Mudamo-nos todos. Mas não vivemos na mesma casa [risos].

Com o olhar distante de quem vive fora, vê mudanças na cena gastronómica em Lisboa e no Porto?
Está cada vez melhor. Há cada vez sítios mais giros e diferentes. Houve uma altura em que os restaurantes abriam e eram fotocópias uns dos outros. Agora, as coisas são muito mais focadas em temas diferentes. Respeita-se mais a direção: se o restaurante é asiático, é asiático; se é peruano, é peruano; se é de carnes maturadas, é de carnes maturadas; alguns trabalham coisas mais específicas, ao estilo do Pigmeu, por exemplo, que trabalha mais o porco e os legumes. Já não é aquela coisa de todos terem uma burrata, um ceviche, um tártaro, um taco, cartas que tocam todos os mundos, que querem fazer tudo, e acabam por tornar-se todas iguais.

Ana Moura tem 38 anos — está prestes a completar 39. Só depois de uma licenciatura em marketing é que seguiu para o curso de cozinha.

TOMAS SILVA/OBSERVADOR

Sente FOMO [“fear of missing out”, em inglês, “medo de ficar de fora”, em português]?
Sempre [risos]. Os meus amigos gozam comigo porque tenho muito FOMO. Mas o FOMO é mais por eles. Em termos de trabalho, sempre perdi muita coisa, estou habituada. Ainda no outro dia estava a falar com os do Simplesmente Vinho, que me disseram que não tinha ido a um evento, porque é que não fui. Era uma coisa a uma sexta-feira e sábado, no Porto. Claro que não conseguia, nem dar lá um saltinho.

O restaurante já está aberto há dois anos. Há chefs que abrem restaurantes e depois deixam as equipas a cuidarem deles. Tu estás cá todos os dias.
Acredito que tenho de estar aqui. Não por achar que o Lamelas não funciona sem mim, mas porque gosto de estar cá. Em Espanha sempre vi isso — os chefs de cozinha sempre tiveram nos restaurantes. Percebo quem não esteja e acho que é bom que tenham formado equipas para isso. Estar em Lisboa é diferente do que estar cá. Se vier cá alguém de propósito e eu não estiver… acho estranho. Mas gosto de estar cá, de sentir as coisas, de ver o restaurante, é o meu trabalho, é a minha vida, é o meu projeto.

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