Desde que políticos e autoridades de saúde começaram a repeti-lo em múltiplas intervenções públicas, o “R” tornou-se um dos protagonistas da pandemia da Covid-19. Este número é fundamental para o estudo da evolução do surto e para a forma como deve ser pensado o gradual regresso à normalidade após o período de isolamento social. Além disso, também permite prever de que forma responderão os serviços de saúde caso aumente ou diminua.
Em países como a Noruega, o R ideal para começar a planear o regresso gradual à normalidade foi definido nos 0,7. Em Portugal, depois de um mês com uma tendência de queda e de uma estagnação à volta dos 0,9 que faziam antever boas notícias, o valor voltou a subir, ultrapassando a barreira de 1 — aquela que mais se tentava evitar. A diferença, na prática, é simples: abaixo de 1, o surto está a diminuir; acima de 1, está a crescer.
Afinal, o que é o R, o que significa para o regresso à normalidade e o que sabemos sobre a forma como tem evoluído em Portugal?
“R0” e “Rt”. Que números são estes?
O “R” — ou “número de reprodução” — de um vírus é um dos mais importantes indicadores que a comunidade científica monitoriza para perceber a forma como a epidemia da Covid-19 está a evoluir em cada país. De forma muito simples, o “R” significa o número médio de pessoas que são contagiadas por cada pessoa infetada com o vírus.
Esta definição conduz a uma conclusão matemática muito óbvia: se o número for superior a 1, então a epidemia está a crescer ( cada infetado contagia, em média, uma outra pessoa e o número de casos futuros tenderá a ser maior do que o número de casos atuais); já se o número for inferior a 1, então a epidemia encontra-se a caminhar para o seu fim (cada infetado contagia, em média, menos de uma pessoa, com o número de novos casos a ser inferior ao número de casos atuais).
Os cientistas têm atenção a dois indicadores concretos. O primeiro é o chamado “R0” (R-zero, ou número básico de reprodução). Segundo uma explicação dada ao Observador pelo coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do INSA, Baltazar Nunes, trata-se do valor do R em “condições ideais para o vírus”. Ou seja, é o número médio de pessoas infetadas por cada doente num cenário “em que toda a gente é suscetível ao vírus, ninguém tem anticorpos, não há medidas de saúde pública implementadas e o vírus se propaga na população tendo em conta a taxa de contactos”. Trata-se da “propagação da doença em condições naturais” — no caso de Portugal, até 16 de março, altura em que a primeira medida, o encerramento das escolas, foi tomada.
Este indicador permite aferir o nível de contágio expectável de uma epidemia provocada por um determinado vírus e ter uma noção das medidas que será necessário implementar para reduzir o R até um valor que permita o controlo do surto.
Depois, ao longo do evoluir da epidemia, os especialistas vão fazendo atualizações periódicas do valor do R, a que chamam “Rt” — por ser o número de reprodução em função do tempo. “É o que nós monitorizamos para perceber o que se está a passar”, resumiu Baltazar Nunes ao Observador. Monitorizar a evolução do Rt é crucial para perceber o efeito das medidas de contenção ao longo do surto de Covid-19 e para determinar a necessidade de aligeirar, aprofundar ou manter os esforços de contenção do vírus.
Ainda assim, a comunidade científica tem alertado para a necessidade de ter cautela na forma como se usa e interpretam os valores de R, sobretudo o do R0. “Nas mãos dos especialistas, o R0 pode ser um conceito de grande valor. Porém, o processo de definir, calcular, interpretar e aplicar o R0 está longe de ser direto. A simplicidade de um valor R0 e a sua interpretação correspondente mascaram a natureza complicada desta métrica”, dizem especialistas dos Centros para o Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.
Após um mês a descer, “R” português volta a estar acima de 1
Ao contrário de outros países (como é o caso da Alemanha, que inclui a evolução do R nos boletins diários), as autoridades de saúde em Portugal não têm divulgado de forma sistemática a evolução diária do número de reprodução do SARS-CoV-2 no país. Este valor, que é calculado pelo INSA, tem sido partilhado apenas com a DGS e o Ministério da Saúde e discutido com os líderes políticos.
Ainda assim, através das declarações da ministra da Saúde, da diretora-geral da Saúde e do responsável pelos cálculos no INSA ao longo dos últimos dias, bem como de algumas informações recolhidas pelo Observador, é possível reconstruir um retrato aproximado da forma como o R (ou Rt) tem evoluído em Portugal desde o início do surto em território nacional.
Segundo explicou Baltazar Nunes, na última sexta-feira, ao Observador, os peritos portugueses mediram o R0 — o comportamento de vírus sem entraves, com condições ideias para se propagar — até ao dia 16 de março, dia em que as escolas portuguesas foram fechadas. “Mesmo assim, não conseguimos calcular de forma pura, porque já estávamos à espera do vírus e já havia alguns cuidados”, afirmou o responsável, que revelou apenas por estimativa o valor calculado nesse período, colocando-o entre 2 e 3.
