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São sete os capítulos que compõem a nova biografia do Nobel da Literatura português, publicada a 26 de setembro, poucas semanas antes da comemoração do centenário do autor de “O Memorial do Convento” (nasceu a 16 de novembro de 1922). “As 7 Vidas de José Saramago” é o título do livro de Miguel Real e Filomena Oliveira. É a vida e a obra do escritor, mas é também uma história de alguns dos acontecimentos que marcaram o século XX português.
A infância e a família; os primeiros trabalhos e os primeiros escritos; a vida enquanto editor e a passagem pelos jornais; as relações e a política; os sucessos, as críticas, os livros que fazem parte da história da literatura portuguesa (de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” a “Ensaio Sobre a Cegueira” e muitos outros) e a consagração pela Academia sueca. São 700 páginas baseadas em pesquisa, testemunhos e investigação entre arquivos e documentos.
Neste excerto que o Observador aqui revela, Miguel Real e Filomena Oliveira recordam o ano de 1947, aquele em que nasceu a primeira filha de Saramago, Violante, mas também aquele em que o escritor vê publicado o seu primeiro livro, “Terra do Pecado”. Aqui, os autores fazem referência às influências literárias que marcam a obra, explicam de que forma o romance está relacionado com a obra que estaria ainda por vir e mostram como o escritor lidou com o livro em diferentes fases da vida.
O primeiro ano de felicidade: o primeiro livro e o nascimento de Violante
No «Aviso» publicado na segunda edição de Terra do Pecado, em 1997, cinquenta anos após a primeira, Saramago atesta que aos 24 ou 25 anos já cumprira na totalidade o conhecido provérbio que declara a realização integral de um homem logo que plante uma árvore, tenha um filho e escreva um livro. Saramago já plantara umas quantas árvores na Azinhaga, acabara de lhe nascer uma filha, Violante, garantindo a sobrevivência biológica e, no mesmo ano, publicara um romance. Devia estar feliz e, não duvidamos, conheceu a felicidade ao longo deste ano. Aliás, 1947 deverá ter sido o primeiro ano de felicidade da vida de Saramago.
Neste «Aviso», relata, também, que, «numa antiga conversa entre amigos, daquelas que têm os adolescentes, falando uns com os outros do que gostariam de ser quando fossem grandes», Saramago dissera «que queria ser escritor. Em mais novo o seu sonho era ser maquinista de caminho-de-ferro [ecoava, porventura, a ligação entre a Azinhaga e o Entroncamento, onde se empregavam antigos camponeses], e se não fosse por causa da miopia e da diminuta fortaleza física, imaginando que não perderia a coragem, entretanto, teria ido para aviador militar. Acabou em manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica, e tão cumpridor e pontual que à hora de começar o serviço já está sentado à pequena mesa em que trabalha, ao lado da prensa de cópias».
Além das profissões que as crianças admiram habitualmente devido à desproporção entre o seu tamanho ou a sua existência e o que os espanta, o que ficou de facto foi o desejo de ser escritor, já consciencializado como destino de vida na adolescência. Porém, o caminho seria longo e, para Saramago, apesar de ter já um livro publicado aos 24 anos, mais longo do que o normal. Por isso, como um lamento, Saramago recorda, meio século depois, que esse desejo fora então vencido pela necessidade de sobrevivência, jogando-o para um trabalho de «manga-de-alpaca do último grau da escala hierárquica».
Na mesma altura em que redigia os seus primeiros poemas, escrevia igualmente o romance a que deu o nome de A Viúva, mas que virá a intitular-se Terra do Pecado, uma alteração proposta pelo editor. A escrita representa, nesta época, um esforço extraordinário mas disciplinado, pois Saramago mantém o seu trabalho diário de empregado de escritório na Caixa de Previdência e as suas leituras na Biblioteca Palácio Galveias. Nesta altura, ainda mora na Rua Braamcamp Freire — só em 1955 se mudará, com Ilda Reis e Violante, para a Parede.
Se, como acima referimos, existe, após o termo do curso de Serralharia, um efetivo pendor para uma vocação literária, essa passou, em 1944, a barreira de mera inclinação, de tendência virtual, e, porventura com sacrifício e com uma fortíssima disciplina, solidificou-se e manifestou-se através da escrita de 44 poemas e um romance acabado com mais de duas centenas de páginas.
Não, não era já vocação, por muito que explícita, era — agora, em 1947— realização, produção, verdadeira criação estética, ainda que incipiente, «imatura» como diz Aguilera: neoromântica na poesia, expressão de uma personalidade juvenil revoltada, e naturalista-realista no romance. Transversal às duas formas literárias, predomina o ceticismo filosófico, modo singular de Saramago ver o mundo, então como sempre.
