Parecia um sítio para brincar. Havia música, cavalos, jardins, árvores de fruto. E, lá no cimo, uma vista sobre o Rio Tejo onde quase se via a sua terra Natal, no Seixal. Na imagem da então pequena Andreia, nas instalações da GNR na Ajuda, não havia armas, operações policiais ou criminosos. Essa informação chegou-lhe mais tarde, mas não a travou de vestir a farda como a do pai. Hoje Andreia é uma oficial da Guarda e quem a pegou ao colo faz-lhe continência. É a tenente Pinto, filha do sargento-mor Pinto.
Aquelas noites passadas a dormir dentro do carro, ao lado da irmã, eram sempre entusiasmantes. Nuno sabia o que esperava. Que o pai terminasse mais um comício do então PPD para regressarem a casa. Às vezes era já de madrugada. Mas ele sabia que era importante. Que o pai construía História, assim como os homens que o agarravam nos braços, como o já desaparecido Sá Carneiro. Ele não seguiu qualquer ramo do Direito como a tradição da família. Preferiu as engenharias. Mas não escapou ao resto. É o deputado do PSD Nuno Encarnação. Filho do ex-deputado e ex-presidente da câmara de Coimbra Carlos Encarnação.
Viviam em Angola antes do 25 de Abril. O pai era chamado às fazendas para planos de vacinação. Passava dias fora a dar injeções e a tratar maleitas. Ele ia com ele. Não lhe fazia impressão o sangue, as feridas. As tesouras ou as agulhas. Ainda nem tinha dez anos, mas sabia o que queria ser. Nem era bombeiro, nem era polícia, era médico. Chama-se Jorge Roque da Cunha, é médico do ramo de Medicina Familiar e sindicalista. Filho do médico Mateus Roque da Cunha.
Os raios de sol fazem lembrar os dias em que, ainda criança, Andreia Pinto corria pelas cavalariças do quartel da Ajuda. Foi sempre aqui que o pai, hoje sargento-mor com 50 anos, esteve ao serviço da Banda Sinfónica da GNR. Hoje, quando ali entrou e foi apresentada por ele aos colegas, os mesmos que um dia a carregaram ao colo, eles não conseguiram deixar de mostrar alguma incredulidade.
Francisco Pinto descreve esse momento com orgulho. Mas nem sempre assim foi. No dia em que a filha lhe disse que queria ingressar na Academia Militar para depois integrar a GNR, o sargento-mor ainda tentou demovê-la. “Era o ambiente de quartel…”, justifica agora, atrás da secretária do seu gabinete. Um ambiente com “demasiados homens”, onde não imaginaria a sua menina. Ela, teimosa, ficou ainda mais convencida. “Sempre aprendi uma grande lição com o meu pai: se nos fizermos respeitar, as pessoas respeitam-nos”. E conseguiu.
Para trás o talento da música. Andreia ainda estudou flauta transversal no Conservatório. O pai tocava clarinete, hoje dirige a orquestra. Mas a arte de dar música estava longe de a preencher. “Gosto muito do trabalho operacional da GNR”. Um prazer que consegue agora que comanda o destacamento de Peso da Régua.
Tinha 8 anos. O noticiário da RTP abria com uma notícia trágica. Sá Carneiro acabara de morrer naquele que seria um atentado, em Camarate. Nuno Encarnação lembra-se tão bem daquela noite. A família toda à frente da televisão a tentar digerir a informação escassa. O pai, Carlos Encarnação, também ele na fundação do PPD, tentava engolir as palavras e esquecia os sintomas de uma gripe que o tinham obrigado a ficar em casa. Vestiu-se e saiu. “Expliquei o que tinha acontecido, que tinha havido um acidente de avião. Mas que tinha que sair porque podia haver uma grande confusão por causa daquela morte”, recorda ao Observador Carlos Encarnação, ex-deputado na Assembleia da República e ex-presidente da câmara de Coimbra.
As memórias de Nuno não se apagam. Lembra-se quando Sá Carneiro o envolvia nos braços e ainda recorda bem a eloquência das suas palavras. “Era um homem simples, que se dava com todos. Sabíamos que tínhamos ali um líder e uma pessoa que parecia saber prever o que ia acontecer e quais eram as melhores soluções para o País naquela altura”. Nuno Encarnação ouvia-o, ainda menino entre a plateia que o partido tentava convencer. “Não tínhamos onde deixá-los então iam connosco para todo o lado”, conta o pai, Carlos Encarnação.
