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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Resistência e destruição em Mikolaiv, na linha da frente contra os russos. “Isto foi o nosso 11 de Setembro”

Sem paz, sem segurança, sem água e sem certezas de que os russos aqui ao lado não ocupem a cidade — que vão vigiando com drones e destruindo com bombas de fragmentação. O Observador em Mikolaiv.

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A cidade de Mikolaiv está como o palácio do governo regional, uma das imagens mais marcantes da destruição provocada pelos russos na Ucrânia. O edifício de nove andares continua de pé, mas falta-lhe um retângulo vertical no meio, entre o terceiro e o sétimo andar, depois de ter sido atravessado por um míssil às 8h30 da manhã de 29 de março. Corresponde sensivelmente à proporção de residentes que fugiu da cidade: dos 520 mil habitantes, sobram agora, depois da guerra, 300 mil, ou seja, desapareceram mais de 40%.

Vários pedaços do edifício estão periclitantes e aparentam poder cair a qualquer momento, como algumas janelas e cabos suspensos a partir do que resta do 8.º andar para o retângulo vazio até ao terceiro. Também muitos dos ucranianos que ficaram em Mikolaiv estão hesitantes: a cada noite de bombardeamentos são obrigados a confrontar-se com os riscos da decisão de resistir na cidade — e a ponderar o que seriam as alternativas.

Praticamente não há vidros nas janelas do palácio do governo regional, estão todos estilhaçados pelo chão, à imagem do que acontece em prédios espalhados um pouco por toda a cidade.

Também não há, obviamente, água no edifício, numa cidade que viveu sem água nas torneiras durante um mês, depois de a rede de abastecimento ter sido atingida pelo inimigo a 12 de abril.

E mesmo aquele imponente retângulo de céu que atravessa as entranhas do que era a administração regional pode ser uma fonte de ansiedade: é a olhar para o céu que muitos residentes se confrontam com a presença de drones — e se inquietam com a probabilidade de os russos estarem a escolher os alvos dos bombardeamentos das horas e dias seguintes.

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O edifício do palácio regional de Mikolaiv foi destruído na manhã de 29 de março, às 8h30. Morreram 36 pessoas

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“Só se pode amar a Rússia quando não se é bombardeado por ela todas as noites”

O míssil que furou o edifício da administração regional acertou em cheio no quarto andar, na zona onde antes funcionava o gabinete do governador, Vitaly Kim. “Isto foi como o nosso 11 de setembro”, compara Dmitro Victorovich, o assessor de imprensa, de uniforme militar e armado, enquanto guia o Observador pelas ruínas do edifício.

Logo junto ao que era a entrada, aponta para a esquerda, para uma parte do piso que abateu e se transformou num fosso de entulho. “Um segurança sobreviveu porque, no momento exato da explosão, saiu daquela zona e veio aqui buscar um café… Demorámos uma semana a remover os escombros à procura de sobreviventes.”

Morreram 36 pessoas e quatro dezenas ficaram feridas neste ataque — ao todo, os bombardeamentos em Mikolaiv já terão roubado a vida a mais de 950 pessoas. Antes da guerra, trabalhavam neste edifício 700 funcionários, mas, a partir de 24 de fevereiro, data do início da invasão, esse número baixou para 200.

Sopram em permanência correntes de ar pelo palácio desfeito. Entre os estilhaços de vidros no chão, ainda estão espalhados documentos oficiais, molduras com quadros, jarros de plantas, muitos cabos e alguns embrulhos de chocolates. O nosso cicerone continua, com o sentido de missão de quem quer mostrar a destruição provocada pelo inimigo: “Aqui era a sala de videoconferência, tive muitas reuniões aqui… Aqui era o gabinete do vice-governador, que estava cá no momento do ataque, e sobreviveu… Mas um segurança que vinha a beber café neste corredor morreu, está aqui o sangue dele na parede…”.

O assessor de imprensa da administração regional de Mikolaiv tem dois irmãos que são oficiais do exército russo. Depois da invasão da Geórgia em 2008, eles avisaram-no: “Vocês são a seguir”. O assessor cortou relações: “Não temos mais nada para falar”. E deixou cair o apelido russo de família.

Ao todo, os bombardeamentos em Mikolaiv já terão roubado a vida a mais de 950 pessoas
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O míssil que furou o edifício da administração regional acertou em cheio no 4.º andar, na zona onde antes funcionava o gabinete do governador, Vitaly Kim
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Vários são os vestígios de sangue pelos vários pisos do edifício
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Morreram 36 pessoas e quatro dezenas ficaram feridas neste ataque
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Milhares de documentos oficiais da cidade estão agora espalhados entre as ruínas do edifício
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Há um retângulo de céu no meio do edifício, entre o 3.º e o 7.º andar
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“Isto foi como o nosso 11 de Setembro”, compara o assessor de imprensa da administração regional
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Nenhum gabinete do palácio do governo regional ficou intacto
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Admite que, antes da guerra, muitos residentes de Mikolaiv teriam lealdades e simpatias para com a Rússia. Agora, isso praticamente acabou. “Mudou a mentalidade de quem esperava que os russos os viessem salvar. Agora veem o que é o mundo russo e percebem o que significa virem os russos. Só se pode amar a Rússia quando não se é bombardeado por ela todas as noites.”

