Índice
Índice
Não vestem jalecas, não usam pinças, termómetros ou máquinas de vácuo, não fazem espumas ou emulsões, não têm campainhas para chamar o serviço e não acumulam (nem sequer ambicionam) estrelas Michelin. São mulheres e aprenderam a ver outras mulheres — mães, irmãs, amigas e patroas — a fazer pratos tradicionais portugueses, do cabrito ao bacalhau, da vitela ao polvo. Hoje são cozinheiras de profissão e é de avental no pescoço, touca na cabeça e com as mãos calejadas pelo tempo, pelas facas e pelo fogo que todos os dias trabalham atrás de um fogão e, dizem, são felizes.
Não estão habituadas a câmaras fotográficas ou a gravadores, quase nunca são o centro das atenções, mas depois da surpresa não resistem em falar da infância difícil, dos sonhos por cumprir, dos acidentes de trabalho, dos elogios e até da solidão. Têm pressa. Afinal, há panelas ao lume e clientes com o braço no ar. Não gostam de estar paradas, têm dificuldade em eleger um prato favorito e nem quando se magoam se despedem da cozinha facilmente.
Sabem de cor as receitas tradicionais portuguesas, não medem quantidades, tempos de cozedura e não apostam especialmente nos empratamentos. Garantem que a comida de tacho não tem segredos e trabalhar com ingredientes de qualidade — como um bom azeite — pode mesmo fazer a diferença num caldo, num assado ou numa marinada. Não têm dúvidas de que este tipo de restaurantes são o passado, o presente e o futuro, asseguram que o melhor elogio é o cliente voltar e, claro, deixar o prato limpo e o guardanapo sujo, seja ele de pano ou de papel.
Elsa Pereira, 60 anos
Cozinheira do Ernesto
Rua da Picaria, 85. Tel.: 22 200 2600
É uma das primeiras pessoas a chegar à cozinha do restaurante Ernesto, sempre por volta das 9h, e parece já vir cansada. “Já fiz um tacho de arroz branco e um pedaço de carne assada no forno para o meu filho e a minha mãe, que está acamada, almoçarem daqui a umas horas.” Depois de trocar de roupa, Elsa Pereira sabe bem o que tem a fazer, mas antes de colocar as mãos na massa diz orgulhosamente que nasceu na freguesia de Cedofeita e que sempre viveu no Porto “por opção”. “Já fui passear algumas vezes, mas vou sempre de corrida, gosto é de estar aqui no meu cantinho.”
É a mais velha de sete irmãos e sempre viu a mãe a cozinhar muito e para muita gente. “Lembro-me que fazia massa com carne e bacalhau à espanhola, quando ela não estava por algum motivo eu ficava no fogão e acabei por me habituar a ele. Sempre sonhei ser cozinheira, não me lembro de querer outra coisa, adoro cozinhar, organizar festas, jantares e receber pessoas.” Abandonou a escola aos 14 anos para começar a trabalhar em padarias e confeitarias no centro da cidade. “No início, andava com as canastras de pão a vender porta a porta e depois fazia um pouco de tudo, da cozinha ao balcão, mas o que gostava mesmo era de atender os clientes e estar em contacto com eles. Não há duas pessoas iguais, aprendemos sempre qualquer coisa com o outro, mas é preciso gostar, caso contrário não conseguimos fazer as coisas bem.”
Depois de uma breve experiência na cozinha do antigo restaurante Lavagante, no Bonjardim, onde aprendeu “o essencial” da cozinha tradicional portuguesa, chegou ao Ernesto há 32 anos: “Nunca mais fui a lado nenhum”, conta. “Comecei por descascar batatas e cebolas ou limpar as bancadas e o chão, ainda hoje limpo se for preciso”, assegura, acrescentando que só em 2010 passou a comandar o leme da cozinha do restaurante na rua da Picaria, tanto aos almoços como aos jantares.
Dos rojões ao cabrito, da vitela ao bacalhau, das Tripas à Moda do Porto aos filetes de polvo, Elsa Pereira garante que tudo o que lhe passa pelas mãos “é natural e português”, não leva “corantes ou conservantes” e agrada tanto ao “local como ao estrangeiro”. “Os turistas gostam mais de peixe, nós continuamos a preferir a carne.”
