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Shams Al-Qassabi, aqui com o anterior emir Hamad bin Khalifa Al Thani, não demorou a tornar-se notícia pela sua história
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Shams Al-Qassabi, aqui com o anterior emir Hamad bin Khalifa Al Thani, não demorou a tornar-se notícia pela sua história

Shams Al-Qassabi, aqui com o anterior emir Hamad bin Khalifa Al Thani, não demorou a tornar-se notícia pela sua história

Reforma do marido, corte da família, ofensas e o império criado com cinco euros: Shams Al-Qassabi, a primeira mulher com um negócio no Qatar

Não tem qualquer formação, começou a vender especiarias em casa e a ideia de arrancar com um negócio custou-lhe a ligação com a mãe e irmãos por ser algo menor. A vida de um ícone, contada pela filha.

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Enviado especial do Observador em Doha, no Qatar

Há quem prefira o reboliço de uma Fan Zone, a maioria parece gostar mais da passagem pelo Souq Waqif. Só perde em dois pontos e de forma clara, pelo facto de ser um local onde encontrar álcool não é propriamente a coisa mais fácil do mundo e que não tem os ecrãs gigantes para ver os encontros do Mundial, em tudo o resto goleia. Tem outra vantagem, que convém manter mais ou menos em segredo enquanto não termina a fase de grupos: de manhã, mesmo de manhãzinha, está menos cheio do que é habitual por estes dias. E é de manhã, mesmo de manhãzinha, que Shams Al-Qassabi mantém a rotina de abrir os seus espaços entre restaurante e loja de especiarias. Também pela hora, ainda tem mesas. O que não sabíamos era que viria sentar-se na nossa.

Até ao Shay Al-Shmous, uma volta pelo mercado mais famoso de Doha. Aqui há literalmente um pouco de tudo (menos cromos da caderneta do Mundial, pelo menos que tivéssemos visto, embora até isso nos tenham dito que era uma questão de procurar), das roupas tradicionais aos habituais souvenirs, passando por toda uma panóplia de especiarias e frutos secos, muito artesanato e animais, entre pássaros e coelhos. A parte da restauração e os salões de shisha também são dos pontos mais procurados e é isso também que nos leva até a uma ponta do mercado por um caminho de ruas tão estreitas que nem o GPS reconhece quando se vira para a direita ou para a esquerda, tamanho é o aperto do movimento. Uma parte preserva o que era a sua arquitetura original, outra já tem a fachada pós-remodelação de 2006. E a esplanada chama-nos.

Ainda antes de nos sentarmos, uma pergunta inocente: haverá alguém que nos possa contar a história do espaço que se tornou quase um ponto de paragem obrigatório? Pedindo para nos sentarmos, uma resposta surpreendente: “Sim, vou já chamar. Toma alguma coisa?”. Um minuto depois aparece Eman, de trajes tradicionais negros, cabelo tapado e o calor que se sente a começar a dar sinal na testa. “Olá, bom dia. Eu sou uma das filhas da dona. Tem tempo para lhe contar toda a história?”, questiona. “Sim, a minha manhã hoje é só para isso. Mas tem de ser desde o início para perceber tudo”, ouve enquanto sorri. “Vou começar eu então que consigo comunicar melhor em inglês, depois com um bocado de sorte a minha mãe vem aqui”, diz.

Souq Waqif é o principal mercado de Doha onde há de tudo um pouco (nesta fase, sobretudo turistas que vieram ver o Mundial)

Nadine Rupp

Shams Al-Qassabi ficou como o rosto da tentativa de abertura do Qatar ao mundo e às mulheres, ainda com o emir Hamad bin Khalifa Al Thani na liderança do país e um papel de relevo interpretado pela sua mulher, a sheika Moza bint Nasser Al-Missned. Em parte, a missão foi conseguida; noutras, está a caminho; e noutras ainda, tem falhado. Quem chega a Doha apenas para o Campeonato do Mundo poderá pensar que estamos numa esfera mais próxima da ocidentalização do que na verdade existe, também por todo um ecossistema que nos 28 dias de competição terá muito de artificial entre o meio caminho das regras locais e dos desejos internacionais (neste caso com a balança a pender mais para a “equipa” da casa, como se tem percebido nas tomadas de posição da FIFA). No entanto, a história desta mulher, na casa dos 60, vive por si só.

