Se olharmos para o mapa de Lisboa enquanto tabuleiro do xadrez da estrutura governativa, notamos que existem peças dispersas por toda a cidade, evidenciando ausência de estratégia territorial. Este padrão de ocupação é evidente, embora não seja motivo de análise no debate público. E deveria sê-lo, pois gera três problemas: custos excessivos, falta de eficiência e dificuldades de colaboração entre equipas. Numa frase: num contexto como o actual, que requer cada vez maior articulação política e coordenação interministerial, faz cada vez menos sentido ter cada governante isolado no seu palácio.
Nos últimos anos, foram muitas as discussões à volta da reforma da administração pública, das chamadas “gorduras” do Estado e das necessidades de conter despesa nos serviços do Estado. De uma forma ou de outra, todos os governos evidenciam preocupação com a racionalização dos meios da administração pública. Para tal, têm-se mostrado dispostos a fundir serviços e freguesias, a fechar escolas e centros de saúde (concentrando-os num pólo algures). Mas, simultaneamente, têm sido absolutamente incapazes de olhar para dentro e de ver as suas próprias ineficiências e desperdícios. Esse exercício deve também ser feito.
O XXI Governo chega ao fim da legislatura com 18 ministérios dispersos por 17 edifícios em Lisboa, onde se encontram os gabinetes de Ministros, Secretários de Estado e suas equipas. Estamos a falar apenas do nível governativo e de alguns serviços directos de apoio (secretarias gerais e gabinetes de planeamento que, por vezes, têm edifícios próprios), não estando consideradas direcções gerais, institutos públicos e outros organismos na esfera de cada ministério. Do ponto de vista da dimensão da estrutura, o XXI Governo não destoa – ao longo dos anos, os governos mudam e introduzem alterações ministeriais, mas o número de ministérios mantém-se relativamente estável.
Da Praça do Comércio a Algés, do Bairro Alto às Avenidas Novas, por entre antigos palácios ou prédios mais contemporâneos, por todo o lado há sedes de membros do governo. Do ponto de vista simbólico, é evidente que este retrato da geografia governativa é coerente com o panorama do ordenamento do território em Portugal: falta de planeamento, dispersão urbana, pouca visão integrada, tendência de deslocação do centro para a periferia, concentração junto ao litoral, desperdício de recursos e custos energéticos e ambientais elevados. Falta perceber o resto: os custos político e orçamental desta ineficiência. Os números que neste ensaio são apresentados ajudam a responder a essa interrogação e expõem a dimensão da “gordura” governativa.
Que custos representam os edifícios ministeriais?
Fazendo as contas a partir do Orçamento de Estado 2019, verificamos que o funcionamento corrente dos edifícios ministeriais custa aproximadamente 22,5 milhões de euros por ano (considerando diversos tipos de despesas).
Como se constata na figura 2, esse valor inclui a locação dos edifícios, encargos com instalações, telecomunicações, limpeza e higiene, e segurança – despesas que são transversais a todos os edifícios. Existem ainda custos que não estão aqui integrados nestas contas. Por exemplo, a própria antiguidade de vários edifícios (históricos) que recebem ministérios gera problemas constantes em termos de manutenção, modernização, segurança e funcionalidade. Por outro lado, há ainda os riscos ignorados de algumas localizações, por exemplo face a sismos. Veja-se este caso evidente: ter importantes Ministérios como Finanças ou Administração Interna à beira do rio Tejo, numa cidade com o histórico de Lisboa, pode representar um risco desnecessário – é certo que a vista é bonita e que há muitos restaurantes agradáveis ao lado, mas se calhar… mais valia prevenir do que remediar.
A dispersão territorial dos ministérios tem ainda vários custos ligados às necessidades de mobilidade dos governantes. Por exemplo, cada ministério é obrigado a ter vários carros e motoristas próprios (147 alocados “apenas” aos gabinetes governativos), permanentemente disponíveis, por vezes com segurança a acompanhar o ministro, fazendo continuamente quilómetros em “circuito governativo”. As despesas em combustíveis e lubrificantes rondam 1,5 milhão de euros por ano, fora as despesas em aquisição, manutenção ou reparação em caso de avaria. Além do mais, existem custos relacionais: a dispersão geográfica é uma barreira a uma interacção mais fluída e colaborativa entre equipas governativas. A qualidade do relacionamento pessoal influencia muitos processos e agiliza procedimentos e decisões, podendo ajudar a minimizar conflitos e problemas.