A cozinheira admite que a organização entre os três elementos da equipa é o mais difícil de manter, especialmente quando a esplanada está com gente e os pedidos aumentam a cada minuto, porém o olhar só muda quando há críticas menos positivas. “Quando dizem que está tudo saboroso fico toda contente, mas há clientes esquisitos com aquela mania de contrariar, fico logo nervosa, apetece-me responder e não posso.” Se na ponta da língua parece ter sempre uma resposta pronta, o mesmo não se pode dizer do apetite. “Quem está à frente dos tachos perde o apetite, não é mito, a pessoa só com o cheiro enche a barriga.”
As pernas já lhe começam a pesar, mas Elsa Pereira não tem dúvidas de que permanecerá na cozinha do Ernesto até à reforma e só uma queimadura no pé com óleo a ferver a afastou dos tachos e das panelas durante quase um ano. “Foi horrível, Deus queira que não me volte a acontecer.”
Rosa Mendes, 58 anos
Cozinheira d’O Rápido
Rua da Madeira, 194. Tel.: 22 205 4847
O serviço do almoço ainda não acabou e Rosa Mendes continua de olhos atentos à janela da cozinha, às travessas vazias e, claro, ao fogão. Tem energia para dar e vender, pouco filtro na voz, muito “pêlo na venta” e uma memória invejável. Nasceu no hospital Santo António, “mesmo aqui ao lado”, sempre viveu do outro lado do rio, em Vila Nova de Gaia, e chegou à cozinha d’O Rápido com apenas 13 anos. “A minha irmã mais velha já trabalhava cá, naquela altura era precisa começar a trabalhar cedo e vim para aqui lavar loiça.” Os tempos difíceis e uma família numerosa não a deixaram estudar ou desejar ser outra coisa, foi “olhando e evoluindo” com os mais velhos, tanto no restaurante como em casa onde a mãe confecionava “coisas simples” como peixe frito com batatas, jardineira de carne ou frango assado.
Nunca trabalhou noutra casa, trata a cozinha portuguesa por “tu” e é com as carnes que se sente mais à vontade. “Adoro fazer assados e estufados de vitela, cabrito ou costela mendinha, têm de ficar a noite toda a marinar para ganharem sabor — e o sabor é o que conta mais numa cozinha.” Chega às 8h30 ao Rápido e começa por cortar batatas, tomates e cebolas para os refogados, a ferver a panela da sopa e o seu sentido de humor só se altera quando a pressão aumenta. “Fico nervosa quando apertam com o tempo, há coisas que não podem sair a correr, o cliente tem que entender e respeitar isso. A pressa é inimiga da perfeição.”
Na sala de refeições passam todos os dias vários clientes, “dos mais humildes aos endinheirados” — em fevereiro o chef britânico Jamie Oliver pediu cozido de carnes, polvo à bordalesa, alheira grelhada e outras iguarias. “Quis provar um bocadinho de tudo e fez bem. Tentei falar com ele, mas não entendo inglês, só sei que gostou do que lhe servi e isso basta. Dizem-me muitas vezes que aqui encontram boa comida tradicional, às vezes saio da cozinha e começam a bater palmas, fico logo vermelha que nem um tomate.” Entre os almoços e os jantares, Rosa tem umas horas de pausa, mas não gosta de dormir sestas, aproveita para fazer compras para a casa, onde raramente cozinha, apanhar ar ou ver o Douro. “Detesto estar em casa, é a passear que a pessoa tem ideias.”
Ao contrário da maioria das colegas, a cozinheira assume-se como um bom garfo, gosta de arroz de cabidela e não é especialmente fã de doces, garante que um bom caldo é o segredo de uma boa receita e admite não ter talento para o empratamento, prefere deixar essa tarefa para uma das suas duas ajudantes. Ainda que não tenha dores no corpo, diz que o cansaço às vezes não se esquece dela. “Vejo-me aqui mais meia dúzia de anos, mais do que isso não. Temos de deixar a porta aberta para outros.”
Fátima Pinto, 66 anos
Cozinheira do Rogério do Redondo
Rua Joaquim António de Aguiar, 97. Tel.: 91 800 3067
A casa ainda está vazia e já se ouvem as indicações assertivas e bem-humoradas de Fátima Pinto numa cozinha visível da sala a olho nu, onde há encomendas a chegar, panelas a fumegar, pratos empilhados e colheres de pau em punho. Com um avental já pouco imaculado e uma touca personalizada na cabeça, a cozinheira senta-se uns minutos e começa por explicar que não tem muita pronúncia porque nasceu em Felgueiras.
Conheceu o Porto com 11 anos quando veio trabalhar como empregada doméstica em casa de uma família numerosa, onde ficou até atingir a maioridade. “Não conhecia a cidade, o combinado seria vir de camioneta sozinha e no terminal uma senhora estaria à minha espera com uma rosa na mão e realmente estava. Naquela época queria ser costureira, ainda é um sonho que tenho, mas agora olho para as minhas mãos cheias de artroses e vejo que já não é possível.”