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Em função da reforma antecipada do marido por razões que guardou para si e só recentemente partilhou com os filhos, sem pormenores, viu as portas abrirem e percebeu que era uma janela de oportunidade. Hoje, é conhecida como a primeira mulher a abrir e liderar um negócio no Qatar. Pelo meio desse trajeto que a levou a esse patamar de reconhecimento além fronteiras, teve dilemas interiores complicados de solucionar, viu a família virar-lhe as costas e teve de superar o medo de um fantasma chamado estigma. Conseguiu. “Bom, então vamos começar. Ela tem quatro filhas e um filho. O filho é um piloto na Qatar Airways e também joga ténis e padel, o padel de forma profissional. Chama-se Mohammed Abdulla, tem um dos rankings mais elevados dentro dos que existem na modalidade. Fala espanhol, fala português, fala sete línguas… Mas não é por causa disso que está aqui sentado nessa mesa, eu sei. Vou contar-lhe a história de Shams Al-Qassabi”, diz Eman, enquanto chega à nossa frente uma bebida tradicional que mistura chá e leite.

A reforma antecipada do marido, a exposição da Família Moderna e aqueles 32.000 reais

“Este Souk era conhecido apenas por ser um local onde os homens tinham os seus negócios, eram homens que faziam as suas transações. Voltando um pouco aos tempos mais antigos, e isso era em todos os países, os homens costumavam fazer o trabalho mais duro e as mulheres ficavam a tomar conta das suas casas. Era assim connosco mas o meu pai reformou-se numa fase muito nova da sua vida. A minha mãe não era uma pessoa educada. Vem de famílias muito ricas mas muito conservadoras também, consideravam que a educação não era algo que fosse muito importante para a filha ou para as mulheres, só tinham de saber comportar-se e apenas isso. Não fez quaisquer estudos, não fez nenhum curso, não fez nada. Foi o meu pai que se formou numa faculdade dos EUA, mas acabou por reformar-se cedo. Sim, imagino que vá perguntar o porquê. Não sei, na altura nem sabíamos que ele se tinha reformado”, contextualiza.

“Para a minha mãe poder ser isso… Bem, estamos a falar do Qatar. O Qatar é uma comunidade pequena e todos conhecem todos, se se soubesse que estava reformado toda a gente ia começar a perguntar o porquê e a minha mãe guardou isso como segredo, nunca contou a ninguém, nem sequer à mãe dela. Quando Hamad bin Khalifa Al Thani [pai do atual emir do Qatar, Tamim bin Hamad Al Thani] se tornou emir, a meio dos anos 90 em 1995, tentou fazer uma viragem no país com a sua mulher, sua alteza sheika Moza [bint Nasser Al-Missned]. Começaram a encorajar as mulheres no trabalho no setor da indústria. Numa reunião que houve, na minha escola, foi anunciada a primeira exibição daquilo que chamavam de Família Moderna. Qual era a razão? Quando o Qatar se tentou modernizar e se tentou abrir a outros países e culturas, é normal que tivesse o receio de perder a sua identidade e cultura. Queriam manter isso”, explica.

Mais uma vez, a questão das tradições. Enquanto fala, o iPhone de Eman (entre o 12 ou o 14, não deu para ver bem porque saía do bolso e voltava) vai vibrando com as mensagens que vai recebendo. A abertura ao mundo do Qatar foi acontecendo de forma natural. Para os qataris, dinheiro não é problema. Nunca foi, nunca será. Nascer qatari é ter um carimbo que no limite permite não fazer nada até ao resto da vida (ou fazendo poder escolher o que se faz). Contudo, houve sempre uma vontade grande de preservar as raízes culturais que em muitas sociedades têm tendência a perder-se com o tempo. Shams Al-Qassabi aproveitou.

