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Los Angeles Times via Getty Images

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Recrutas sem experiência, uso excessivo da IA e uma "cultura relaxada". Como se explicam "erros" dos ataques do exército israelita

As IDF gostam de se definir como "o Exército mais moral", mas há especialistas militares que discordam. Em Gaza, o número de civis encarados como "danos colaterais" aumentou nesta guerra. Porquê?

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“Aqueles que ousam acusar os nossos soldados de crimes de guerra são pessoas imbuídas de hipocrisia e mentiras, que não têm uma única gota de moralidade. O Exército é o mais moral do mundo. O Exército israelita faz tudo para evitar provocar dano aos que não estão envolvidos.”

Tinham passado poucas semanas desde que as Forças de Defesa de Israel (IDF na sigla original) tinham começado a guerra em Gaza, em resposta ao ataque de 7 de Outubro, do Hamas. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, anunciava numa conferência de imprensa que o Exército israelita ia avançar para a “segunda fase” da guerra — que nos dias seguintes se confirmaria com uma invasão terrestre total. E aproveitava para garantir que as IDF cumpriam escrupulosamente o Direito Humanitário Internacional e que os civis seriam poupados na medida do possível, invocando a expressão “Exército mais moral”, que outros já tinham usado no passado para as IDF.

Quase seis meses depois, as palavras de Bibi são postas em causa não apenas por ONG e pela ONU (com quem Israel tem agora um diferendo declarado). O próprio Presidente dos Estados Unidos criticou em público a atuação das IDF esta semana, na sequência do ataque a uma caravana da ONG World Central Kitchen: “Tragicamente, este não foi um incidente isolado”, disse Joe Biden. “Israel não tem feito o suficiente para proteger os trabalhadores humanitários que estão a tentar distribuir ajuda aos civis que precisam desesperadamente dela.”

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O caso do ataque à WCK é sintomático por ter colocado o Exército israelita não apenas debaixo de uma chuva de críticas de líderes internacionais, mas também por ter levado as próprias IDF a emitirem um pedido de desculpas público e a demitir dois oficiais. O ataque, explicaram as IDF, deveu-se a um “erro de comunicação” — o operador de drone não estava informado de que aquela caravana não podia ser atacada —, agravado pelo facto de alguns oficiais terem visto aquilo que lhes parecia ser um homem armado em cima de uma das carrinhas.

Uma das carrinhas da ONG World Central Kitchen atacada pelas IDF

Middle East Images/AFP via Getty Images

Na sequência do ataque, várias críticas e notícias puseram em cheque a atuação das IDF. Chris Lincoln-Jones, major britânico que chegou a trabalhar com o Exército israelita, afirmou por exemplo ao The Times que “seria inconcebível os [exércitos] britânico ou norte-americano fazerem algo assim”.

Em Israel, várias fontes internas do Estado começaram a transmitir a alguns jornalistas que este é o exemplo de uma cultura preocupante que se vive nas fileiras: “O comando sabe exatamente qual foi a causa deste ataque”, comentou um membro dos serviços secretos ao Haaretz. “Em Gaza, cada um faz o que lhe apetece.” Outro responsável disse ao Times of Israel que os soldados “estão a disparar primeiro e a fazer perguntas depois”.

Israel, o “Exército mais moral”? “Já não”. As regras de combate são agora “mais relaxadas”

É isso que explica este e outros “erros”, como o da morte de três reféns que haviam sido raptados pelo Hamas pelos próprios soldados de Israel? E poderá o elevado número de mortes (mais de 30 mil, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza controlado pelo Hamas, muitos dos quais serão civis) ser explicado por descuido na aplicação das leis da guerra? As IDF merecem mesmo o epíteto de “Exército mais moral”?

Frank Ledwidge, ex-militar que serviu nos Balcãs e na guerra do Iraque, responde de forma lacónica a esta última pergunta do Observador: “Já não”, diz o também doutorado em Estudos de Guerra pela Kings College. “É verdade que as IDF têm tido muito mais situações de combate em cenários complicados do que qualquer outro Exército, a não ser talvez o norte-americano. E diria que, até novembro do ano passado, eles eram um ‘Exército moral’, com algumas exceções”, aponta.

