Ângelo Brás, “Brás para os amigos, brasa para as amigas”, está a dar tudo na concertina pelas ruas do centro histórico da Guarda. “Venham cá ver isto / Vai passar um novo Rui / Vai ser o primeiro-ministro / Eu vos digo agora, sim / toda a gente acredita nisto.” Na campanha de Rui Rio, acreditar tornou-se a palavra mágica: pela primeira vez em muito tempo, António Costa tornou-se batível.
Rewind até 2019. A campanha de Rui Rio arrasta-se. A primeira semana está quase a chegar ao fim e pouco mais há para contar do que ruas semi-desertas, percorridas com a graça de quem está a fazer um frete, uma disputa inconsequente sobre “quem tem o melhor Centeno”, um mal-estar indisfarçável em relação aos críticos internos, os “hipócritas” e os “manhosos” que beijam o símbolo do partido enquanto afiam as facas (Luís Montenegro, leia-se), e um discurso, em Évora, que é quase uma assunção de derrota. “Posso cair, mas quando caio, caio de pé, não dobro. Mas sei que vamos ter um resultado muito honroso.”
Na antecâmara das legislativas de 2019, ninguém no PSD parecia acreditar que era possível vencer – como, de resto, não foi – e uns outros tantos desejavam de facto não ganhar. Não é exagero: Rui Rio nunca esperou derrotar António Costa no primeiro embate. O objetivo dele e do seu núcleo duro foi sempre aguentar as europeias, sobreviver às legislativas, inverter o ciclo nas autárquicas, esperar pelo pântano e abater os socialistas. Assim mesmo, desde o minuto zero da sua liderança.
Estratégia que se refletiu na estrada. Rui Rio fez a campanha que quis, com quem quis e quando quis, (quase) sem folclore, quase sem povo, pensada de forma minimal, solitária, sem notáveis, sem senadores, sem pesos intermédios, nem aparelho partidário, ora porque dispensaram participar, ora porque Rio dispensou a participação deles, na maioria dos casos porque houve uma confluência de não-vontades.
Agora, se há algo que já ficou evidente nestes primeiros dias é que esta será uma campanha diferente. Desde logo e sobretudo porque existem três coisas que se alteraram: Rui Rio acredita que pode derrotar António Costa; uma parte do partido acredita que o PSD pode mesmo derrotar o PS; e a parte que não acredita assim tanto prefere jogar pelo seguro não vá o diabo tecê-las.
Em Setúbal, para responder à provocação dos jornalistas sobre se será mais fácil ganhar as eleições ou sair a sorte grande, Rio não desarmou. “É muito mais difícil sair a sorte grande. Jogo muitas vezes no totoloto e nunca me saiu nada que se visse. Agora, tenho confiança que vou ganhar as eleições. É isso que noto na rua.” Rio acredita que já não está a jogar contra as probabilidades. Antes pelo contrário.
Um cheiro diferente no ar
A campanha para as legislativas de 2022 tem sido reflexo disso mesmo. Há mais investimento (um gigantesco camião faz as vezes de outdoor ambulante e de palco multifunções), há mais profissionalismo (a equipa avançada prepara competentemente o terreno para a chegada do líder), há mais músculo (Alexandre Rodrigues, o grande operacional de Salvador Malheiro, está a coordenar tudo com pulso férreo), há mais carnaval (o cantor Emanuel juntar-se-á nos próximos dias), há menos distrações internas (o PSD suspendeu a vertigem autofágica), há mais foco na mensagem (Rio não perde uma oportunidade para tentar acentuar o esgotamento da solução de António Costa) e, sobretudo, há mais gente – mobilizada pelo aparelho, sim, mas também muita gente com vontade genuína de estar ali.
