Sentado no sofá da sala de casa, Manuel Pinto tenta puxar pela memória para recordar como têm sido os últimos sete meses. Aos 45 anos, está a fazer reabilitação para recuperar das sequelas da Covid-19 e de um AVC que teve durante o internamento.
[Pode ouvir aqui a quarta parte da reportagem Recuperados, da Rádio Observador, sobre Manuel Pinto]
Recuperados. Depois da Covid-19 veio o AVC. “A minha vida nunca mais vai ser a mesma”
Em casa, a filha foi a primeira a testar positivo ao novo coronavírus, em Agosto. Manuel teve sintomas poucos dias depois: dores no corpo, febre e muito cansaço que o levaram até ao Hospital de São José, em Lisboa. O teste positivo à Covid-19 chegou a 5 de agosto. Inicialmente, cumpriu isolamento em casa. Mas os sintomas agravaram-se e acabou por ser internado uma semana depois no Curry Cabral. Já no hospital, o estado piorou e Manuel foi entubado e induzido em coma. “Daí em diante, não me lembro de nada”.
Passou 32 dias em Cuidados Intensivos. As memórias que guarda desse tempo são confusas. “Ouvia vozes e os médicos a falarem dentro aquelas roupas de astronauta… E lembro-me de ouvir alguém a dizer: ‘Tão jovem…'”.
É o som que mais marca esses dias em que esteve inconsciente. O barulho dos ventiladores, do oxigénio, das máquinas que medem os sinais vitais. Nos Cuidados Intensivos, nunca há silêncio. “Ainda hoje, vejo o Telejornal e cada vez que ouço as máquinas, aquele piii… piii… mexe comigo e começo a chorar. Nem quero ver. Aquilo impressiona-me muito”.
É um som que o persegue, tal como o desespero que sentiu: “Não conseguia dizer que estava vivo. Não me conseguia mexer. Estava paralisado. Só o meu cérebro é que estava a trabalhar”.
A perceção que Manuel tinha não estava longe da verdade. Em casa, a família foi avisada que podia acontecer o pior. O filho, Isaac Pinto, estava na altura a trabalhar nos Açores e regressou a Lisboa. Chegou a colocar-se a hipótese de uma última visita da família.
Mas Manuel resistiu. A pouco e pouco, foi começando a reagir. Isaac mostra-nos uma gravação no telemóvel. Quando o pai acordou, os médicos fizeram uma videochamada para casa. No vídeo, Manuel está ainda entubado. Não consegue falar, mas, de lágrimas nos olhos, vai reagindo à voz da mulher.
Os médicos puxam por ele. “Manuel, manda um beijinho! Esforça-te! Tu consegues”. E Manuel mexe os lábios. “Isso mesmo! Fez-lhe bem esta chamada”, diz uma das médicas. Manuel conta que esta chamada foi fundamental. Foi ali que arranjou força para começar a recuperar. “Deram-me mais uma oportunidade”.
Depois de acordar do coma, a 7 de setembro, fez uma série de exames médicos. E foi nessa altura que detetaram que Manuel tinha tido um AVC.
Cerca de 2% dos doentes hospitalizados com Covid-19 tiveram um AVC
As consequências da Covid-19 ainda estão ser estudadas em todo o mundo e apontam para uma relação entre o vírus SARS-CoV-2 e o aparecimento de doenças cardiovasculares, como os acidentes vasculares cerebrais.
Elsa Azevedo, diretora do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar de São João, revela as conclusões de uma investigação que faz parte do projeto europeu Ean NEuro-covid ReGistrY (ENERGY) e que analisou dados de cinco hospitais do Norte do país. Cerca de 2% dos doentes hospitalizados com Covid-19 tiveram um AVC.
Recentemente, o Hospital de São João fez parte de um outro estudo internacional que avaliou casos de AVC associados a Covid-19. Juntou 432 doentes de 17 países. Esta análise permitiu perceber que a maior parte dos infetados de Covid-19 que têm um AVC são pessoas que têm fatores de risco. “Nesses casos, a infeção pode ter atuado como facilitador de um acidente vascular cerebral, descompensando problemas prévios”, revela Elsa Azevedo.