“Caíram na armadilha do Hamas, deram a resposta que eles estavam exatamente à espera. Que é uma resposta desproporcional.”
Frank Ledwidge, antigo militar britânico doutorado em Estudos de Guerra

Agora, a situação é outra, concede. “Acho que eles ficaram assoberbados com a dimensão do desafio [em Gaza]”, justifica. “Caíram na armadilha do Hamas, deram a resposta que eles estavam exatamente à espera. Que é uma resposta desproporcional.”

Raphael Cohen, que também combateu no Iraque com o Exército norte-americano, desvaloriza por completo o epíteto de “Exército mais moral”. “Já não acreditava nisso antes e não acredito agora. Os exércitos gostam de pensar em si próprios como os melhores, os mais morais, etc. Mas não acredito que o Exército norte-americano o seja, não acredito que o Exército israelita o seja, nem qualquer outro exército”, diz taxativamente ao Observador o agora diretor do programa de Estratégia do think tank RAND, especializado em matérias militares.

O que não significa, contudo, que Cohen ache que as IDF são particularmente piores a cumprir as leis da guerra — “Se substituíssemos os soldados israelitas por soldados norte-americanos, acho que teríamos o mesmo tipo de desafios”, nota, destacando as “circunstâncias difíceis” de combater num terreno urbano, onde o inimigo se esconde entre a população civil.

Mas, mesmo com todas essas ressalvas, o antigo oficial não tem dúvidas de que o Exército israelita partiu para Gaza desta vez com ordens muito diferentes das guerras anteriores: “A seguir ao 7 de Outubro, as regras de combate foram dramaticamente relaxadas”, sentencia, referindo-se às ordens que os soldados têm para perceber quando é justificado ou não abrir fogo — e que as IDF não divulgam, por serem “confidenciais”.

Jovens recrutas são mais propensos a “disparar primeiro e fazer perguntas depois”

Houve pelo menos um incidente, contudo, em que as “regras de combate” foram violadas. Foi isso que assumiu o porta-voz das IDF, o contra-almirante Daniel Hagari, quando se pronunciou sobre a morte de três reféns raptados pelo Hamas, que foram mortos por dois soldados israelitas, quando se dirigiam para eles empunhando uma bandeira branca e pedindo ajuda em hebraico.

Em declarações a soldados da 99.ª Divisão, Hagari relembrou algumas das regras: “Quando veem duas pessoas com as mãos no ar e sem camisola, parem dois segundos”, disse. “E se forem duas pessoas de Gaza com uma bandeira branca que vêm render-se, disparamos contra elas? Jamais. Jamais.”

O problema do incidente com os reféns é que foi identificado por ter acontecido com cidadãos israelitas, mas pode indiciar um padrão mais lato. “Foi um caso evidente de disparar primeiro e fazer perguntas depois”, nota Frank Ledwidge. “E isso faz-nos perguntar: quantos dos milhares que já foram mortos podem ter sido mortos em circunstâncias semelhantes?”

Devido ao sistema de recruta, a idade média dos soldados israelitas é bastante baixa

Los Angeles Times via Getty Images

A probabilidade de situações destas ocorrerem é maior quanto menor for a experiência dos militares envolvidos, notam os especialistas. Um comandante de uma brigada a combater no norte de Gaza relembrou isso mesmo ao Haaretz, dizendo que jovens recrutas têm mais tendência a disparar sem pensar. E as IDF são um Exército que assenta precisamente no recurso a jovens recrutas, que cumprem serviço militar obrigatório, mais do que em militares profissionais e reservistas.

“Imagine num dia estar a trabalhar numa empresa tecnológica em Telavive e no dia seguinte estar num campo de batalha em Gaza. É claro que vai haver desafios”, ilustra Raphael Cohen, que em janeiro escreveu um artigo onde aponta para a grande preponderância de soldados vindos do setor civil: “Estima-se que só do setor tecnológico venham 10% a 15% dos recrutas”, notou, já para não falar das outras áreas da sociedade. “As IDF têm incentivos culturais e estruturais para combater e vencer o mais rapidamente possível”.