David Beckham foi uma das muitas celebridades que passaram pelo restaurante, tendo mesmo feito uma espécie de guia de visita para o Qatar com a filha Eman

“O grande objetivo era poder haver uma passagem às novas gerações os nossos costumes, do artesanato à tecelagem. Depois havia uma outra meta. O Qatar é um dos países que dá à sua população mais dinheiro, do governo. Eletricidade grátis, água grátis, educação grátis, tudo. Tudo para pessoas qataris, mas até mesmo para quem não é e vive cá, os preços são muito baixos. Todos os homens qataris recebem um pedaço de terra quando se casam de mil ou 2.000 metros quadrados. O nosso salário também é muito alto. Mas, mais uma vez, estamos a falar de sustentabilidade, não queremos depender apenas do governo. Foi por isso que eles foram tentando encorajar os negócios em vários setores. A minha mãe disse que sabia como fazer vestidos, pensou que poderia ser uma professora para quem quisesse aprender isso. Não estavam interessados, disseram que não tinha formação nisso, mas ao mesmo tempo explicaram que podia fazer parte da exibição. Então o que respondeu foi ‘Não consigo fazer vestidos em tão pouco tempo, mas sei fazer especiarias porque aprendi com a minha avó tudo isso’. Disseram que sim, que podia ser”, diz.

“Para se abrir um negócio é preciso ter estudos, é preciso conhecer, é preciso ter background. Sim, o meu avô estava também ligado aos negócios e era um dos mais influentes do Souk, mas esteve sempre em casa. Ainda assim, lembrou-se daquilo que ouvia das conversas do pai com a mãe e pensou que poderia começar do zero. Se dermos valor ao zero, também conseguimos dar valor ao 100. Estamos a viver numa casa que tem 4.500 metros quadrados, temos um pátio nas traseiras e há um limoeiro. Era pequeno mas dava muitos, muitos limões. A minha mãe começou a apanhar esses limões, começou a reaproveitar os jarros que tinha dos pickles e deu aquilo como parte do seu negócio. Precisava do capital, mas onde poderia ir buscar? O marido estava reformado, ela não queria arriscar tudo. Ia pedir à mãe, que não sabia sequer que ela estava a tentar abrir um negócio? Também não. Assim, falou com os vizinhos que adoravam a comida dela e estavam dispostos a ajudar e começou a vender jarros grandes a 20 reais qataris [cinco euros e 27 cêntimos, na conversão atual]”, resume sobre aquele que foi o início de uma aventura até hoje.

A conversa passa depois pelos pickles, também porque Eman consegue perceber a cara intrigada de quem tem dúvidas que “estes” pickles serão ou não iguais aos que existem em Portugal. Meia dúzia de explicações (sim, é mais ou menos o mesmo, com as suas nuances assentes nas especiarias), a promessa de que no final da conversa iremos à parte da loja para mostrar os vários frascos, o retomar do fio à meada.

“Com esses 20 reais [os 5 euros e picos], ela conseguiu juntar 500 reais para começar [132 euros], entrou nessa Exposição com isso e passados uns dias tinha convertido esse montante em 32.000 reais [8.440 euros]. Do zero, só com o que tinha em casa. Nós ainda éramos novos, ela nunca deixou de ser uma mãe perfeita para nós, quando nos deitava ia para a parte de trás da casa, onde montou uma cozinha no exterior para que o barulho não nos incomodasse, ia juntando todos os ingredientes para fazer experiências numa taça partida. Testava as suas receitas durante a noite. A partir daí, com a renovação deste Souk Waqif, ela ficou muito entusiasmada quando soube que uma parte iria ter mulheres a partir desse momento. Começou a ligar às pessoas, era um projeto novo. Quando entrou em contacto com os responsáveis do Souk, disse que era aquela mulher das especiarias e eles ‘Onde é que andou? Nós andámos à sua procura!’. Ou seja, o passar da palavra estava mesmo a funcionar”, conta sempre essa forma de juntar o que ainda lhe faltava para abrir o negócio.

"A minha mãe começou a vender jarros grandes a 20 reais qataris [cinco euros e 27 cêntimos, na conversão atual]. Com esses 20 reais, ela conseguiu juntar 500 reais para começar [132 euros], entrou nessa Exposição com isso e passados uns dias tinha convertido esse montante em 32.000 reais [8.440 euros]. Do zero, só com o que tinha em casa."