Ou seja, antes de haver medidas implementadas e durante alguns dias, o vírus transmitiu-se naturalmente com cada infetado a contagiar em média entre duas e três pessoas.
Neste domingo, na habitual conferência de imprensa diária sobre a evolução do surto, a ministra da Saúde, Marta Temido, revelou com maior precisão o valor médio de contágio registado no mês de março: 2,08, “podendo o verdadeiro valor situar-se entre 1,97 e 2,19”. A ministra revelou também que entre os dias 16 e 20 de abril o valor “subiu um bocadinho em algumas regiões”, tendo alguns dias depois entrado numa rota descendente, como resultado da adoção de medidas de contenção ao abrigo do estado de emergência decretado a 18 de março.
Segundo dados recolhidos pelo Observador, o valor do R atingiu o maior pico entre os dias 21 e 23 de março. A partir daí, foi descendo gradualmente, atingido o valor de 1 por volta da Páscoa. A partir da Páscoa, que se assinalou no dia 12 de abril, o valor do R estagnou em torno dos 0,9, tendo registado pequenas flutuações sempre em torno desse número, ao longo de cerca de duas semanas.
Na última sexta-feira, o coordenador da Unidade de Investigação Epidemiológica do INSA, Baltazar Nunes, confirmou o valor ao Observador. “Agora está à volta dos 0,9. É a estimativa que temos. Tem variado de região para região, mas tem andado à volta desses valores e sempre abaixo de 1”, disse o responsável. “Aumenta ligeiramente, desce ligeiramente, tem estado estável.”
Este fim-de-semana, porém, o valor voltou a subir. Pela primeira vez desde a descida que se tem verificado após o início das medidas de contenção, o valor do R tornou a subir acima de 1 — o que significa que a epidemia deixou de estar em sentido descendente, voltando o número de novos casos a estar em crescimento.
A revelação foi feita pela própria ministra da Saúde, Marta Temido, na conferência de imprensa diária de domingo. O valor médio em Portugal é agora de 1,04, havendo pequenas variações regionais: “0,99 na região Norte e 1,2 na região de Lisboa e Vale do Tejo”. Isto significa que cada português infetado está a contagiar em média 1,04 pessoas e que o número de novos casos tenderá a ser maior do que o número de casos atuais. Ou seja, a epidemia voltou a crescer.
O “R” e o regresso à normalidade adiado
Apesar de toda a controvérsia em redor do assunto, a comunidade científica está segura de uma coisa: levantar as restrições impostas para lidar com o surto leva invariavelmente a um aumento da quantidade de contactos entre pessoas, o que tenderá a fazer subir o valor do R. Por isso, duas coisas são importantes: antes de levantar qualquer medida, é preciso estimar o impacto que essa ação poderá ter nesta subida do R; ao mesmo tempo, é preciso garantir que o R não ultrapassa o valor de 1, para que a epidemia não saia do controlo do sistema de saúde.
Para muitos especialistas, o simples facto de o Rt se encontrar abaixo de 1 não é suficiente para que seja seguro levantar medidas de restrição. Peritos em todo o mundo, com a Noruega a surgir como principal exemplo, têm apontado para o valor de 0,7 como um requisito mínimo para que se comece a pensar no levantamento das restrições.
No início de abril, o ministro da Saúde da Noruega, Bent Høye, anunciou que o Rt no país havia caído para 0,7 e afirmou, com convicção: “Isto significa que temos a epidemia sob controlo”. Logo no dia seguinte, o Governo norueguês começou a divulgar os seus planos para começar a reabrir as escolas e para levantar algumas das restrições de movimento que estavam implementadas desde março. Mesmo assim, com o Rt nos 0,7, os cientistas noruegueses alertaram para a necessidade de manter as condições que permitiram o declínio da epidemia.
Este exemplo foi levado pelos especialistas portugueses aos líderes políticos, numa reunião realizada no Infarmed há duas semanas e na qual estiveram presentes o Presidente da República, o primeiro-ministro, o presidente do Parlamento, os líderes partidários, os parceiros sociais e outros representantes políticos. Daí surgiu a ideia clara: Portugal devia esforçar-se para reduzir o Rt até aos 0,7 para começar a pensar em levantar as restrições.
Questionada depois numa conferência de imprensa, a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, desvalorizou o objetivo e disse que “não há nenhum valor milagroso”. O valor foi “apenas o número que a Noruega decidiu, com a população norueguesa, com a cultura norueguesa, com as características do serviço de saúde norueguês”, disse a diretora-geral da Saúde.
“Houve um país que, foi a Noruega, que decidiu que quando o R0 da Noruega fosse de 0,7, ou seja, quando uma pessoa infetasse em média 0,7 pessoas, estaria na altura de descomprimir as medidas de contenção. Este não é o único critério que está a ser utilizado por diferentes países”, acrescentou Graça Freitas, destacando que o país está a “acompanhar diferentes critérios, que estão a ser adotados por diferentes países, para ver qual é aquele se adaptará melhor à nossa realidade”.