“Por causa da recruta, os oficiais são tendencialmente mais jovens do que os oficiais norte-americanos: são jovens de 20 e tal anos a comandar recrutas com 18 ou 19. Talvez não seja de espantar que os observadores militares norte-americanos sejam surpreendidos pela informalidade e falta de atenção a protocolo militar básico das IDF.”
Raphael Cohen, ex-oficial e analista do think tank militar RAND

E esse não é o caso desta guerra, que já dura há cinco meses e não tem data de fim à vista. Durante este período prolongado, as ações de militares inexperientes não só se vão tornando mais evidentes, como não se limitam ao campo do combate: são vários os relatos de pillhagens e maus-tratos a prisioneiros, por exemplo, muitas vezes conhecidos através de vídeos divulgados pelos próprios soldados nas redes sociais.

A falta de experiência acaba por ter reflexos também na própria forma de funcionamento do Exército. “Por causa da recruta, os oficiais são tendencialmente mais jovens do que os oficiais norte-americanos: são jovens de 20 e tal anos a comandar recrutas com 18 ou 19. Talvez não seja de espantar que os observadores militares norte-americanos sejam surpreendidos pela informalidade e falta de atenção a protocolo militar básico das IDF”, ilustrava Cohen no seu artigo de janeiro.

O ex-oficial Frank Ledwidge concorda. “Quando se é um soldado profissional, há obrigações que se respeitam sempre e há a consciência de que se faz parte de uma profissão com regras. Quando se aumenta a escala e se começa a incluir soldados não-profissionais em situações de combate pesado, as falhas começam a surgir.”

As IDF estão a respeitar o princípio da proporcionalidade, definido nas leis da guerra?

A inexperiência e juventude dos soldados das IDF pode explicar incidentes como a morte dos reféns, mas poderá também explicar o elevado número de civis mortos nesta ofensiva? Segundo os dados do Hamas, são já mais de 30 mil mortos, dos quais a maioria seriam civis. A comunidade internacional contesta estes números, mas a verdade é que, mesmo que sejam inferiores, continuam provavelmente na escala das dezenas de milhares, segundo os especialistas, que apontam para o número de vítimas que ainda podem estar debaixo dos escombros.

Phil Klay, antigo fuzileiro norte-americano, escreveu no mês passado na revista The Atlantic que Israel largou seis mil bombas sobre Gaza nos primeiros seis dias da guerra, comparando-as com as 2.500 bombas largadas por mês pelos Estados Unidos no Iraque e Síria para combater o Estado Islâmico. “Mesmo que aceitemos a afirmação das IDF de que 12 mil dos 29 mil mortos em Gaza registados a 29 de fevereiro eram combatentes inimigos, isso significa que, por cada 100 ataques aéreos de Israel, as IDF matam em médias 54 civis. Na campanha dos EUA em Raqqa, o Exército americano provocou 1,7 mortes de civis por cada 100 ataques.”

Mais de 100 pessoas, na maioria civis, terão morrido no ataque ao campo de refugiados de Jabalya

Anadolu via Getty Images

Situações como o ataque a um indivíduo que estava no campo de refugiados de Jabalya, onde os médicos em Gaza estimam ter morrido mais de 100 pessoas (a larga maioria civis), levaram os Estados Unidos a pedir a Israel explicações sobre a tomada de decisão desse ataque. É que, de acordo com o Direito Internacional, cada decisão para fazer um ataque militar tem de cumprir os princípios da distinção — garantir que o alvo principal é militar e não civil — e da proporcionalidade — o número de civis que podem morrer na sequência do ataque como “danos colaterais” deve ser calculado consoante a importância do alvo militar, permitindo-se mais baixas quanto mais relevante for o alvo.