A bomba por explodir no telhado e os funcionários que diariamente reparam janelas

A explosão do palácio da administração regional é ainda hoje lembrada com emoção por toda a cidade. Yevgueni estava a 200 metros do edifício e viu o impacto do míssil. Baixou-se imediatamente procurando a cobertura de uma ponte, para evitar ser atingido pelos destroços: os vidros dos edifícios a toda a volta do palácio ficaram destruídos também. Dimitri tinha duas amigas que estavam no edifício e morreram — e emociona-se a recordar as suas vidas.

Yevgueni e Dimitri são dois funcionários da câmara de Mikolaiv, que antes da guerra tratavam da reparação de parques infantis, e estão agora totalmente concentrados em tarefas relacionadas com o confronto, como a preparação de trincheiras ou a proteção dos edifícios que perdem as janelas na sequência dos bombardeamentos.

Todas as manhãs se deslocam aos prédios que ficaram sem vidros para colocar uma proteção provisória nos retângulos antes ocupados pelas janelas. Esta segunda-feira, lá estavam eles de novo, num bairro junto à estrada principal de Mikolaiv, que foi atingido às 5 da manhã por uma série de bombas de fragmentação, que fizeram pelo menos um morto e um ferido. Poucas horas depois de os bombeiros terem apagado o incêndio que deflagrou numa loja de móveis e que desfez um carro, os dois funcionários faziam contas às dezenas de janelas que tinham de proteger nos apartamentos a toda a volta, ironicamente junto a um parque infantil igual aos que anseiam por voltar a reparar, quando voltar a haver crianças sentadas nos baloiços ou a deslizar nos escorregas, sem correrem o risco de se tornarem vítimas de bombas de fragmentação, como as que atingiram o bairro naquela noite.

Poucas horas depois, já há quem esteja a limpar a rua dos estilhaços dos vidros, mas os vestígios das bombas de fragmentação permanecem no chão

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Evguenia, a administradora do condomínio desta urbanização, vive no segundo andar de um dos edifícios que rodeiam a praça. A primeira bomba caiu do lado onde tem o quarto dos dois filhos. Retirou-os imediatamente para o seu quarto, no lado da frente da casa, mas, minutos depois, também esse lado foi atingido por uma bomba, pelo que acabaram por se concentrar no meio do apartamento, assustados, à espera que as explosões terminassem.

Não parou de receber chamadas dos vizinhos que saíram da cidade, cerca de 300 no total (mais de metade dos residentes), a perguntarem-lhe como está o apartamento de cada um, para avaliarem os estragos. Foi ao telhado de um dos prédios e encontrou uma bomba que ficou por explodir: fotografou-a, fugiu e chamou a brigada de inativação de explosivos. Não sai de Mikolaiv porque tanto o marido com os filhos estão impedidos de deixar o país, por terem entre 18 e 60 anos.

O dilema de Tanya e o comerciante que escapou duas vezes

Não é esse o caso de Tanya, 70 anos. É dona de uma pastelaria que foi atingida, também mora mesmo em frente e escondeu-se na casa de banho quando sentiu os estrondos provocados pela queda das bombas. “Já estamos habituados a isto, mas desta vez tivemos azar.”

Já tem o filho e a neta a salvo na Bulgária, onde comprou um apartamento. Todos os dias tem amigos que moram a 80 km a insistir com ela para sair daqui, todos os dias hesita, todos os dias decide ficar, à espera que a situação acalme, por ter o seu negócio na cidade com cinco empregados, que não quer deixar numa situação difícil. Mas ainda não tinha sentido as bombas tão perto. “Agora não sei o que fazer.”

Por toda a cidade se teme o impacto das bombas de fragmentação. Junto à movimentada praça da Vitória, no início de abril, começaram a cair, como se disparassem pequenas rajadas em todo o redor. Oito pessoas morreram, incluindo um homem que conseguiu esconder-se numa rua lateral, mas acabou atingido por uma bomba que caiu mesmo em frente. Esta semana, o mesmo local voltou a ser atacado por uma bomba de fragmentação que caiu de paraquedas em cima de um quiosque. No primeiro destes ataques, o funcionário de uma mercearia que fica mesmo em frente conseguiu esconder-se atrás do balcão, apertado com mais cinco clientes, até as bombas acabarem. No segundo, foi ele que encontrou o paraquedas no local. Teve sorte duas vezes e sobreviveu para contar.