“Antes ela tinha conseguido os tais 32.000 reais e tinha também renovado aquilo que era um quarto para o motorista da família, para fazer daquilo um pequeno mercado, um ponto de venda. Estava sempre cheio de pessoas, que vinham de todos os lados. Até da Arábia Saudita, dos EAU [Emirados Árabes Unidos]… Tudo a passar a palavra, naquele tempo não havia nada de redes sociais. Foi por volta de 2000, foi há muito tempo… Em 2004, quando ela decidiu que queria avançar para o Souk, ofereceram-lhe um espaço onde está hoje a zona dos animais do Souk. Quando lá foi, olhou para o lado e viu um tio; depois olhou para o outro e estavam primos. Muita família. Foi difícil. Disse que ia pensar, mas nunca mais voltou, naquele espaço não queria. No entanto, as pessoas do Souk continuaram a insistir e foi mesmo, de graça. Queria testar. Estava com muito medo, ir para um sítio só com homens e família. Agora consegue ver-se por exemplo indianos também, antes eram só qataris. Foi complicado, não sabia o que iam achar daquilo…”, refere sobre o início do trajeto.

Os dilemas internos entre a revolta da família e um segredo que não podia revelar

“Sempre que alguém passava, por receio de tudo aquilo tentava de forma disfarçada tapar a cara, até que houve um dia que alguém estava tirar fotografias, ela começou a ouvir o clique, clique, clique. ‘Por favor, não faça isso’, pediu. Era um fotógrafo famoso, que tem nacionalidade francesa e libanesa. ‘Não, não tem problema, isto é para o emir’. No dia seguinte, estava nas notícias: ‘A primeira mulher empresária a entrar no Souq Waqif’ com a imagem dela. E essa imagem passou para outros países, de Paris a Nova Iorque, a falar de uma nova era que o país queria abrir com o emir Hamad. A luta a sério tinha começado.

– A família dela passou a saber. A mãe passou a saber e literalmente toda a gente deixou de falar com ela. A mãe, os irmãos…
– Porquê?
– Porque a mãe dizia ‘És filha daquela pessoa, ele sacrificou a vida dele por ti, ele deixou-te uma fortuna’. A minha mãe tinha nove irmãos e o meu avô deixou terras, casas. ‘Não precisas de dinheiro’, dizia a minha avó. Ao menos se quisesses esse desafio que fosse na parte do imobiliário, não especiarias e pickles…
– Mas também era um negócio…
– Sim, um negócio mas de baixo nível. Diziam ‘Estás a morrer por dinheiro? Precisas?’. Por exemplo, eu e o meu irmão andávamos numa escola particular e passámos para a pública, do governo. Tudo para cortar custos, sendo que nunca nos explicou o porquê dessa mudança e para nós era apenas mais uma escola, diferente. Ela foi a mulher perfeita, manteve o segredo…
– Mas a família podia dizer isso sobre ela…
– Aqui não, a mentalidade aqui é diferente. Não há famílias pobres em Doha, nunca vão encontrar… E agora vá, beba o chá enquanto estamos a falar, esteja à vontade…

“Até a classe média tem salários muito acima do normal aqui no Qatar. De facto, não havia à partida a necessidade de ter aquele negócio. Normalmente têm uma fortuna tão grande que vem dos seus bisavós que não precisam, até pelo salário alto. E se alguém quiser experimentar um negócio, são mais os homens, não as mulheres. É o problema. Ela escolheu vender especiarias e pickles. Mas voltando à questão, ela não tinha nenhum tipo de formação para isto, ela só sabia fazer aquilo e era a única coisa que podia fazer para ajudar o marido. Toda a família próxima deixou de falar com ela. Depois era sempre aquela coisa de às sexta-feiras perguntarem ‘Então, onde está a tua mãe?’ e ela a trabalhar, a preparar coisas. Eles nunca perceberam que o grande motivo para tudo aquilo era também o facto de o meu pai se ter reformado, nem podiam saber. Ele antes trabalhava na Qatar Petroleum, na direção. O meu marido também é engenheiro e trabalha lá agora. Mas mesmo com a reforma recebemos, mas era muita coisa…”, explica Eman.