John Spencer, oficial norte-americano que tem acompanhado o trabalho das IDF, é um dos que considera que o Exército israelita tem cumprido aquilo a que chama de “padrão dourado” para proteger a vida de civis. O investigador da academia de West Point, a instituição educativa militar mais respeitada nos Estados Unidos, é um dos principais defensores de Israel nesta matéria, apontando para duas ações habitualmente levadas a cabo pelas IDF que diz não serem postas em prática por todos os exércitos: os avisos em forma de milhares de panfletos e contactos telefónicos de que determinada área irá ser atacada, apelando aos civis para que a abandonem; e a tática a que se chama de “bater no telhado” (roof-knocking), quando os soldados disparam um pequeno míssil para o telhado de um prédio como forma de aviso antes de este ser bombardeado, dando algum tempo aos civis para saírem dele.

Segundo as suas contas, Spencer desmente valores como os apontados por Klay, dizendo que o rácio é de 1,5 civis mortos por cada 1 combatente morto — contrastando com o de 2,5 e 1 dos EUA em Mossul. “Tendo em conta a provável inflação do número de mortes feita pelo Hamas, o número real pode ser mais próximo de 1 por 1”, afirmou. “É historicamente baixo para uma situação de guerrilha urbana moderna.”

Outros especialistas, porém, contestam alguns dos argumentos de Spencer. Larry Lewis, especialista em mitigação de danos a civis em contexto militar, nota que os avisos de evacuação têm limites numa região densamente povoada como Gaza: “Foi-lhes ordenado que fossem para sul, mas essa área também não está imune a ataques e tanto Israel como o Egipto fecharam as fronteiras”, diz. Também relativamente ao “bater no telhado” levanta questões: “Num prédio com vários andares, em quantos pisos se ouve o ‘roof-knocking’ e quantos percebem sem dúvidas que é um aviso? Em entrevistas sobre as operações de 2014, civis disseram que ficavam confusos. O aviso era para o seu prédio, para um prédio ao lado ou um ataque numa área próxima?”

O elevado número de mortes em Gaza pode também ser explicado pelo maior recurso a tecnologias de Inteligência Artificial (IA), que em outubro já eram apelidadas pelo antigo chefe do Estado-Maior Aviv Kochavi de um “aparato semelhante ao filme Matrix” que representa “a guerra do futuro”.

A isso junta-se o facto de, nesta guerra, este ser um recurso que tem sido menos usado, segundo contam alguns militares. Os relatos que têm chegado aos jornais israelitas dão conta de práticas que demonstram muito menos cuidado na proteção de vida dos civis. Ao Haaretz, um oficial afirmou claramente que a prática neste momento é a de instalar “zonas para matar”: qualquer pessoa que entre em determinado perímetro é abatida, sem contemplações. A lógica é a de que os civis já terão abandonado a zona e que qualquer pessoa que ali se mantenha é considerada um combatente inimigo.

O elevado número de mortes em Gaza pode também ser explicado pelo maior recurso a tecnologias de Inteligência Artificial (IA), que em outubro já eram apelidadas pelo antigo chefe do Estado-Maior Aviv Kochavi de um “aparato semelhante ao filme Matrix” que representa “a guerra do futuro”.

O funcionamento dos sistemas foi relevado por investigações dos órgãos israelitas +972 Magazine e Local Call, graças a testemunhos de seis fontes militares que os usaram recentemente em Gaza. Frank Ledwidge resume o que está em causa: “Há dois sistemas. Um chama-se ‘Evangelho’ e identifica alvos como instalações, casas, apartamentos, túneis. O outro chama-se ‘Lavanda’ e identifica pessoas. O que acontece com ambos é que fundem várias fontes de informação, aquilo a que chamamos fusão: imagens, informação geográfica, informações recolhidas pelos serviços, etc. E os sistemas apresentam uma série de alvos, ordenada por prioridades.”