Como em todas as campanhas, existe um esforço deliberado por parte da comitiva do candidato em criar um efeito cénico que contagie a bolha mediática e, sobretudo, as imagens que chegam pelos televisores. Aquilo a que se convencionou chamar de “arruadas” ou de “contacto com a população”, e que antecedem sempre as declarações aos jornalistas, não são mais do que desfiles de jornalistas à procura de ouvir o melhor aparte, de repórteres de imagem à procura do melhor momento, de militantes e jotas engalfinhados e coreografados, de cabos, câmaras, apertões e cotoveladas, incentivados pelos seguranças que ladeiam o líder, também eles a cumprir o papel de tornar tudo aparentemente mais claustrofóbico, em ruas estreitas o suficiente para afunilar ainda mais o cortejo, como se um mar de gente quisesse engolir o escolhido a qualquer momento.
Não quer. Na verdade, a confusão costuma ser tal que nos contactos com a população a população costuma ser a menos contactada. Mas é inequívoco que a receção nas ruas tem sido incomparavelmente superior àquela que existia há dois anos – quando nem sequer existiam os constrangimentos provocados pela Covid-19. “Devo ser dos que tenho mais experiência em eleições e em perceber a sociedade antes de eleições. Se se comparar com 2019 nas legislativas, por exemplo, é muito diferente, há um apoio do público muito superior”, sugeriu Rio durante uma rara pausa para café bem no centro de Setúbal.
Vale o que vale e, quando se contarem todos os votos, pode não valer de nada. Mas tem sido sempre assim, de Braga a Castelo Branco, passando pela primeira de duas incursões por Lisboa, onde o efeito conjugado Moedas-Rio foi particularmente evidente. Aqui, tal como há dois anos, Rio fez um desfile pela Avenida da Igreja, no centro de Lisboa; em 2019, o tempo e espaço era tanto, que Rio se deu ao luxo de engraxar os sapatos em plena campanha; desta vez, foi praticamente impossível chegar perto do líder PSD tal a multidão que o seguia e rodeava.
A perceção generalizada na comitiva que acompanha mais de perto Rui Rio é de que há de facto qualquer coisa de diferente no ar. “Isto pode mesmo virar. Toda esta gente aqui… Não esperava”, confessava ao Observador um alto dirigente do partido entre apertões e cotoveladas durante mais uma sova nas ruas de Barcelos.
O facto de não existir qualquer sombra de oposição interna ajuda a tornar tudo mais fluído. Os tais “hipócritas” e “manhosos” de 2019 – que serão, mais coisa menos coisa, os mesmos de 2022 –, guardaram as facas e têm-se juntado à campanha em cada distrito por onde Rio desfila. “Parece a Páscoa. Estão a fazer o caminho da penitência”, comentava na Guarda um dos membros da comitiva. O ainda muito distante cheiro a poder tem destas coisas.
Mas, por muito que Rio acredite – e ele acredita – por muito que o partido admita a hipótese – e admite – e por muito que o bailado da campanha esteja mais ensaiado – e está –, existe, aparentemente, um grande fosso a separar PS e PSD, como indicam todas as sondagens divulgadas até agora. Para inverter a tendência, é preciso centrar todos os esforços num grande objetivo: vender a “marca Rui Rio” ao eleitor indeciso.
O partido sou eu e os indecisos são soberanos
Tudo – ou quase tudo – na campanha social-democrata gira em torno do mito de Rio. Nem sequer é preciso procurar muito por evidências: o próprio hino da campanha, cantando pelas backing vocals de Emanuel, não tem qualquer referência ao PSD e é uma exaltação das qualidades associadas a Rio. “Em Rui Rio vamos votar / É o líder da razão / Tem o povo no coração / Somente ele merece ganhar” ou, por exemplo, “Ninguém nega a sua competência / E a natureza da sua consciência / Rui Rio é um homem da nossa gente / Um líder competente”.