“Terra do Pecado” — primeiro momento de uma obra imensa
A publicação de Terra do Pecado alegrara-o como autor, certamente. Era o seu primeiro livro nos escaparates das livrarias. Com efeito, só quem não viveu momento semelhante na vida pode considerar a edição do primeiro livro um acontecimento vulgar.
Saramago enviou o original para a Parceria A. M. Pereira, uma editora clássica, fundada em 1848, com livraria e sede na Baixa de Lisboa, ainda hoje existente, e um catálogo muito prestigiado de autores, sobretudo de romances românticos e ultrarromânticos e ensaios de autores da Geração de 70. Era uma editora que continha no seu catálogo inúmeros livros de enredo e ambiente rurais, e editara, em 1935, o único livro de Fernando Pessoa publicado em vida, Mensagem. Assim, a escolha de Saramago indicia que não se encontrava influenciado pelo recente movimento neorrealista, de que a Parceria A. M. Pereira se encontrava totalmente desvinculada.
Saramago recorda o momento da edição do seu primeiro livro no Jornal de Letras, Artes e Ideias, que transcrevemos de Aguilera:
Para já chamava-se A Viúva, mas o editor… Quem me telefonou para me dizer que estava interessado no livro não foi o editor a quem eu enviei o original. O livro deu uma volta que eu não consigo entender. Eu mandei o original à Parceria A. M. Pereira que, se bem me recordo, ou não respondeu ou disse que não estava interessada. Mas depois aparece a Editorial Minerva a dizer-me que sim. Numa carta (não foi pelo telefone, que eu não tinha) dizia-me que o tinha recebido por intermédio da Livraria Pax, de Braga. Eu nunca mandei o livro para Braga, muito menos para a tal Pax, que, pelo nome, tem todo o ar de ser uma editora católica [e é]. Que voltas deu esse original isso é coisa que não sei. Verdade seja que eu poderia ter perguntado ao Manuel Rodrigues, da Minerva, mas nunca perguntei. Na altura estava interessado em que o livro saísse e nem falei em mais nada com o editor, não fosse acontecer que ele se arrependesse. E foi assim: ele disse-me que estava interessado no livro, mas que eu não era conhecido e que não me podia pagar direitos de autor.
Na edição do dia 17 de maio de 1991 do jornal O Independente, observa, sobre a publicação do seu primeiro romance:
Escrevi o meu primeiro livro aos 25 anos, em 1947. Chamava-se A Viúva. Foi publicado pela Minerva, mas o editor [Manuel Rodrigues] achou que «A Viúva» não era um título comercial e sugeriu que se chamasse «Terra do Pecado». Pobre de mim, queria era ver o livro editado e assim saiu. De pecados sabia muito pouco e, embora a história comporte alguma atividade pecaminosa, não eram coisas vividas, eram coisas que resultavam mais das leituras feitas do que duma experiência própria. Não o incluo na minha bibliografia, apesar de os meus amigos insistirem que não é tão mau como eu teimo em dizer. Mas como o título não foi meu e detesto aquele título… Acho que é por isso que resisto a aceitá-lo. Um dia, quem sabe se não reconhecerei a paternidade uma vez que há por aí exemplares. Ainda outro dia encontrei um, numa dessas bancas em segunda mão, e paguei por ele oito contos. Com desconto, porque o homem reconheceu-me e abateu-me quinhentos escudos. Um preço completamente disparatado e exorbitante.
O pecado da perfeição narrativa
Saramago confessa a Carlos Reis: «Aquele livro [Terra do Pecado] resulta do seguimento de leituras mal-arrumadas e mal organizadas — e saiu aquilo. Há quem diga que o livro, apesar de tudo, não é assim tão mau e que está escorreitamente escrito. Eu tenho a impressão que sim.» E está: bem escrito, bem estruturado, temas dominados, duas personagens fortes. Porém, totalmente desenquadrado do universo literário de então. Saramago, desculpando-se sem necessidade de o fazer, adita que lhe faltava ler Raul Brandão, Almada Negreiros, Fernando Pessoa, isto é, os escritores heterodoxos do século xx, e que, por isso, o romance está escrito de um modo clássico, à século xix.