O problema com estes sistemas é que podem não só ter erros ainda não detetados (a taxa de erro estimada neste momento é de 10%), como, segundo a investigação da +972, estão a ser usados para identificar alvos nas suas casas. “As fontes explicaram que uma das principais razões para a taxa de mortalidade sem precedentes destes ataques é o facto de o Exército estar a atacar sistematicamente alvos nas suas casas, onde estes estão com as suas famílias — em parte porque é mais fácil para os sistemas de automação identificarem as casas.

Uma das casas destruídas em Gaza

AFP via Getty Images

Para além disso, as mesmas fontes dizem que os comandantes têm dado autorização para matar esses alvos mesmo quando haverá centenas de civis mortos, como “danos colaterais”. Um rácio que, para alguns militares, é demasiado elevado e não cumpre o princípio da proporcionalidade. Como exemplo, Lattimer e outros oficiais norte-americanos apontam que, nas guerras do Afeganistão e do Iraque, os Estados Unidos colocavam como ponto de referência a tolerância de 30 civis mortos num ataque que pudesse eliminar o alvo militar mais importante de todos: Ossama Bin Laden. Para alvos menores, o rácio deveria ser de zero civis como “danos colaterais”.

Alguns especialistas militares, porém, fazem algumas ressalvas: o facto de Israel estar a levar a cabo ataques que provocam muitas mortes civis não significa automaticamente que está a cometer crimes de guerra. “As leis da guerra não regulam os efeitos do combate, regulam as decisões para combater. Regula a avaliação que foi feita no momento do ataque, não o resultado do ataque”, notou o tenente-coronel Geoffrey S. Corn num evento do Council of Foreign Relations. Na mesma conferência, Janina Dill, especialista em ética militar, destacou outro elemento: “Não há jurisprudência de alguém ter sido acusado ou condenado por ataque intencionalmente desproporcional. Isto é muito difícil de operacionalizar e de julgar a posteriori.”

Apesar disso, militares como Frank Ledwidge consideram que as IDF estão a percorrer um caminho perigoso, que começa a “mordiscar o conceito do Direito Humanitário Internacional”. “Imagine uma situação em que, para atingir 30 alvos, se está disposto a aceitar que haja 200 civis mortos. Há aqui uma avaliação de valores: estás disponível a aceitar isto? Eu, pessoalmente, não estou, acho que é uma avaliação terrível. Mas, para eles, só há uma única consideração a ter em conta neste momento: eliminar o Hamas.”

Uma resposta militar alimentada a “raiva e vingança”, que se combina como uma “cultura informal” dentro do Exército

A própria cultura dentro das IDF sempre foi a de provocar o máximo dano possível ao inimigo, tendo como prioridades a defesa de civis israelitas em primeiro lugar, a defesa da vida dos soldados israelitas em segundo e só depois a dos civis do território inimigo, notava já em 2015 Neve Gordon, especialista israelita em Direito Internacional.

Em muitos momentos, o recurso era o de aplicar a chamada Doutrina Dahiya: “Aplicar poder desproporcional contra cada aldeia de onde se dispara contra Israel e causar imensos danos e destruição”, resumiu assim o comandante Gadi Eisenkot, seu criador, em 2008. Eisenkot é, neste momento, observador no Gabinete de Guerra do governo israelita.

Alguns dos relatos que surgem agora de que estarão a ser montadas “zonas para matar” e imposta uma cultura de “disparar primeiro e fazer perguntas depois” não são exatamente novas. A associação de veteranos israelita “Breaking the Silence” fez uma compilação de relatos de militares que estiveram em Gaza na operação de 2014, onde são identificados comportamentos semelhantes à altura: “As regras de combate são sempre as mesmas: qualquer coisa dentro [da Faixa de Gaza] é uma ameaça, a área tem de ser ‘esterilizada’ e esvaziada”, afirmou um soldado que serviu em Deir al-Balah, junto à costa. “Quando se dispara sobre alguém em Gaza é fixe, não é um problema. Primeiro, porque é em Gaza. Segundo, porque isto é a guerra. Isso era-nos deixado claro: diziam-nos ‘Não tenham medo de disparar’ e diziam que não há civis que não estejam envolvidos”, contou outro sargento que esteve na zona norte do território.