Nas ruas de Mikolaiv, como noutras cidades ucranianas, abundam os outdoors de propaganda. Já há um que mostra o navio Moskva afundado, com gotas de sangue. Outro caricatura um militar com equipamento inimigo e uma cabeça de porco no lugar da face: “Soldados russos, Ladrões, Violadores, Assassinos”.

O “milagre” do regresso da água a Mikolaiv, depois de um mês sem banho nem autoclismo

Além dos bombardeamentos que diariamente deixam as suas marcas na cidade, quem ficou em Mikolaiv teve ainda de enfrentar a falta de água corrente das torneiras durante um mês, desde que a rede de abastecimento foi atingida, a 12 de abril. Nas primeiras duas semanas, até nos supermercados escasseou a água e começaram a ser espalhados camiões pelas ruas, para as pessoas se abastecerem com garrafões.

Um grupo de voluntários de uma igreja protestante de Odessa apelou à generosidade dos clientes de um supermercado para vir ajudar Mikolaiv
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Para transportar a água, há quem utilize garrafas, garrafões ou baldes
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Muitos fazem algumas centenas de metros a pé de suas casas até ao local de recolha de água
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As pessoas mais idosas têm mais dificuldade em transportar mais do que um garrafão
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Noutro ponto da cidade, um grupo de voluntários distribui garrafas de água
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Não há limitação no número de garrafas por pessoa
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Alexander, 44 anos, um dos camionistas que trouxe a água, veio de Odessa, de onde é a empresa contratada pela administração regional para ajudar a atenuar este problema. Passou os primeiras dias a ouvir as pessoas a agradecerem-lhe e a quererem oferecer-lhe dinheiro (que ele recusou), por finalmente terem água para o essencial. “Foi impressionante, houve centenas de pessoas nas filas, esvaziava o camião em apenas seis horas. As pessoas ficaram mesmo muito felizes por verem água outra vez”, recorda ao Observador, sentado ao volante do camião, onde dorme todas as noites, apesar do ruído dos bombardeamentos e das sirenes.

Nos últimos dias, voltou finamente a haver água corrente em algumas casas, mas ainda não é potável, pelo que continua esta corrida diária à distribuição dos camiões. Tatyana Anatolievna é uma engenheira reformada de 73 anos impecavelmente arranjada: “Tenho tempo para me maquilhar, não tenho muito mais para fazer. E apesar dos desconfortos de uma guerra, os humanos devem permanecer humanos”.

Tatyana Anatolievna, de 73 anos, diz: "A água voltou há dois dias e pude finalmente fazer uma coisa tão simples como voltar a despejar o autoclismo”

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Enfrentou esta falta de água com enormes dificuldades. “É muito complicado, sobretudo quando se é idoso, porque só se consegue levar um garrafão”, diz ao Observador. “Aprendi a racionar a água em casa, mas andei a sonhar com um duche. A água voltou há dois dias e pude finalmente fazer uma coisa tão simples como voltar a despejar o autoclismo.”

Apesar de viver sozinha e não ter família em Mikolaiv, Tatyana aguenta com firmeza por acreditar no exército ucraniano que combate os russos a 20 km. E também por ter um núcleo de vizinhos no prédio que conhece há 30 anos: “Ajudamo-nos uns aos outros, olhamos uns pelos outros, refugiamo-nos juntos nos corredores do prédio, entre paredes, quando há bombardeamentos”.

Enterrar a mãe a correr, com medo das bombas no cemitério

Nataliya, 50 anos, também mora cercada por prédios atingidos. Não se refugia na cave, porque o seu edifício é antigo e tem medo que desabe por cima dela e do marido. Passou um mês sem tomar banho, a limpar-se apenas com toalhetes. Cozinhar e lavar roupa também era um drama. Não se vai esquecer do primeiro dia em que conseguiu voltar a sentir a água a cair do chuveiro: “Foi como um milagre, finalmente”.

Até aqui, rejeitou sempre a hipótese de deixar Mikolaiv, por ter a mãe idosa em casa, mas agora está a pensar ir para a Polónia. A senhora morreu há uma semana com um AVC, que a filha acha que pode ter sido provocado também pelo stress das sirenes e das explosões.

“Ainda veio a ambulância, mas já não havia nada a fazer. Fizemos um funeral rápido, só estava eu e o meu marido no cemitério, mais ninguém, por causa dos bombardeamentos. Nem ficámos até ao fim para ver o coveiro cobrir todo o caixão com a terra.” A mãe de Nataliya tinha 83 anos e passou os últimos dias de vida com medo de que os russos chegassem à cidade. Chamava-se Nadejda: Esperança, em ucraniano.

Nataliya, 50 anos, passou um mês sem água, a limpar-se apenas com toalhetes

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