Já se sabe que a Covid-19 afeta o revestimento dos vasos sanguíneos e também que aumenta a propensão para criar coágulos no sangue. “Por exemplo, numa pessoa que tenha placas ateroscleróticas nas artérias, a infeção pode provocar um trombo numa das placas, acabando por entupir a artéria”.
No entanto, a especialista salienta que em muitos casos em que os AVC aparecem associados à infeção com o novo coronavírus, os doentes eram saudáveis.
“Verificou-se que em cerca de 25% destes casos as pessoas não tinham antecedentes nem fatores de risco e tinham menos de 55 anos. Portanto, aqui o acidente vascular cerebral deveu-se apenas a complicações da infeção, nomeadamente o aumento da coagulabilidade do sangue, a inflamação das artérias e também o facto de outros órgãos, como o coração, terem sido atingidos”.
Com ou sem doenças associadas, tudo parece indicar que, quando há infeção com o novo coronavírus, os acidentes vasculares cerebrais são mais graves. Elsa Azevedo explica que, normalmente, 20% dos casos de AVC atingem pequenas artérias; ou seja, são mais ligeiros. Mas quando o AVC está associado à Covid-19, esse valor é de 10%.
“De uma forma geral, o AVC foi mais grave porque afetou mais vezes grandes artérias. Uma grande artéria leva sangue para um território cerebral grande. Isto significa que são acidentes vasculares-cerebrais em que é afetada uma área grande do cérebro. Em geral, a mortalidade nos casos de AVC foi 5% superior quando estão associados à infeção com o vírus Sars-Cov-2.
A diretora do Serviço de Neurologia do Centro Hospitalar do São João lembra que ainda vamos ter de conviver com o vírus por muito tempo e o processo de vacinação vai demorar até estar concluído. Por isso, Elsa Azevedo defende que é determinante o acompanhamento médico regular de quem tem fatores de risco cardiovasculares. “Estas pessoas têm de estar compensadas, têm de fazer a medicação para estas doenças. Descurarmos este aspeto vai fazer com que uma possível infeção de Covid-19 provoque um quadro grave, que pode precipitar um acidente vascular cerebral”.
“As doenças crónicas têm de estar bem controladas de forma a que, se por acaso os doentes forem infetados, não tenham tanto risco de desenvolver um AVC”, frisa a especialista.
“Vivo na dependência e isso irrita-me”
Depois de 32 dias nos cuidados intensivos, Manuel Pinto foi transferido para a enfermaria. E começou o processo de reabilitação, com fisioterapia, terapia da fala e terapia ocupacional. Mas para além das sequelas físicas, há também sequelas neurológicas. “Perdi a noção do tempo. Lembro-me de memórias antigas, mas não das mais recentes. O AVC afetou muito a minha mente”.
Lentamente, Manuel foi recuperando algumas capacidades e não poupa elogios à equipa médica que o acompanhou. Deixou o Hospital Curry Cabral a 19 de outubro e passou a ser acompanhado como doente externo. Faz reabilitação três dias por semana e as sessões chegam a durar três horas — será assim nos próximos tempos.
O processo de recuperação é lento. E, às vezes, Manuel desespera quando pensa na vida que tinha. Trabalhava como administrativo numa instituição de solidariedade social e era pastor evangélico. “Era muito ativo e agora há coisas que já não sou capaz de fazer. Por exemplo, escrever ao computador, que era a base do meu trabalho diário”.
“Dependo da minha mulher para me vestir, para tomar banho… para tudo. Vivo na dependência e isso irrita-me”. Além da recuperação física, Manuel tem também acompanhamento psiquiátrico. Não conseguir fazer coisas simples do dia-a-dia e não poder trabalhar agravam a ansiedade que sente. E ainda está a tentar processar tudo o que passou. “Sinto que quem teve Covid-19 não volta a ter a mesma vida”.
Manuel tem um longo processo pela frente. Mas todos os dias consegue fazer um bocadinho mais. “Sinto essa recuperação; tenho cada vez mais força. Os médicos dizem que eu sou muito novo e que vou recuperar. Isso é bom. Tinha uma vida muito ativa e sinto falta do trabalho, mas tenho fé que vou melhorar”.