Fátima tem sete irmãos, todos começaram a trabalhar cedo e nunca tiveram grande tempo para distrações ou namoricos. Aos 19 anos parte para Guimarães e entra numa cozinha profissional pela primeira vez. “Gostei logo daquilo. Não vi muito a minha mãe a cozinhar porque estava sempre na escola ou a trabalhar, por isso tudo o que sei aprendi com as minhas patroas.” No Porto apaixonou-se, acabou por se casar e mudou-se para a cidade, depois de um período sem trabalho uma ida ao café parece ter-lhe mudado a vida. “Entre a mesa e o balcão ouvi dizer que estavam a precisar de uma funcionária num espaço de restauração na Praça da Alegria e vim ver. Isto ainda não era um restaurante, era um café que servia torradas, pregos e francesinhas. Comecei como copeira e fui crescendo.”
Só em 1985 é que Rogério Sá tornou o negócio especialista em comida de tacho, a “verdadeira praia” de Fátima Pinto, que viu dois chefs profissionais tomar conta da cozinha antes de assumir as rédeas do serviço. “Quando me perguntaram se era capaz de tomar conta da cozinha sozinha respondi logo que sim. Acho que até agora não desiludi ninguém, nem a mim mesma.”
Dos rojões a feijoada, das papas de sarrabulho aos filetes de pescada, garante que não consegue escolher o que gosta mais de preparar, faz tudo a olho sem tábuas, medidores, relógios ou termómetros e confessa gostar de ensinar os estagiários que por ali passam pontualmente. “Faço tudo com agrado e boa disposição, às vezes a cabeça está cansada ou noutro lado, é normal, mas quando se liga o fogão vem logo a concentração e a dedicação.” Se o feijão fica a demolhar durante a noite e as tripas são cozidas de véspera, o peixe chega fresco todos os dias e há um que é especial para a cozinheira. “Comia bacalhau todos os dias, era sempre Natal.”
Na cozinha do Rogério do Redondo trabalham quatro pessoas, Fátima é responsável pelos almoços e deixa “meio caminho” preparado para quem a substitui à noite, em casa assegura que cozinha com vontade e sem pressão e nem um braço queimado com caldo de frango de cabidela, que mereceu vários pontos no hospital, a afastou da cozinha do restaurante, onde gosta de ver “as novas gerações aderirem à comida portuguesa e tradicional”.
Quando não está atrás do fogão confessa que vê séries na Netflix, perde horas a ver vídeos no Tik Tok e prevê trabalhar até aos 70 anos. “Depois vou descansar e apanhar sol que bem mereço. Já fui a Lisboa, ao Algarve e até a São Tomé e Príncipe, mas agora o meu marido está numa cadeira de rodas e é mais difícil passear, ficamos em casa e já é bem bom.”
Maria de Lurdes Vilar, 68 anos
Cozinheira d’A Cozinha do Manel
Rua do Heroísmo, 215. Tel.: 22 536 3388
Quem olha para a estatura de Lurdes Vilar não consegue imaginar a sua força de braços para transportar panelas grandes e travessas de barro várias vezes ao dia. Ponderada e com uma voz calma, bem a contrastar com o ambiente agitado e atarefado da cozinha, a portuense diz que aprendeu tudo o que sabe sobre comida com a progenitora. “Éramos sete irmãos, a minha mãe cozinhava muito bem o bacalhau, o polvo e a cabidela, fui aprendendo com ela.”
Ainda que o jeito para cortar legumes e a mão para o tempero estivessem lá, Lurdes optou por seguir outra profissão. “Fui técnica de malhas durante muitos anos, até ganhei um prémio internacional, dava muitas formações, mas com a chegada dos chineses e a massificação da indústria têxtil já ninguém dava valor a isto. Agora parece que se voltou a tricotar, vejo coisas no Facebook e no Instagram bem feitas e giras, até me dá vontade de voltar a fazer, mas já não tenho idade.”
Aos 42 anos decidiu mudar de vida e mergulhou no mundo da cozinha, passou por vários restaurantes tradicionais da cidade e em 2018 tornou-se a responsável pela comida servida n’A Cozinha do Manel. “Quando perdi o meu marido senti-me muito sozinha e perdi a vontade de trabalhar, mais tarde percebi que tinha saúde e devia regressar à cozinha. Era uma coisa que me fazia feliz e via felicidade nos outros também.”