A cultura dentro das IDF é mais "informal" do que noutros exércitos, com muitas regras transmitidas de forma oral

AFP via Getty Images

O diretor da associação, o ex-sargento Avner Gvaryahu, diz que estas atitudes se explicam pela forma de funcionamento interno das IDF: “A maior parte das regras de combate são transmitidas de forma oral”, resumiu ao Washington Post. “São interpretadas pelo comandante e pelo oficial de patente mais baixa, que adicionam a sua própria ideologia e a sensação de medo que têm.”

Uma avaliação corroborada por Raphael Cohen, que fala numa “cultura mais relaxada” dentro das IDF quando comparada com as de outros exércitos. “Tem tendência a ser mais informal e a permitir mais iniciativa individual dos comandantes. Não podemos é dizer se terá sido esta estrutura a ter influência direta nos casos recentes como o do ataque à ONG.”

Certo é que o mesmo Exército que chegou a criar a “Doutrina Dahiya” deixou claro em público que, desta vez, o foco em Gaza seria de ainda mais destruição, na sequência do 7 de Outubro, encarado pelos israelitas como “o seu 11 de Setembro”. “O ênfase estará na destruição, não na precisão”, anunciou o porta-voz Hagari logo no início da ofensiva. “No passado, a ideia era usar a força de forma contida e manter um Hamas fraco que podia continuar a gerir a Faixa de Gaza. Era uma entidade hostil, não um inimigo”, resumiu o tenente-coronel Peter Lerner. “Mas quando a organização executou este plano diabólico, mudou as regras do jogo. Portanto Israel também as está a mudar.”

Os números falam por si: no primeiro mês da guerra, as IDF dizem ter atingido 15 mil alvos em Gaza. Na operação de 2014, que durou 51 dias, atingiu menos de seis mil.

"Na II Guerra Mundial, os Aliados sabiam o que constituiria uma vitória. E está a tornar-se muito claro que, neste caso, já passaram seis meses e os israelitas continuam sem saber o que será a vitória."
Frank Ledwidge, antigo militar britânico doutorado em Estudos de Guerra

“Um israelita no outro dia disse-me: ‘Era impossível fazer de outra maneira, tal era o nível de raiva e desejo de vingança’”, resume Ledwidge. Mas o antigo oficial considera que as táticas brutais esbarram numa falta de estratégia que torna tudo ainda mais grave: “Há uma visão ética dentro de Israel neste momento que é a de ‘Estamos dispostos a matar milhares de civis, porque é o que é preciso para chegar à vitória’. Semelhante à estratégia aplicada pelos Aliados na II Guerra Mundial”, aponta. “Mas há uma diferença: na II Guerra Mundial, os Aliados sabiam o que constituiria uma vitória. E está a tornar-se muito claro que, neste caso, já passaram seis meses e os israelitas continuam sem saber o que será a vitória.”

O objetivo militar de “eliminar o Hamas” é difícil de se traduzir em ações concretas. “O Hamas imita um Exército”, afirma Frank Ledwidge. “Tem um esqueleto que pode ser reconstruído. Pode matar-se muitas e muitas pessoas e ele continuará a ter capacidade de voltar a crescer.” A falta de compromisso do governo israelita sobre que futuro quer impor na Faixa da Gaza é outro dos problemas que tem levado os Estados Unidos a endurecer cada vez mais as críticas a Benjamin Netanyahu. E que levanta a questão: os milhares de civis mortos são o preço a pagar pelo quê exatamente?

As IDF referem uma e outra vez que estão a lutar contra um inimigo que se esconde entre a população civil, que usa escudos humanos e que não cumpre as regras do Direito Internacional Humanitário. Mas para vários especialistas militares, isso não deve traduzir-se num Exército israelita que encare as regras da guerra de leviana: “A adesão a estas leis é o que distingue os soldados profissionais dos bárbaros”, notou Kevin Benson, antigo coronel norte-americano e colega de John Spencer na academia de West Point.

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