Estruturas governativas sobredimensionadas e um iceberg
Em 2019, no final da sua vigência, o XXI Governo é constituído por 18 ministros (incluindo primeiro-ministro) e 44 secretários de Estado, estando formadas 62 equipas governativas com assessores, secretárias, motoristas… perfazendo 1159 pessoas em funções e um custo anual de quase 64 milhões de euros. Apesar de o governo ter “engordado” um pouco desde o início desta legislatura, estes valores não se afastam muito da média dos últimos 10 anos de governação, pelo que podem ser considerados de natureza estrutural.
Este retrato do funcionamento governativo só fica completo se se considerar também o papel e a dimensão das secretarias gerais dos ministérios e dos gabinetes de planeamento. Esta é normalmente a dimensão que fica esquecida e fora dos holofotes mediáticos, tendo um peso muito elevado e onde estão mais visíveis os problemas ligados com a dispersão ministerial.
As secretarias gerais (SG) têm como missão assegurar o apoio técnico e administrativo aos gabinetes governativos, nos domínios da gestão de recursos internos, do apoio técnico e jurídico, da contabilidade, da documentação e arquivo, da comunicação e relações públicas, da gestão patrimonial e do funcionamento informático. Cada ministério, ao funcionar isoladamente no seu “palácio”, tem necessidades administrativas que são supridas pela sua secretaria geral, que está organizada em divisões. Há ainda a salientar outros organismos com funções relevantes ao nível do apoio governativo, nomeadamente cinco gabinetes de planeamento (GP) e dois centros especializados (CE, em suporte jurídico e informático, JURISAPP e CEGER).
Em 2019, estes 18 organismos (11 SG, 5 GP e 2 CE) funcionam com 2474 funcionários e com orçamento de quase 400 milhões de euros, um valor próximo da média dos últimos 10 anos. Na maior parte dos casos, estão localizados nos edifícios ministeriais onde se encontram os gabinetes dos membros do governo, por vezes em edifícios adjacentes – mas também há os casos de 6 destes organismos que ocupam o seu próprio edifício, numa zona diferente da cidade de Lisboa.
Os gabinetes de ministros e secretários de Estado podem ser vistos como um primeiro nível de governação mais estratégico, enquanto as SG e os GP estão a um segundo nível de governação, mais operacional e administrativo. Que considerações se podem fazer em relação a esta organização funcional dos governos, incluindo serviços de apoio?
Em primeiro lugar, é evidente a complexidade administrativa e a duplicação de serviços e procedimentos (as secretarias gerais replicam as estruturas umas das outras), gerando um somatório elevado de despesas, havendo pouca racionalização e partilha de recursos – em parte devido ao afastamento geográfico entre ministérios. No entanto, também existem grandes assimetrias de funcionamento e falta de uniformidade entre estruturas orgânicas (as SG têm configurações que variam demasiado de ministério para ministério e que por vezes têm responsabilidades e dotações orçamentais que deveriam estar noutro nível da administração). Ao longo do tempo, remodelações e mudanças organizativas pouco coerentes e consistentes foram gerando uma espécie de “babel” administrativa. E, no fim de tudo, é evidente a falta de foco no que é o apoio governativo, existindo demasiada dispersão de actividades. A “máquina” parece viver para se governar a si própria.
Podemos, portanto, dizer que o governo é como um iceberg. Aquilo que está à vista é apenas a ponta, ou seja, ministros e secretários de Estado. Debaixo de água, fora da vista, está a parte maior do gelo, neste caso a estrutura de apoio que inclui secretarias gerais e gabinetes de planeamento, com os seus custos e competências (fora dos holofotes mediáticos). Assim, se somarmos tudo, constatamos que o funcionamento governativo assenta em quase 3600 recursos humanos, localizados em 23 edifícios dispersos por toda a cidade de Lisboa e que tem um orçamento de 460 milhões de euros para 2019. Este diagnóstico é estrutural e transversal a várias legislaturas.
Independentemente dos custos, se nada for feito no sentido da modernização governativa, os ministérios arriscam-se a tornar-se fósseis institucionais, sem as capacidades necessárias para se adaptarem e liderarem adequadamente o país num mundo em acelerada mudança.
Um caso internacional: a organização do governo na Suécia
Existem diferentes formas de organizar um governo e, em vários países europeus, existem modelos que evitam a dispersão geográfica e a duplicação de serviços. E tal como acontece em muitas outras áreas da sociedade portuguesa, nas quais se olha para os países nórdicos como referência ou até como fonte de inspiração, aqui pode-se fazer o mesmo. Olhemos para o caso da Suécia cujo governo, em 2019, se apresenta constituído por 23 ministros e 31 secretários de Estado, com um total de 54 equipas governativas (62 em Portugal).