Cinquenta anos após a primeira edição de Terra do Pecado (1947, Ed. Minerva), José Saramago autorizou a publicação de uma segunda edição, em 1997, pela Editorial Caminho, sem outras alterações que as relativas à atualização ortográfica. Atendendo a que a idade do autor era então de 24 ou 25 anos, que esse constitui o seu primeiro romance e que o autor é um autodidata, sem os cinco anos de um curso universitário de Letras e sem, mesmo, a frequência de um curso liceal, Terra do Pecado pode evidenciar-se como um romance formalmente correto a vários níveis, fruto, não duvidamos, das intensas leituras na Biblioteca Palácio de Galveias. São características a salientar no romance: o domínio da sintaxe da língua portuguesa é irrepreensível; o domínio do vocabulário regional ribatejano (região de origem do escritor) é completo; a construção dos diálogos, entrecortada por descrições paisagísticas ao modo naturalista, é igualmente irrepreensível; a ortografia e a pontuação são gramaticalmente corretíssimas; a sequencialidade e a alternância das personagens ao longo do romance são igualmente corretas; o final da história, de tão inesperado, resulta em surpresa para o leitor, aplicando assim as regras clássicas de bem rematar um romance; a harmonia entre o microcosmo da Quinta Seca e a envolvência do rio e da charneca é habilidosa; a estrutura da história, materializada em conflitos de ação-repulsa entre três personagens destacadas, pode ser considerada perfeita segundo o ritmo das suas peripécias centrais e periféricas; o conhecimento empírico da psicologia infantil por que são retratados os permanentes encontros-desencontros entre Júlia e Dionísio e, depois, entre estes e o lisboeta João, pode ser igualmente considerado mais do que suficiente; a estrutura espacial, bem como os tempos da diegese, são unos e coerentes, não relevando disfuncionalidades que quebrem a linearidade romanesca. Saramago, no seu primeiro romance, evidencia um conjunto de caraterísticas formais que auguram o nascimento de um bom escritor. Porém, contendo elementos de perfeição discursiva e estrutural, algo lhe falta para literariamente ser considerado um bom romance: falta-lhe originalidade, um modo diferente de retratar o ambiente rural, um modo distinto de marcar os traços da personalidade dos protagonistas, porventura uma linguagem pessoal mais impressiva, mais vitalista. Com efeito, o romance narra uma história sentimental banal entre uma viúva e um homem igualmente viúvo. Em Terra do Pecado ecoam, com solidez, as tragédias rurais naturalistas, os ambientes campesinos oitocentistas à Camilo, as mulheres românticas, como Leonor, ou, à Eça, malignas e perversas, como a criada Benedita, o Dr. Viegas iluminista e naturalista, os ciúmes como qualidade negativa naturalista. Sobretudo, o estilo, desprovido de singularidade pessoal, surge preso a uma sintaxe copiada da gramática oficial.
Teremos exagerado no elogio à perfeição formal de Terra do Pecado? Não, sem dúvida. Todo este conjunto diversificado de excelentes qualidades de Terra do Pecado adverte-nos para uma tripla finalidade:
Em primeiro lugar, a de evidenciar que quem assim escreve aos 24 anos necessariamente terá um esplêndido futuro literário, a não ser que, extraliterariamente, as tortuosidades da vida ou os bloqueios intelectuais ligados a restritos círculos literários com acesso à edição o impeçam de prolongar o seu trabalho estético.
Fica, assim, claro que Terra do Pecado é tão intencionalmente equilibrado, desenhando formalmente uma grande harmonia entre as suas partes constitutivas, que parece ter sido racionalmente escrito segundo um manual de como bem construir um romance; ou seja, todos os sentimentos e toda a força de vida que nele pulsam, que são imensos, são conceptualmente enquadrados numa unidade estrutural de espaço, tempo, ação, narração, cuja forma é de tal modo delineada a régua e esquadro que parece sufocar-lhe o natural da vida, se não mesmo aniquilá-lo enquanto transmissor de sentimento estético para o leitor.
Daqui decorre que a perfeição estrutural de Terra do Pecado tem como consequência imediata, do ponto de vista da história da literatura portuguesa, e mesmo da conjuntura concreta da década de 40, a total ausência de inovação, de abertura de horizontes romanescos, seja de um ponto de vista estilístico, seja de um ponto de vista do sujeito da narração, seja do da construção das personagens.