Todos os dias às 9h é uma das primeiras a vestir o avental e a colocar mãos à obra, garante que o mais difícil é a equipa acompanhar o seu ritmo acelerado e explica que a sopa é a primeira coisa a ser feita e o arroz a última a avançar. “Um restaurante que não tenha sopa e arroz até ao fim do serviço não é um restaurante. Mesmo que não se venda, têm de estar sempre disponíveis.” Arroz de pato, bacalhau com broa, vitela ou cabrito, Lurdes garante que gosta de cozinhar quase tudo, exceto pratos doces. “Como gosto de cozinhar a olho e não acerto muito nas sobremesas, também não adoro comer doces e isso não deve ajudar.”
A cozinheira natural da freguesia do Bonfim sublinha que trabalhar com produtos de qualidade, vindos de fornecedores espalhados pela região Norte, “é meio caminho andando para fazer um bom trabalho”. “Todos os dias fazemos pratos diferentes, ao almoço as pessoas têm pressa para ir trabalhar, ao jantar já gostam mais de conviver, mas as coisas têm sempre que sair bem. Não há nada como passarem pela cozinha e dizerem-me que vão para casa satisfeitos, é uma felicidade.”
No dia de folga, sempre à segunda-feira, aproveita para estar com os quatro netos e cozinhar para eles. “A cozinha tradicional é a nossa identidade, é passado, presente e será o futuro. Por vezes admiro-me da juventude que vem com os pais ou com os avós e gostam deste tipo de menu. Aqui é fácil regressarem às origens e sentirem-se em casa, não há dúvidas de que o Porto é um belo sítio para se comer.” Lurdes Vilar ainda não pensa em deixar de trabalhar e parece não ter pressa de deixar esta rotina. “Não gosto de estar parada, se ficar em casa é que fico com dores. Não sou de andar nos cafés, nas lojas ou nos cinemas, gosto de trabalhar porque já sei que a solidão me apoquenta.”
Lucília Moreira, 77 anos
Cozinheira do Solar Moinho de Vento
Rua Sá de Noronha, 81. Tel.: 22 205 1158
É dia de Tripas à Moda do Porto no Solar Moinho de Vento e Lucília Moreira, carinhosamente chamada de Dona Cila, pede mais salsa para picar e depositar dentro da panela XXL, ao mesmo tempo que prova colheres de vários tamanhos e coordena cada passo que é dado dentro daquelas quatros paredes. Quando se senta, esconde a cara e faz contas de cabeça para poder dizer a sua idade, recorda a família pobre onde cresceu em Paredes, a fome que passou em menina e o primeiro trabalho com apenas 11 anos. “Vim para o Porto trabalhar em casa de uma família, nunca tinha comido um bife ou visto o mar, não sabia fazer nada, foi lá que aprendi a cozinhar e a fazer uma cama. Ao fim de três meses, regressei a casa com uma bolsa pendurada no pescoço com 30 escudos, o dinheiro que tinha feito. Não sonhava ser nada, não havia tempo para isso.”
Já descascava batatas, alhos e cebolas “sem chorar” e a um bom ritmo quando partiu para Angola, onde esteve nove anos a trabalhar com uma família e aproveitou para aprender a fazer muamba e cachupa. Após o 25 de abril regressou ao Porto para se dedicar a tempo inteiro à casa da família Bessa Monteiro, que em 2002 recuperou uma antiga taberna na baixa portuense, convertendo-a num restaurante tradicional, convidando a cozinheira a tomar conta da carta. “Gosto de fazer tudo, dos assados aos doces, não consigo mesmo escolher. Somos cinco a trabalhar aqui dentro e todas sabemos que sozinhas não somos nada, se não tivesse quem me descascasse as batatas ou alourasse uma cebola, as coisas não saíam tão bem. Quando passam pela cozinha e dizem que os pratos continuam exatamente iguais é o melhor elogio que me podem fazer.”
Lucília está habituada a ter casa cheia e a servir clientes vindos dos quatro cantos do mundo. Por cá a lista de reservas inclui autarcas, Presidentes da República, escritores, músicos e atores. Prefere fazer as coisas com calma e por isso não se importa de acordar às 6h para chegar cedo ao restaurante. “Hoje é dia de tripas, por acaso saem-me sempre bem, depois temos açorda de ovas e peixe galo ou coelho à Baltar, a minha terra. Basicamente o coelho fica em vinha d’alhos durante três dias para ganhar sabor, é frito em azeite e dourado num refogado com bastante cebola, alho, tomate e, no fim, umas gotas de vinagre. A cozinha portuguesa não tem muitos segredos, só é preciso gostar.”
