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Rivalidade, dependência, alianças e contradições: para onde vai a nova (des)ordem mundial?

O novo mundo do século XXI é multipolar, feito de várias potências cuja rivalidade existe com a interdependência. Quais as causas e consequências deste cenário? Um ensaio de Bernardo Futscher Pereira.

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A hegemonia americana durou pouco. Após o colapso do império soviético, a lógica do equilíbrio do poder, a lei mais firme e constante do sistema internacional, não tardou muito a impor-se. De uma estrutura bipolar que resistiu cerca de 45 anos, transitámos abruptamente para uma estrutura unipolar que, nos últimos 20, se transformou progressivamente numa estrutura multipolar. A ascensão da China é a manifestação mais evidente desta transformação, mas não a única. Seria, com efeito, um erro pensar que a bipolaridade está de regresso, bastando, para a analisar, trocar a União Soviética pela China. O novo mundo do século XXI é multipolar. Se há analogias a procurar com o passado, não são com a segunda metade do século XX, mas sim com o século XIX, quando existiam várias potências cuja rivalidade política e militar coexistia com a interdependência das suas economias.

Contar polos

Não é fácil ter uma visão clara da distribuição de poder no sistema internacional. É evidente, no entanto, que o poder se fragmentou e dispersou. Os EUA e a China são primus interpares, mas não estão sozinhos em cena. Nem Washington nem Pequim conseguem hoje impor a mesma disciplina aos seus aliados que as duas superpotências no tempo da Guerra Fria. A União Europeia, com o alargamento a Leste, autonomizou-se e estendeu a sua esfera de atuação ao conjunto do continente europeu, assumindo-se como um império burocrático em permanente expansão. A China ascendeu, mas a Rússia não desapareceu. Pelo contrário, sob a liderança de Putin, recuperou capacidade de intervenção.

Quais são os critérios para um Estado, ou uma entidade sui generis como a União Europeia, ser incluído na categoria das grandes potências? Não basta possuir alguns dos atributos do poder. É necessário reuni-los todos ou, pelo menos, quase todos: dimensão territorial, população, poder militar, capacidade económica e tecnológica, coesão e competência política e capacidade de atração – o chamado soft power. Poucos são os que conseguem satisfazer na totalidade esses critérios. Os E.U.A., certamente, apesar da crescente polarização da sociedade americana, que afeta a sua coesão e competência política. A China, também, embora na dimensão militar não figure ainda em primeiríssimo plano. Os títulos da Rússia e da União Europeia são menos evidentes, mas há boas razões para os incluir nesta categoria.

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A Rússia tem dois pontos fracos: a economia e a população. O seu PIB é inferior ao do Reino Unido e dez vezes mais pequeno que o da UE. A sua população, envelhecida, está a diminuir. Armados com estes dados e fiéis à tendência para tudo analisar sob o prisma do poder económico, muitos analistas têm desvalorizado a Rússia como grande potência. Não devemos cair no mesmo erro que perdeu Hitler e Napoleão. Os seus trunfos são ainda consideráveis. É o país com o maior território do mundo — quase o dobro dos EUA e da China e o triplo da UE — e a única potência que partilha com os Estados Unidos o atributo de ser simultaneamente europeia e asiática. O degelo do Ártico permite-lhe um acesso fácil ao mar. O seu poder militar é enorme e a sua competência política considerável. Dispõe de uma vasta esfera de influência no continente euro-asiático. A crise demográfica e a debilidade da sua economia, muito dependente da exploração de recursos naturais — mas estes são quase infinitos — talvez tornem a Rússia uma potência em declínio. Contudo, as demonstrações de poder que tem realizado nos últimos anos mostram que seria um erro excluí-la de um clube que integra há pelo menos dois séculos.

As demonstrações de poder que tem realizado nos últimos anos mostram que seria um erro excluir a Rússia de um clube que integra há pelo menos dois séculos

YURI KOCHETKOV/EPA

Quanto à União Europeia, agora em busca da sua autonomia estratégica, já não pode ser vista como um mero anexo dos Estados Unidos. Falta-lhe poder militar, em especial após a saída do Reino Unido, e coesão política – que só consegue atingir esporadicamente e ao cabo de um longo trabalho de concertação interna que torna a sua ação lenta e ineficaz. Terá a União Europeia atingido já a maturidade para ser tomada como uma unidade e não mero agregado de Estados? Se ainda não o conseguiu, parece claro que é esse o caminho que está a trilhar. Já dispõe, em todo o caso, de vários pontos fortes — território, população, capacidade económica e soft power — que permitem considerá-la uma grande potência, com uma larga esfera de atuação própria.