Dito de outro modo, tamanha correção literária resulta do facto de o jovem Saramago se ter inspirado nos romances naturalistas-realistas que teria lido avidamente na Biblioteca Palácio Galveias. Não buscava a inovação literária, que, mais tarde, se constituirá como a sua marca estilística. Pelo contrário, a leitura era a sua universidade e a reprodução dos romances clássicos, a sua aprendizagem literária. De facto, o espaço em Terra do Pecado possui uma unidade consistente, geograficamente localizado no Ribatejo, entre uma quinta (Quinta Seca) e uma aldeia (Miranda). A esta unidade espacial corresponde uma linearidade temporal cronológica assente no ponto fulcral da morte do marido de Maria Leonor, a «viúva» do primitivo título. O tempo da narração corresponde ao percurso de decadência da vida de Maria Leonor, entremeado por constantes processos analépticos correspondentes a uma interiorização angustiante desta personagem, pondo em causa os vetores culturais e religiosos da sua formação. Leonor abandona-se, com forte resistência psicológica, a um processo antitético de atração-repulsão/tentação- -remorso pelo corpo do cunhado, primeiro, e, depois, pela figura do Dr. Viegas, o médico da região. O tempo da diegese é, assim, singularizado pela experiência de vida de Maria Leonor, diferenciando-se do tempo narrativo que surge como uma espécie de presente intemporal, como que um voo sábio sobre a história contada, que vai deixando adensar, episódio a episódio, um conjunto de circunstâncias ora dolorosas (morte), ora de atração carnal (cunhado/Dr. Viegas), ora de suspeita e proteção-chantagem (Benedita), ora de comoção e pungência (longos serões à janela de Maria Leonor, meditando sobre a tristeza da sua vida), que preparam o leitor para a tragédia final (morte de Dr. Viegas e absoluta solidão de Maria Leonor), final inesperado igualmente exigido pelas regras clássicas de construção de um romance. Em harmonia com a unidade de espaço e a linearidade temporal, a instância de narração escolhida para o romance é totalmente vazia de pessoalidade e limita-se a, divinamente, ir descrevendo os acontecimentos.
Descomprometimento ideológico em “Terra do Pecado”
Lendo Terra do Pecado, constata-se que nenhum dos vetores ideológicos dominantes nos veios nervosos da cultura portuguesa na década de 40 encontra eco no jovem Saramago. Os núcleos conceptuais que alimentam Terra do Pecado são estranhos às mais instantes problemáticas sociais e políticas que então alimentavam a intelectualidade portuguesa: Monarquia/República, Ditadura/Democracia, fundo nacionalista e providencialista português/aliança com Inglaterra-USA, Arte pela Arte do presencismo ou Arte ao Serviço do Povo do neorrealismo, atração francesa pelo Existencialismo de Jean-Paul Sartre ou de Albert Camus, atração inglesa ou alemã pelo Neopositivismo, atração espanhola pelo vitalismo de Ortega y Gasset… Nada!
É como se Saramago vivesse fora e fosse impermeável ao universo ideológico português. Nunca um romance português, com alguma perfeição do ponto de vista formal, pôde «falar» tão pouco das preferências e repulsas ideológicas concretas da sociedade onde nasceu. A não ser que este autor existisse como que à margem da constelação ideológica que então dividia o seu universo cultural, projetando-se, nas suas leituras romanescas, para um outro universo semântico, próprio de há 30 ou 40 anos, ou seja, para o universo do romance português da passagem entre os séculos xix e xx, às coleções de «Obras Completas de Camilo Castelo Branco», editadas pela Parceria A. M. Pereira, e aos romances realistas e naturalistas à Eça, à Abel Botelho, à Teixeira de Queiroz, à Júlio Lourenço Pinto, à Ladislau Batalha, que Saramago deveria ler nas Galveias.
De facto, em plena década de 40 do século xx, Terra do Pecado parece ressuscitar os modelos clássicos romanescos dos finais do século xix, flutuando tanto sobre as correntes literárias então em moda (não é neorrealista, à Redol; não é humanista de inspiração anarco-sindicalista, à Ferreira de Castro; não é presencista, à Régio; não é realista-vitalista, à Aquilino; não tenta exprimir a «alma nacional», à Afonso Lopes Vieira; não é fragmentariamente «moderno», ao modo das narrativas de Almada Negreiros, especialmente de Nome de Guerra), como sobre a própria realidade social portuguesa de fins da década de 40. Por vezes, paradoxalmente, lendo Terra do Pecado parece que «saltamos», literariamente falando, meio século para trás: para o modo de descrição e de construção dos diálogos à Eça e para uma urdidura psicológica e uma trama confessional e amorosa à Camilo Castelo Branco. Neste sentido, deve salientar-se que, em Terra do Pecado, são referenciadas éguas baias, charretes, carroças, trens, mas não existe um único automóvel; existem candeeiros a petróleo, lamparinas de azeite, velas, mas não existe uma única lâmpada elétrica.