Porém, especialistas ouvidos pelo Observador concordaram que o 0,7 é neste momento um indicador globalmente aceite como medida para o início da reabertura da atividade normal e sublinharam que é um valor que permite ter uma maior margem de manobra para que qualquer medida não faça o Rt ultrapassar o 1.
“O 0,7 dá uma maior folga na implementação de medidas do que o 0,9”, disse Baltazar Nunes ao Observador. Até porque o país ainda não sabe bem de quanta folga precisa. “Temos de saber em quanto é que as medidas que vamos implementar vão aumentar o R. Imagine que pretendemos reabrir o pequeno comércio. Para saber qual é o impacto, tenho de saber em quanto é que isso vai aumentar a taxa de contacto entre as pessoas”, explicou o responsável.
É preciso, por isso, olhar para os países que vão mais à frente que Portugal na evolução do surto e perceber o impacto de cada medida. “Tenho de ver, também, na Noruega, quando eles abriram o pequeno comércio, se o R deles passou de X para Y. Trabalhamos sempre com cenários”, exemplificou Baltazar Nunes.
Filipe Froes, que coordena o gabinete de crise montado pela Ordem dos Médicos para a Covid-19, disse mesmo que o 0,7 é um valor que “significa que foi atingido um patamar de sustentabilidade na propagação da doença que nos permite reabrir algumas atividades”. Esta reabertura tem de ser feita “com vigilância e de forma faseada”, para garantir que o Rt não ultrapassa o valor de 1, levando novamente ao descontrolo da epidemia.
A importância de evitar que o Rt passe o valor de 1 foi esta segunda-feira sublinhada pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, no primeiro discurso após a recuperação da Covid-19 e do regresso ao trabalho. Reconhecendo a “urgência” de combater o impacto económico da pandemia, Boris Johnson disse que era necessário “reconhecer o risco de um segundo pico, o risco de perder o controlo do vírus e de deixar o número de reprodução voltar a ultrapassar o 1“.
A mensagem seria depois reforçada pelo consultor médico do governo britânico, Chris Whitty, na conferência de imprensa diária sobre a evolução do surto no país. Aos jornalistas, Whitty disse que há “margem de manobra” para retomar alguma atividade económica sem que o Rt atinja o 1, mas reconheceu que é preciso fazer “escolhas difíceis” e lembrou que não é possível fazer tudo o que se pretendia e manter o Rt abaixo de 1.
Uma coisa é certa: se o valor de 0,9 já oferecia uma margem de manobra muito estreita para um eventual regresso gradual à normalidade já a partir de maio, a subida do Rt para 1,04 neste fim-de-semana mostra que a margem, que era pequena, já se esgotou — mesmo antes de qualquer medida ter sido levantadas.
O Governo já tinha feito saber que as aulas presenciais no ensino superior deveriam ser retomadas a partir do dia 4 de maio e que o início do mês de maio marcaria também um gradual regresso à normalidade nas celebrações religiosas (só as missas católicas levam cerca de três milhões de portugueses às igrejas todas as semanas). Este domingo, o jornal Público noticiou que o Governo já se prepara para adiar para a segunda metade do mês de maio e para o início de junho a reabertura do ensino.
“R” e o sistema de saúde: Portugal ainda sem cálculos
O valor do Rt pode revelar-se ainda útil para avaliar a capacidade do sistema de saúde para lidar com a pandemia, embora esses cálculos ainda não estejam disponíveis em Portugal. Numa intervenção feita em Berlim há duas semanas, na qual expôs o plano do governo alemão para responder ao surto, a chanceler alemã, Angela Merkel, descreveu detalhadamente como o valor do Rt influencia a capacidade de resposta do sistema.
Lembrando que o Rt estava na altura à volta de 1 (valor que viria entretanto a descer), Merkel explicou qual era a capacidade do sistema de saúde alemão para responder a eventuais subidas daquele valor. Se o número subisse para 1,1, o sistema aguentaria até outubro; se subisse para 1,2, até julho; se subisse para 1,3, a capacidade esgotar-se-ia em junho. “Podem ver a partir daqui a pequena margem de manobra que temos”, concluiu Merkel.
This is how Angela Merkel explained the effect of a higher #covid19 infection rate on the country's health system.
This part of today's press conf was great, so I just added English subtitels for all non-German speakers. #flattenthecurve pic.twitter.com/VzBLdh16kR
— Benjamin Alvarez (@BenjAlvarez1) April 15, 2020
E em Portugal? “Essas contas estão a ser feitas, mas neste momento não temos resultados finais para os apresentar”, respondeu Baltazar Nunes ao Observador. Na verdade, o país partiu mais atrasado do que outros para este cálculo, precisando primeiro de determinar a real capacidade instalada do sistema de saúde em Portugal. A título de exemplo, em março, o levantamento dos ventiladores existentes em Portugal ainda estava a ser feito.