Os dados sobre a incidência do coronavírus nas últimas três semanas trazem reservas aos planos de desconfinamento em Portugal, avisam Carlos Antunes e Jorge Buescu, dois especialistas que se têm dedicado a monitorizar a evolução epidemiológica da Covid-19 em Portugal e que foram recentemente ouvidos no Parlamento. Para o primeiro, o modo mais seguro de sair do confinamento é abrir uma atividade, perceber o impacto que tem na epidemia e esperar até permitir a abertura de outra atividade. Sem prazos, apenas navegando à vista, concorda o matemático Jorge Buescu: mesmo o regresso ao ensino presencial deve ser feito “com as maiores precauções”, um nível de escolaridade de cada vez, “não ditado pelo calendário, mas pelos indicadores de risco”, diz.
Porquê? Desde meados de fevereiro que o número de reprodução (R), valor que indica quantas pessoas uma pessoa infetada com o SARS-CoV-2 pode contagiar, está a subir. Os dados da plataforma Covid-19 Insights, da COTEC Portugal e da Universidade Nova de Lisboa, calculou um R de 0,70 na última quinta-feira quando as previsões apontavam para que fosse apenas de 0,62 nesse mesmo dia. É um valor consideravelmente superior aos 0,59 registados a 13 de fevereiro, o número mais baixo desde que a terceira onda colocou o país com os piores números do mundo.
Mas os dados do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), de Carlos Antunes e de Jorge Buescu, calculados de acordo com várias outras variáveis e indicadores, são ainda mais pessimistas e apontam para um R que estará entre os 0,80 e 0,90. O fenómeno é natural porque, embora os casos diários de infeção pelo novo coronavírus continuem a decrescer, fazem-no a um ritmo cada vez menos acentuado e sustentado. “É expectável que nos próximos tempos a incidência deixe de descer e comece a subir”, descreve Carlos Antunes.
Os especialistas já sabiam que o R voltaria a aumentar e que nunca desceria até valores muitos baixos, mas não sabiam quando é que isso ia acontecer. Jorge Buescu nota que o confinamento conseguiu reduzir a incidência em 94%, de máximos semanais na ordem dos 90 mil para os atuais 5.700, mas os casos que ainda subsistem serão mais difíceis de eliminar com as mesmas medidas. E tenta dar uma imagem. “Já colhemos toda a fruta que está ao alcance da mão”, compara o matemático: “Para apanhar o resto vai ser mais lento, temos de subir à árvore com um escadote. O escadote é esta lenta subida do R”.
Problema para o qual ambos alertaram quando estiveram no Parlamento: quando começar o desconfinamento, é natural que o R suba cerca de duas décimas naturalmente. E quando o R está acima de 1,1, é altura de fazer soar os alarmes. Daí que neste momento exista alguma preocupação.
Ou seja, a subida desta métrica pode colocar entraves à estratégia de desconfinamento do Governo — que quer encontrar linhas orientadoras para o desconfinamento na reunião no Infarmed agendada para a esta segunda-feira antes da apresentação completa do plano, na quinta, dia 11. Ambos os especialistas consultados pelo Observador defendem que esses entraves exigirão uma vigilância mais apertada à evolução da epidemia e “cautela” quanto ao fim dos limites em vigor.
Os dados ainda permitem ponderar a reabertura das escolas, sobretudo nos níveis de escolaridade mais baixos (das creches aos 12 anos), na primeira fase de desconfinamento. Alguns países também apostaram na retoma do comércio avaliado com baixo risco de contágio (como os cabeleireiros, por exemplo), a autorização de atividades ao ar livre e a aprovação de um aumento na mobilidade entre concelhos aos fins de semana, mas sobre isso já há mais reservas entre os peritos. Antes mesmo da reabertura, pode ser necessário apertar ainda mais as regras, de modo a obrigar o R a descer, propõe Carlos Antunes. Como? Impondo o recolhimento obrigatório ao fim de semana, por exemplo.