Neste primeiro romance de José Saramago, a verdadeira problematização não é explicitamente de ordem estética, política ou religiosa. A problematização reside nas questões filosófico-morais sobre o sentido da vida individual e o sentido da existência da totalidade da humanidade. Assim o interpretou, mais tarde mas corretamente, Fernando Venâncio: «E aqui, sim, algo mais fundo ressoa neste livro, e anuncia o José Saramago dos nossos dias, para quem a atuação dos homens pertence insistentemente ao domínio, não da religião, mas de uma moral, ainda que desnorteada.»
A origem do ceticismo moral no jovem Saramago
Como Fernando Venâncio alerta no Jornal de Letras da data referida, o núcleo ideológico básico de Terra do Pecado reside justamente na tematização/problematização da moral social tal como ela é interiorizada individualmente enquanto reguladora de comportamentos normalizadores, mas — também e sobretudo — da origem de toda a moral, correspondente a uma profunda interrogação narrativa sobre a necessidade da existência de uma moral para que o Homem possa sobreviver em sociedade. Por isso, o vetor ou a ideia-força que atravessa as relações constituídas entre homem/mulher, senhor/servo, ateu/religioso, urbano/ rural, constituindo-se como centro invisível da constelação ideológica que molda Terra do Pecado é, de facto, a questão da essência da moral. O jovem Saramago, face a esta interrogação por si próprio levantada, que o escritor maduro repetirá hipostasiadamente em Ensaio sobre a Cegueira (1995), responde um pouco hesitantemente a partir de uma dupla vertente filosófica: com a teoria do britânico Herbert Spencer (1820-1903) e a de Sócrates (c. 470-399 a. C.).
De Spencer, filósofo inglês de expressão naturalista, Saramago recolhe os princípios gerais da sua teoria evolucionista, fundada no desenvolvimento oitocentista das ciências físicas e biológicas. Crente de que tudo se reduz a matéria e movimento, Spencer postula que as sociedades se organizam espontaneamente ao modo da organização biológica multifacetada dos corpos vivos, partindo de substâncias e organismos simples para organismos superiores, numa crescente complexidade estrutural. Aliás, na p. 183, a própria Maria Leonor pede ao Dr. Viegas que lhe tragdo escritório o livro Os Primeiros Princípios, de Spencer. Curiosamente, Maria Leonor serve-se deste livro como antigamente se servira da Bíblia; os princípios filosóficos de Spencer, evidenciando a ausência de transcendência além da morte e subsumindo as preocupações existenciais humanas no reino da sobrevivência de toda a forma de vida animal, servem a Maria Leonor «de qualquer coisa que me dê a certeza da minha mesquinhez»;235 ou seja, face a uma metafísica evolutiva que ostenta o nada que a cada instante histórico a existência humana é, como um entre muitos elos na cadeia evolutiva que existiram antes do aparecimento do Homem e que necessariamente prosseguirão depois do desaparecimento do Homem, Maria Leonor consola-se interiorizando estes princípios filosóficos de um ceticismo moral total, que retiram da vida não só a explicitação de um sentido transcendente, mesmo que artificial, mesmo que ilusório, como igualmente fazem desabar sobre a sua consciência a plena inutilidade de toda a ação: cada um de nós é apenas mais um elo de uma cadeia que, connosco ou sem nós, continuará o seu ritmo inexorável. Assim, o que restará?
[Resta]… aguentar a vida enquanto a morte não chegar.
Em Terra do Pecado, o confronto filosófico entre a conceção rousseauniana do Homem natural como ser genuinamente bom e a conceção hobbesiana do Homem social enquanto lobo do Homem é acompanhado não de um ceticismo relativo, mas de um ceticismo total e absoluto:
— E então? Admiras-te que, um dia, quando a Terra estiver esgotada de tudo, quando do solo já não sair mais que ossos e pedras, restos de gerações e civilizações, os outros, os futuros, deixem o cadáver inútil deste planeta para procurar novos lares no Infinito? Eu admito isto como possível e só lamento não participar nesse final de acto senão com uma costela esburgada, cravada no chão ao lado duma pedra do Parreiral!
Um meio sorriso entreabriu os lábios de Maria Leonor, que levantou para o médico o rosto enxuto, onde apenas os olhos brilhavam com uns restos de lágrimas.
— O doutor é imaginativo como um adolescente! Crê sinceramente no que acabou de dizer?
— Creio.
— Pois eu tenho ideias diferentes acerca disso a que chama final de acto. Penso que a humanidade futura não terá meios, nem possibilidades, nem forças, para fugir ao seu destino de vencida. E então, o final do acto será a Terra continuando a girar no espaço levando no dorso um carregamento de cadáveres até que o empresário se resolva a tirar a peça da cena…