Não é exatamente uma excentricidade de Rui Rio. Nas últimas autárquicas, Carlos Moedas fugiu a sete pés de qualquer referência (nome, símbolos, cores) que o ligasse ao PSD. Ninguém o assume publicamente, nem Moedas nem Rio, mas existe hoje uma convicção generalizada no PSD de que as três letrinhas são mais negativas do que uma mais-valia. A marca PSD deixou de ser sexy.
Essa perceção sai tão mais reforçada quando quem pensa a campanha é a própria direção de Rio. No núcleo duro do líder social-democrata instalou-se há muito a certeza de que o mito criado em torno de Rui Rio é hoje maior do que o próprio partido. O tal mito do estadista que põe sempre o interesse do país acima dos interesses partidários e pessoais, que até admite dar a mão ao PS se perder as eleições, que não depende da política nem do cargo que ocupa, que não promete nada que não possa cumprir, que não abdica dos valores que defende, que vai “contra tudo e contra todos” em nome das convicções.
Na rua, o que Rio mais ouve nas interações que vai mantendo são elogios à sua retidão. “Gosto muito de si, é um homem muito sério”, atiraram-lhe na Guarda. Nas intervenções públicas que faz, o que mais repete são bengalas linguísticas que reforçam as características que quer associar à “marca Rio”: credibilidade, autenticidade, frontalidade, rigor. “Não posso vender gato por lebre”, disse no Fundão. “O PS quer amedrontar as pessoas. Não é forma de fazer campanha. É feio”, insistiu em Barcelos. “Tenho de ser frontal e genuíno. Quero que as pessoas percebam que não adianta nada ganhar a próxima eleição com promessas que comprometem o nosso futuro”, repetiu em Braga.
Nas sessões de esclarecimento que tem feito sempre ao final da tarde, e que substituem os tradicionais jantares-comícios, Rio começa sempre por se distinguir dos outros. “Não queremos estar aqui a escolher dois ou três berros contra os adversários para passarem nas televisões”, tem por hábito dizer. Até nas sondagens, as mesmas que Rio não se cansa de desprezar, vai aparecendo como mais honesto, frontal ou credível do que António Costa.
O guião auto-alimenta-se: o partido vende a marca de um líder mais sério do que os outros; os potenciais eleitores reconhecem a qualidade do produto; e a campanha passa a tentar acentuar ainda mais as características que são atribuídas ao produto que se quer vender. Mas não é apenas um exercício gratuito de devoção – a centralidade da figura de Rio serve objetivos eleitorais.
Numa campanha voltada para o eleitorado do centro, moderado, que tem historicamente horror a aventuras, que costuma premiar a continuidade e não a rutura, que está indeciso entre penalizar o PS pelo cansaço acumulado ou arriscar na incógnita chamada PSD, a promoção das virtudes associadas a Rui Rio é uma tentativa de ultrapassar as fronteiras do próprio partido (hoje visto, internamente, como um partido médio) e fazer crescer o PSD para valores muito superiores ao que representará hoje o eleitorado tiffosi, aquele que vota no partido aconteça o que acontecer.
A chave para derrotar António Costa, acreditam os dirigentes mais próximos de Rio, está precisamente aqui: convencer o eleitorado indeciso e moderado de que o socialista está esgotado e de que Rio, o tal poço de virtudes que o partido se esforça por vender, é de facto merecedor de um voto de confiança — e há, de acordo com as sondagens, quase 20% de eleitores indecisos. Por arrasto, essa será a mesma onda a pressionar os partidos à direita do PSD a votar no líder social-democrata.
Nem sequer seria um epifenómeno. Em Lisboa, Fernando Medina estatelou-se também por isso, porque os eleitores, mais do que se deixarem mobilizar pelos sonhos de novos tempos vendidos por Carlos Moedas, perderam motivos para votar no então presidente da Câmara de Lisboa. As eleições não se vencem, as eleições perdem-se, costuma repetir, mais palavra menos palavra, Rui Rio. Resta saber se António Costa está mesmo perto desse esgotamento — ou se é tudo uma perceção da bolha.