Aposta no restaurante ao lado da loja de especiarias não começou da melhor forma, mas hoje é um dos maiores sucessos no Souq Waqif

“Com o passar dos tempos, foi como se cada vez gostassem mais do que fazia, as combinações que conseguia encontrar nas especiarias, mas ao mesmo tempo cada vez tivessem menos respeito por ela. Ela arrancou o negócio dela mas começou a ouvir comentários maus, para ela e para todos nós, do género ‘Agora as mulheres já andam no Souk, qual vai ser a próxima?’. E só estou a dizer o mínimo… A minha mãe também nunca disse nada ao meu pai porque se o fizesse sabia que ele iria dizer para ficar em casa e parar, ao mesmo tempo não podia partilhar também connosco porque ainda éramos pequenos. Ela estava quase numa guerra contra ela própria. Razão para a reforma? Não, o que falaram no quarto, ficou no quarto. Nunca soubemos até há uns anos, quando ela nos disse por alto, e não perguntámos pormenores”, conta.

Era quase como uma luta em várias frente de uma só pessoa. Tinha de tratar dos filhos, tinha também de ir acompanhando o marido reformado, tinha de gerir o melhor possível o seu negócio, tinha de continuar a procurar e encontrar misturas que fizessem das suas especiarias únicas, tinha de olhar para as contas até sabendo que se quisesse nunca teria olhado sequer uma vez na vida para as contas. Tudo isso também foi deixando marcas em Shams, que tiveram de ir sendo resolvidas para que pudesse seguir em frente.

“Nessa altura foi complicado para ela, estava numa guerra interna grande. Teve também nessa fase a perceção de que se não conseguisse dar a volta iria ser algo que a poderia consumir de uma forma má. Foi aí que se começou a capacitar do que era a realidade: ‘Eu não estou a fazer nada de errado, estou vestida como todas as mulheres, a ajudar a minha família, a vender as minhas especiarias. Estou cansada que digam que sou uma mulher sem formação que deveria ser apenas uma espécie de rainha lá de casa, a tomar conta de tudo e a educar os filhos. Valho mais do que isso. Sei que não tenho formação mas consigo fazer isto, sei produzir coisas com as minhas mãos. Não tenho de ter medo’. Focou-se naquilo que tinha de fazer, sem ter qualquer ambição de ser famosa. Gostava daquilo, de ver como as pessoas gostavam da comida dela, mesmo sabendo que tinham perdido o respeito por ela e por nós, enquanto família, o nosso núcleo”, frisa.

"Foi como se cada vez gostassem mais do que fazia, as combinações que conseguia encontrar nas especiarias, mas ao mesmo tempo cada vez tivessem menos respeito por ela. Ela arrancou o negócio dela mas começou a ouvir comentários maus, para ela e para todos nós, do género 'Agora as mulheres já andam no Souk, qual vai ser a próxima?'. E só estou a dizer o mínimo...

“Ela acabou por tornar-se quase como uma peça de xadrez no Souk Wakif, porque sempre que a moviam de um lado para o outro as pessoas iam atrás. Por isso, quando houve a nova extensão do mercado depois da renovação, colocaram-na lá e continuou a ficar cheio. Em 2014, depois de terem destruído uma parte que havia aqui, deram-lhe esta loja e mais uma vez houve uma multidão a vir para cá. Com isso, juntaram ainda mais uma zona com seis cadeiras onde os maridos ficavam à espera e podiam beber um capuccino ou um latte enquanto as mulheres iam lá dentro da loja comprar as coisas. Ela aceitou a parte das cadeiras, não o resto, porque nem o capuccino nem o latte são qataris. Da parte do Souk disseram só que era como ela quisesse, que deixavam as seis cadeiras e continuou sem pagar a renda, era oferecido”, conta.

Sheika Moza, várias celebridades e as seis cadeiras que passaram a 300 (e são poucas)

Não, o sucesso no passo seguinte não foi instantâneo. Mas nem por isso duvidou ou pensou desistir, pelo contrário – onde muitos podiam ver uma crise, ela descobriu uma oportunidade. “Era um novo desafio para ela, que além da loja podia ter um restaurante. E estava muito entusiasmada mas também não sabia nada sobre como se faz isso, não se formou para isso, era negócio. Quando chegou a altura da abertura, não havia sequer um pássaro, nada. Primeiro dia, primeira semana, nada de nada. Durante uns dois ou três meses, ninguém quis saber, ninguém. Iam à loja como antes, mas ninguém queria saber do restaurante. Sou sincera, se estivesse na posição dela pensava que o melhor era ficar naquilo que sou boa a fazer mas ela não, pensou ao contrário. Pensou que se ninguém ia ela tinha mais margem para fazer experiências”, recorda.