Na estrutura de apoio ao funcionamento do governo sueco, o Gabinete para os Assuntos Administrativos (Office for Administrative Affairs) é responsável pelo apoio logístico e administrativo aos vários ministérios, dispondo de cerca de 4600 funcionários. Este gabinete tem um papel semelhante ao das (11) secretariais gerais em Portugal e junta várias funções administrativas. Apesar de ser apenas uma estrutura orgânica que concentra estas funções, dispõe de um quadro de pessoal de maior dimensão do que o de Portugal. Nesta estrutura estão também integrados técnicos especialistas em diversas temáticas sectoriais e que colaboram nos gabinetes ministeriais, estando maioritariamente fora da lógica das nomeações políticas – ou seja, a assessoria técnica é especializada em cada tema e está liberta das nomeações políticas. Na verdade, existem apenas cerca de 200 nomeações políticas no total, o que é um número bastante inferior ao do governo português (cerca de 1100 nomeações).
Quanto à localização geográfica, também não existe a dispersão que se verifica em Portugal. Os Ministérios estão no centro de Estocolmo, no mesmo quarteirão, a pouca distância uns dos outros, sendo fácil o contacto e a interacção entre as equipas ministeriais. Esta proximidade facilita o trabalho e permite uma melhor colaboração ao nível técnico e político, poupando-se tempo em deslocações. Em matéria de transparência, o Governo da Suécia publica anualmente um relatório das actividades governativas (Swedish Government Offices Yearbook), no qual explica e detalha o seu funcionamento, apresentando as contas operacionais da governação.
Três propostas para a reforma governativa
Numa altura em que todos os sectores da sociedade fazem esforços de modernização e de inovação, só os governos parecem parados no tempo, funcionando estruturalmente de forma anacrónica. A reforma do funcionamento governativo em Portugal deveria ser uma prioridade política, existindo diversas razões que justificam a sua necessidade.
Numa perspectiva operacional, e face ao âmbito temático deste ensaio, sugerem-se três propostas para a reforma governativa:
Proposta n.º 1: concentrar os Ministérios numa mesma área de Lisboa para aumentar a eficiência.
A criação de uma espécie de “campus do Governo” poderia ser o ponto de partida para uma reinvenção do governo, pois traria um conjunto de oportunidades para uma transformação mais profunda. Permitiria, por exemplo, fundir e reduzir a dimensão das estruturas orgânicas de apoio e respectivos quadros de pessoal. E poderiam ser implementadas medidas de reorganização de processos, maior informatização, automatização e eficiência no uso de recursos (energia, água, viaturas, consumíveis). Face ao cenário actual de 23 edifícios afectos a funções governativas, em áreas nobres e com cariz histórico (por exemplo na Praça do Comércio), com potencial para acolherem outras actividades, seria possível realizar esta operação global com poupanças e relações favoráveis de custo-benefício.
Olhemos para dois casos de reorganização administrativa com contornos semelhantes. O Campus de Justiça de Lisboa foi inaugurado em 2008, no Parque das Nações, e concentrou cerca de 2400 magistrados e funcionários da Justiça, alojando 21 tribunais e serviços que anteriormente estavam dispersos pela cidade. O Hospital de Lisboa Oriental, cuja nova construção pretende substituir seis hospitais antigos – São José, Capuchos, Santa Marta, Curry Cabral, Estefânia e Maternidade Alfredo da Costa – estima-se que possa poupar 48 milhões de euros por ano. Ou seja, bastaria que o governo defendesse para si próprio aquilo que defende para os mais diversos sectores da administração pública.
Proposta n.º 2: fundir e reestruturar os organismos de apoio ao funcionamento governativo.
Face a um cenário de maior proximidade ministerial, com as equipas e os serviços a funcionar numa mesma área geográfica, poderia equacionar-se a redução da administração afecta ao funcionamento governativo, o que poderia passar por:
- Fundir todas as (11) secretarias gerais numa única estrutura administrativa focada sobre os aspectos operacionais e logísticos ligados ao apoio governativo.
- Fundir os (5) gabinetes de planeamento numa única estrutura focada no apoio estratégico à governação, de carácter transversal e interdisciplinar, integrando também as funções que já desempenham em matéria de relações internacionais.