Quando o movimento acalma, a cozinheira sobe as escadas de madeira e faz questão de ir às mesas ouvir o feedback sincero de novos ou antigos clientes. “Às vezes perguntam-me se engrosso a sopa de peixe com farinha ou batata, eu lá lhes digo os ingredientes todos, mas não os segredos. Não meço nada, faço tudo a olho, até mesmo as sobremesas, cozinho muito por instinto, não aprendi nada nos livros, antigamente era mesmo assim.” Quando não tem o avental vestido, Lucília gosta de ler policiais e romances e nem os sustos de saúde, como os diabetes ou um cancro de mama, a fazem querer sair do Solar Moinho de Vento. “Há três anos fui operada às cataratas e agora canso-me mais a ler, mas devagarinho, tal como na cozinha, vamos lá.”
Hermínia Mimoso, 67 anos
Cozinheira da Taberna Santo António
Rua das Virtudes, 32. Tel.: 22 205 5306
Apesar de ser “mais conhecida que o tremoço” na zona das Virtudes, Hermínia Mimoso nasceu em Vila Nova de Foz Côa, trabalhou duas décadas em França e sempre foi feliz atrás de um balcão. “Passei por supermercados, cafés e mercearias, sempre gostei do contacto com o público. Voltei para Portugal com 26 anos e fiquei desempregada uns tempos.” Recorda que foi um dos seus cinco irmãos que a incentivou a vir para o Porto ganhar raízes e ter uma vida melhor com mais oportunidades. “O meu irmão tinha aqui uma antiga adega que vendia vinho e uns petiscos, já com este nome, e sabia que sempre quis ter um negócio meu. Só tinha vindo ao Porto uma vez numa passagem de ano e gostei logo muito da cidade.”
Há 34 anos que Hermínia Mimoso e o filho Pedro são os rostos sorridentes da Taberna de Santo António, hoje convertida num restaurante tradicional, onde as pataniscas de bacalhau, a mousse de chocolate ou o arroz malandro são já imagens de marca. “Sempre gostei de cozinhar, principalmente os pratos mais portugueses, aprendi sozinha e a ver uma irmã mais velha. Quando abri isto fazia muito arroz de feijão malandro com panados, trouxas de carne picada com azeitonas e bolinhos de bacalhau, eram os estudantes de psicologia os meus melhores clientes. Também tinha tardes de fado, mas tive que terminar para poder descansar entre os almoços e os jantares. Comecei devagarinho e fui evoluindo, hoje tenho clientes de todo o mundo que voltam todos os anos.”
A cozinheira, que não perde uma oportunidade para testar o seu francês, faz questão de ir às mesas verificar a satisfação de miúdos e graúdos, vive mesmo em frente ao restaurante, gosta de controlar tudo, da limpeza às encomendas, e confessa que raramente consegue esquecer o negócio. “Posso me deitar numa cama por fazer, mas se as batatas e as cebolas não estiverem descascadas para o dia seguinte ou as carnes temperadas não consigo dormir descansada.” Orgulha-se de não usar caldos industriais e de nunca ter ficado em casa sem poder trabalhar, nem mesmo quando queimou uma mão numa fritadeira. “Fui operada ao coração e ao entrar no bloco perguntei ao médico se aquilo demorava muito. Ele disse-me para esquecer os bolinhos de bacalhau e riu-se.”
Esparguete com vitela estufada é o seu prato favorito, mas já provou sabores mais sofisticados madeirenses, italianos e até do médio oriente. “Já fui à Madeira e a Jerusalém, mas fico com muitas saudades da nossa comida. Dizem-me para descansar e não consigo, isto é mesmo a minha vida.” Quando não está atrás de um balcão, Hermínia não esquece receitas, temperos e texturas. “Adoro ver fotografias e vídeos de comida no Facebook e no Instagram, além de aprender, fico sempre a pensar se podia fazer melhor. Às vezes também vou a outros restaurantes provar algumas coisas e perceber se são melhores ou piores que as minhas.”
Apesar de no Porto a oferta ainda ser generosa, a cozinheira da Taberna de Santo António lamenta que muitas moradas gastronómicas tradicionais estejam a fechar. “Deixa-me triste porque a comida é boa e o atendimento é próximo. As pessoas confiam em nós porque a comida é caseira, feita todos os dias com produtos de qualidade e mais saudável que muitas invenções gourmet que não enchem o papo. Das favas à cabidela, aqui encontram um pouco de tudo, não mudo a carta nem o jeito de fazer.”