O homem que esteve à frente da autarquia de Coimbra entre 2001 e 2009 tem consciência que esta “educação” influenciou o filho. Mas nunca interveio nas suas escolhas. Mesmo quando escolheu engenharia eletrotécnica em vez do curso de Direito, como era tradição na família. A irmã, sim. Seguiu Direito. Ele preferia computadores, mas era já militante da JSD desde os 14 anos. “Não me decidi por uma carreira política. Tive a felicidade de as concelhias e a distrital me indicarem e de ter sido eleito”.
Sentou-se na Assembleia da República um ano antes de o pai decidir reformar-se da atividade política. Corria o ano de 2009 e Nuno Encarnação acabou por sentar-se ao lado de homens que o viram crescer e que frequentavam a sua casa. Como Motal Amaral ou Miguel Macedo. “São pessoas que vale a pena conhecer fora daquilo que conhecemos nas entrevistas ou na televisão”. Não era visto como um menino. O menino tinha ficado em Coimbra em tempos idos, o miúdo que se tornou adolescente e que também seguia o pai para cantorias de fado em tascos de Coimbra.
O miúdo cresceu e aprendeu o debate político. E a desiludir-se com as perdas ou a felicitar-se com as vitórias. “Gosto que haja debates políticos sérios, sem rasteiras políticas. E gosto que haja um certo humor no próprio discurso político”. Ainda se lembra quando ele e a irmã contrariavam o pai. Mais do que choque geracional, dava-lhes gozo fazer de oposição. Hoje, já pai, Nuno Encarnação tem duas filhas que lhe dizem quando deve ou não sorrir num debate televisivo. A mais pequena, de sete anos, chega a decorar frases dos seus discursos para depois exercitar a memória. E entoá-las pela casa. Joana e Maria Miguel não perdem um jantar do PSD ou uma visita oficial.
Ainda agora Nuno toca guitarra com o seu grupo de Coimbra, os Capas Negras. Orgulha-se das dezenas de atuações que já fez. E de um dia em que tocou para a voz de Amália Rodrigues.
Fazia de tudo. Aos 88 anos, se Mateus Roque da Cunha passasse para o papel o que viveu em Angola, teria um pouco de tudo para contar. Desde cirurgias, a doenças ou planos de vacinação contra a cólera pelos quais se responsabilizou. Havia dias em que cedia e levava o filho, ainda pequeno, consigo. O que Jorge mais gostava era saber que não voltaria naquela noite para dormir em casa. Ainda criança já via o trabalho do pai como verdadeiras incursões para ajudar pessoas. E não pensou em ser mais nada, só médico.
Jorge Roque da Cunha não quis contar a sua história à primeira. O presidente do Sindicato Independente dos Médicos, hoje com 54 anos, alegou querer preservar a sua privacidade. Mas perante tantos médicos de resposta igual, acabou por aceitar contar como chegou a médico sindicalista. Trabalha na Medicina Familiar de um centro de saúde dos arredores de Lisboa, enquanto o pai escolheu voltar à terra onde nasceu, em Águeda.
Só Jorge seguiu o jeito do pai. O irmão mais novo decidiu ser professor. A irmã, de 45 anos, é gestora. Jorge tinha, apenas, 15 anos quando aterrou em Lisboa, com a independência de Angola. Os planos não lhe saíram furados. Já antes pensara em viajar para estudar Medicina. E conseguiu entrar precisamente no ano em que o acesso ao curso foi limitado. De 800 para 80. “Hoje vivemos as consequências disso”, diz. História desfiada, o médico pede só para deixar uma palavra. Depois hesita. A insistência acaba por soltar-lhe as palavras.
“Queria salientar a ternura que a nossa relação se desenvolveu, é uma pessoa muito parca nas palavras, mas sempre senti que, nos pequenos gestos, nas visitas que acompanhava, ele ficava contente”. Reconhecimento de Dia do Pai.
Créditos
Texto – Sónia Simões
Fotografia – Hugo Amaral