- Centralizar no centro jurídico (JURISAPP) as competências e os quadros técnicos desta área e que estão dispersos pelas várias Secretarias Gerais dos ministérios.
- Centralizar no Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER) as competências e os quadros técnicos nesta área que estão dispersos pelas várias secretarias gerais dos ministérios.
Numa lógica exploratória, se considerarmos uma redução de 25% nas várias rubricas face à actualidade, o pessoal afecto às funções de apoio governativo poderia reduzir-se em cerca de 600 efectivos e os custos serem reduzidos em cerca de 100 milhões de euros por ano.
Proposta n.º 3: reduzir a dimensão dos gabinetes governativos e reformar as suas funções.
Neste domínio mais próximo de Ministros e Secretários de Estado haveria que centrar a composição dos gabinetes na vertente política e articular com as Secretarias Gerais as funções ligadas com secretariado, motoristas e apoio administrativo. Não faz sentido que, em aproximadamente 1100 nomeações para gabinetes de membros do governo, cerca de metade seja para funções logísticas. Esta proposta implica restringir as nomeações e centrar a composição ao nível das funções políticas, integrando apenas (ao nível orgânico) o membro do governo, o chefe de gabinete, os adjuntos e os técnicos especialistas. As Secretarias Gerais disponibilizariam nos seus quadros os recursos humanos para as funções mais administrativas. Esta abordagem representaria uma redução potencial de até 50% na dimensão e nos encargos com os gabinetes governativos. Numa lógica complementar, e no que diz respeito a medidas para reformar o recrutamento governativo, já anteriormente ficaram apresentadas 10 medidas nesse sentido num outro artigo.
Agora é fazer as contas. É certo que esta abordagem é relativamente simplista e não tem em consideração todos os aspectos administrativos, legais e orçamentais exigidos num caso de cenarização rigorosa. E, claro, os valores apresentados (figura 8) apenas incidem sobre os grandes números que no seu conjunto englobam recursos humanos, despesas de funcionamento e por vezes despesas de investimento muito variáveis, pois as Secretarias Gerais são demasiado heterogéneas entre si para poder haver um “haircut” como aqui é sugerido, de 25% ao nível administrativo e de 50% ao nível dos gabinetes. No entanto, sem excessivo optimismo, os valores indicativos mostram que poderia haver uma redução aproximada de um terço no número de recursos humanos afectos a funções de apoio governativo, gerando uma poupança aproximada de 130 milhões de euros por ano. E mais do que as poupanças alcançadas, o importante seria a modernização implementada na máquina que suporta o funcionamento governativo, essa sim uma verdadeira geringonça dispersa por 23 edifícios de Lisboa.
Conclusão
A concentração dos ministérios numa única localização, com capacidade para acolher o funcionamento governativo reduzido a esta escala, permitiria dispensar perto de 20 edifícios que estão por toda a cidade e que seriam mais valorizados para outros fins, gerando receitas para financiar um novo pólo governativo. A relocalização e o planeamento de raiz desta infra-estrutura alcançariam ganhos de eficiência, especialmente ao nível dos processos governativos, que poderiam ser repensados, optimizados e modernizados. Existiria uma maior partilha de recursos humanos, bem como um conjunto de poupanças e de economias de escala. Só o facto de as equipas ministeriais estarem próximas umas das outras melhoraria as sinergias e os processos legislativos. Os cidadãos ficariam melhor servidos por uma “máquina” moderna, eficiente e transparente, independentemente dos seus “operadores” políticos.
De fora deste ensaio ficou ainda a reflexão sobre os desafios da coordenação política e governativa, incluindo aspectos de articulação inter-ministerial. Esta dimensão é ainda mais critica do que a abordada nas secções anteriores sobre aspectos operacionais e funcionais. A reforma sobre a forma de governar, numa lógica mais estratégica e prospectiva, face aos desafios do futuro, é merecedora de uma reflexão própria, que ultrapassa o âmbito deste ensaio.
A administração do Estado padece de muitos dos problemas identificados na esfera governativa: duplicação de estruturas, desperdício de recursos, complexidade excessiva, opacidade, custos elevados e desempenho inferior às necessidades e expectativas dos cidadãos. Infelizmente os governos parecem mais interessados em mudar tudo à sua volta, e em reformar os mais diversos organismos da administração pública, do que em olharem para dentro e em se reformarem enquanto instituição de poder. Na verdade, a reforma do Estado devia começar pela reforma do governo.