“A partir do momento em que a sheika Moza foi lá, as pessoas começaram a aparecer. Foi há seis anos. A partir daí a realidade começou a ser pessoas sentadas a comer e tantas ou mais de pé à espera que acabassem a sua refeição para se sentarem. A nova geração como a minha estava entusiasmada com isto, tinha aberto uma coisa nova na cidade e era da minha mãe e fizeram mais, começaram também a ajudar a levantar os pratos quando alguém acabava de comer. A geração da minha mãe não, parecia que vinha basicamente para julgar. Como era ela e o motorista apenas no início, as pessoas ajudavam a remover os pratos, ela não conseguia estar na cozinha a dar conta de tudo. De seis cadeiras, passou para 300, dentro e fora do restaurante. Havia filas e filas de espera, em dezembro sobretudo está completamente cheio, quiseram vir cá uma série de celebridades e VIP, além de famílias reais. Foi assim que se tornou um marco”, reconhece, antes de abordar também a importância da sheika Moza para esse impulso final para mais sucesso.

"A maior importância da sheika Moza foi a abertura das portas ao mundo, dizia sempre que eles que só abriram a porta mas que foi a minha mãe que deu o passo, que eles só dão as oportunidades e depois as pessoas ou aproveitam ou não aproveitam."

“As mulheres também começaram a vir, não só pela comida mas quase numa celebração por ter sido uma mulher a conseguir aquilo sozinha. Ela pagou o preço disso? Sim. Mas conseguiu fazer tudo isto apenas a passar a palavra e com uma paixão sem igual. Toda a gente se sente confortável aqui, é como se tivesse comida de casa. Todos os que vêm cá chamam-na de mãe e se há algum dia em que não está cá começam logo muito preocupados a perguntar se está bem. O emir Hamad, David Beckham, Kaká, Gisele Bundchen, todos passaram por cá para lhe fazerem uma visita e foi importante. A passagem por aqui de sua alteza sheika Moza também teve o seu peso. Todos os palácios do Qatar compram frascos de especiarias da minha mãe, os ministros, todos. Foi mais uma forma de lhe dar os parabéns pelo passe seguinte de sucesso que conseguiu dar e adorava a comida dela. A maior importância da sheika Moza foi a abertura das portas ao mundo, dizia sempre que eles que só abriram a porta mas que foi a minha mãe que deu o passo, que eles só dão as oportunidades e depois as pessoas ou aproveitam ou não aproveitam”, diz com visível orgulho.

“Muitas pessoas tiveram essa porta aberta mas não quiseram depois dar o passo em frente. Foi um desafio para ela”, prossegue Eman, numa altura em que a mãe surge cá fora e começa a falar com alguns dos clientes que estão na esplanada como se os conhecesse há muitos anos (que não é o caso). “Ela chegou a ter um restaurante no Park Hyatt com um chef francês com estrelas Michelin, Jean François Rouquette. Mas foi durante a pandemia, foi um problema porque ela estava a tentar formar o pessoal e como era num hotel estavam nessa fase a cortar empregados porque estava tudo fechado, então acabou por estar a fazer a maior parte do trabalho. Os gestores do Souk não gostaram, quando souberam que estava num outro ponto foram perguntar quem tinha dado autorização. Disseram-lhe ‘Não pode ser, tu pertences aqui'”, comenta enquanto Shams Al-Qassabi prepara para fazer a última paragem antes de voltar à cozinha na nossa mesa.

– Nice to meet you.
– Ainda não falas árabe? Então porquê? É tão fácil, é porque o meu inglês não é bom…
São só mais dois meses e já falo em árabe à vontade, agora é que não percebo nada…
– E depois também vou a Portugal aprender… Como é que se diz, obrigado?
– Obrigada, neste caso. Obrigado me, Obrigada you.oa. Está tudo bem?
Tudo bem sim, obrigado
– E comer, então? Vou já buscar!
Acabei agora mesmo de tomar o pequeno-almoço…
– Não, não pode ser… Grande corpo, precisa de comer para trabalhar…
Mas já prometi que venho cá outro dia, só para tomar o pequeno-almoço.
– Amanhã?
Amanhã provavelmente não mas no final da semana talvez…

“Ele é do país do Ronaldo mãe”, diz a entretanto a filha.