Sempre que o R sobe, o número de novos casos também sobe, cerca de uma semana mais tarde. Neste momento, Carlos Antunes prevê que o risco de transmissão atinja o valor de 1 a 15 de março (data em que se decide o próximo estado de emergência), simbolizando uma estabilização no número de novos casos e um ponto de inflexão que fará aumentar a incidência. Na escala de níveis de risco traçada pelo engenheiro na última audição na Assembleia da República, se o R ultrapassar esse valor, reacende-se a luz laranja. Portugal, que está prestes a descer para o segundo nível da escala — o que permitiria um desconfinamento — pode manter-se assim no risco elevado, a que impõe ao Governo a necessidade de manter medidas mais apertadas.
Dois aspetos estão a contribuir para este fenómeno: um “desconfinamento informal” feito pelas pessoas — que se sentem mais confiantes e descontraídas perante a vacinação e a descida dos números —, e a variante do vírus descoberta no Reino Unido, aponta Carlos Antunes. Os dados de mobilidade recolhidos pela PSE, empresa especializada em ciência de dados e pesquisa avançada, revelam que os portugueses já estão a ceder à “fadiga pandémica” e a desconfinar, mesmo sem que as autoridades tenham dado indicação para tal.
Mais contágios, menos proteção. Que riscos corremos com as novas variantes do coronavírus?
A última atualização, referente à penúltima semana de fevereiro, já indicava um índice de mobilidade de 61% em relação ao verificado no intervalo entre 1 de janeiro e 14 de março de 2020, antes do primeiro confinamento. Na primeira semana de fevereiro era de 56%, o que já era superior aos 40% contabilizados na segunda semana de abril de 2020.
Além disso, embora o segundo confinamento tenha permitido controlar a propagação da variante descoberta no Reino Unido, ela continua a ganhar espaço e já se tornou dominante. Sendo mais infecciosa que a variante predominante até agora, é possível que tenha atingido uma maior facilidade de circulação na população que está a desconfinar, o que se vai refletir na incidência de casos positivos no país. O último relatório de diversidade genética da Covid-19 indica que 58,2% dos novos casos estão associados à variante com origem britânica.
Até agora, e ao contrário do que era esperado pelos peritos, a incidência da Covid-19 tinha baixado muito mais a pique nesta terceira vaga do que tinha sido calculado — e muito mais depressa do que ocorreu na primeira vaga. Esta evolução foi ainda mais surpreendente precisamente porque o confinamento não foi cumprido tão escrupulosamente como em março do ano passado.
A utilização de máscara e a adoção de medidas de proteção individual que já estavam implementadas terá feito a diferença, interpreta Carlos Antunes. Além disso, o encerramento das escolas não se limitou a reduzir significativamente a mobilidade da população: também transmitiu uma mensagem de que a situação epidemiológica nacional estava de facto descontrolada, caso contrário não se sacrificariam as aulas presenciais e a qualidade do ensino. “As pessoas interiorizaram que era preciso fazer alguma coisa”, conclui.
Mas algo mudou: a chamada força de infeção, uma métrica introduzida na audição dos matemáticos no Parlamento, que se calcula ao multiplicar o número médio de contactos de uma pessoa por unidade de tempo (algo que depende das interações sociais que mantém e da forma como o vírus se propaga) pela incidência. Essa força atingiu valores mínimos a 2 de março, mas está a subir desde então, o que se traduz numa maior probabilidade de mais gente ser infetada em menos tempo.
É por isso que ambos os especialistas insistem que “a atuação vai ser proporcional à chamada força da incidência, no sentido de o país não ultrapassar as linhas vermelhas”, nomeadamente a ocupação nas unidades de cuidados intensivos, que está a evoluir favoravelmente: “Quanto mais rápido subir o R, mais rápido sobe a incidência e mais rápido temos de atuar”, resume Carlos Antunes.
O conselho é que o desconfinamento seja feito sem datas calendarizadas, à luz de um sistema de semáforos alimentado pelos dados da evolução epidemiológica que Carlos Antunes está neste momento a preparar e em que Jorge Buescu também aposta.