– Ai, o Ronaldo… Onde está o Ronaldo?
Agora a esta hora está a treinar.
– Tem de vir cá, o David Beckham já cá veio e gostou… Esse inglês, é o número 1. Thank you, obrigada.
Obrigado pela atenção.

Shams Al-Qassabi junto das muitas imagens com celebridades na parte interior do restaurante, entre as quais Beckham, Kaká e Gisele Bundchen

“Tem havido várias surpresas, vários dias em que estamos aqui e nos entram as surpresas. A família real é a maior delas todas. Quando o antigo emir Hamad vem, nunca avisam um ou dois dias antes, avisam só pouco antes, dois minutos antes avisam que estão a chegar. Mas a maior surpresa de todas foi conhecê-lo quando ainda era emir num evento especial, no Dia Nacional do Qatar, a 18 de dezembro em 2016. Por norma temos uma grande parada nesse dia, toda a gente sai à rua, há muitos shows, é lindo. Começa de manhã e vai até às 23h. Em 2016 o evento foi cancelado porque, por causa da guerra da Síria, fizeram aqui uma recolha de donativos em vez de toda a festa para ajudar as pessoas que lá estavam. Nesse dia chegou às 7h da manhã, estava a abrir tudo e alguém bate à porta. ‘Está aberta? O emir está ali’. Para ele, sendo emir, vir aqui no Dia Nacional com os netos foi uma honra, deixou-a a tremer. Há quase como um protocolo na fotografia que tiraram, é uma honra. Um poucos antes da Covid também veio cá com os 25 netos. Estava cheia a esplanada, de uma ponta à outra. Estava cheio mas as pessoas começaram a agarrar na comida e a abrir espaço porque em dois minutos ele estava cá. Foi lindo, as pessoas adoram”, vai contando.

E no meio de todo este cenário, sendo alguém que já motivou trabalhos dos mais variados países sobre os mais diversos ângulos, como é que olham para as críticas que têm vindo a ser feitas ao Qatar no âmbito deste Mundial?  “Tenho de ser um bocado política a falar sobre a questão da crítica e dos direitos humanos, não devo ser eu a fazer comentários sobre isso mas é da natureza humana, toda a gente tem de dizer, de comentar, como uma espécie de propaganda. É um bocado como um país contra um país, um vizinho contra um vizinho. Mas o nosso trabalho aqui é mostrar às pessoas a nossa realidade, a verdade sobre o Qatar e a sua hospitalidade. Nós não somos nada do que vejo escrito nos meios de imprensa. O nosso papel é dar as boas vindas aos nossos convidados e visitantes. Durante estes 28 dias, esta vai ser a segunda casa deles e é apenas isso que temos de fazer. Têm vindo cá vários meios, a BBC já fez quatro documentários com ela, um para os EUA e outro para o Japão… Eles conhecem a realidade… O que posso dizer mais?”, conclui.

Depois da conversa, a visita guiada. Primeiro à loja, onde mostra todos os frascos de pickles que tem (e são muitos, grandes, talvez com menos couve-flor e aquele toque de especiarias como as maiores diferenças para os que conhecemos) antes de passar para as especiarias. E falamos de temperos para bifes, para massas, para saladas, no fundo para tudo aquilo que quem está a conhecer diz gostar de cozinhar dando em troca um prato tipicamente português chamado bacalhau à brás como sugestão para as novas experiências na cozinha e ficando a saber que as misturas de especiarias que são feitas no Qatar têm por norma 22 a 27 ingredientes diferentes. Na parte do restaurante, aí, tudo cheio. E muitas imagens com famosos, incluindo várias figuras do desporto como Beckham, mais jogadores ingleses ou Kaká. Com mais um pedido, naquele que foi o último contacto com Shams Al-Qassabi: “Agora só falta ali o Ronaldo para pôr ao lado do David Beckham, o número 1″.

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