A dispersão do poder entre estes quatro grandes polos abre margem de manobra a uma série de outros Estados que se perfilam, num plano inferior, como agentes cada vez mais autónomos no sistema internacional. Estados rivais que pertencem ao seleto clube nuclear, como a Índia e o Paquistão; Estados com ambições regionais como a Turquia o Irão; Estados pária como a Coreia do Norte; Estados como o Japão, que voluntariamente abdicou do estatuto de grande potência, acolhendo-se à sombra do guarda-chuva nuclear americano, mas que pode ser forçado pelas circunstâncias a procurar de novo maior autonomia; novas Espartas, como Israel ou os Emirados Árabes Unidos, capazes de arrastar os seus aliados mais fortes; potenciais futuros gigantes como o Brasil ou a Nigéria; ou um antigo poder imperial, como o Reino Unido, que decidiu de novo trilhar um caminho autónomo.

Multipolaridade e multilateralismo

Na sociedade internacional, há dois princípios organizadores que competem pela primazia. O princípio da anarquia, cujo prisma de análise é conhecido na gíria das relações internacionais como o realismo, e um princípio de ordem, que associamos ao multilateralismo e é representado pelas organizações internacionais de caráter universal. O primeiro prima tradicionalmente sobre o segundo. Contudo, com o avanço da globalização, é patente que, no plano normativo, a sociedade internacional carece de mais ordem e menos anarquia. A questão que agora se põe é de saber quais são as implicações de uma estrutura multipolar de distribuição do poder para o multilateralismo.

Prima facie, a multipolaridade não favorece o multilateralismo. A dispersão do poder dificulta a obtenção de consensos e favorece uma lógica de alianças cruzadas em vez de uma concertação entre todos visando objetivos comuns.

A formação das Nações Unidas e a globalização foram forjando pouco a pouco algo que se assemelha a uma “consciência global” – embora seja fácil confundir essa consciência com a agenda promovida pelo mundo ocidental. Essa consciência embrionária manifesta-se agora, por exemplo, na mobilização internacional para combater a crise climática. Todavia, mesmo quando existe, o que nem sempre é o caso, essa consciência é frágil e não se traduz automaticamente em ação para resolver os problemas globais. Por uma razão simples: nas relações internacionais a força centrípeta da globalização está em tensão permanente com as forças centrífugas dos interesses nacionais. Sem uma agência central que exerça as funções do Estado no plano internacional ou, na ausência desta, sem um dispositivo de poder que suporte a diplomacia multilateral, a “consciência global” está permanentemente sujeita a erosão.

O federador da vontade coletiva é um líder: identifica os problemas, tem suficiente poder para manter os seus aliados em linha, se necessário pela coação e pela violência. Após a criação das Nações Unidas, os EUA desempenharam esse papel. Nos últimos anos têm vindo a abdicar dele, mostrando-se cada vez mais tentados pelo unilateralismo puro e duro.

O grande problema político do século XXI é a organização da ação coletiva num mundo em que ninguém manda. Problemas globais exigem soluções globais, diz-se, e muito bem. Mas o problema está em organizar essas soluções. A diplomacia multilateral é o mecanismo existente para dar forma e expressão à “consciência global” e traduzi-la em ação. O mecanismo funciona a dois tempos. Primeiro, é necessário encontrar um consenso mínimo, apenas possível muitas vezes com base no mínimo denominador comum. Segundo, e ainda mais difícil, é necessário organizar a ação coletiva com base nesse consenso. A experiência mostra que, mesmo quando existe uma visão partilhada, é difícil traduzi-la numa cooperação eficaz entre estados soberanos.

Podemos pensar em soluções para problemas globais, como a crise climática, como bens públicos internacionais. Num sistema hierárquico, como o dos Estados, é o poder central que se encarrega de produzir e fornecer bens públicos – como a segurança dos cidadãos ou a qualidade do ar que respiram. Nas relações internacionais, a ausência de um poder central forte torna mais difícil garantir que todos partilhem de forma justa o custo de os fornecer. É o problema do passageiro clandestino. Cada Estado, no seu interesse nacional, quer evitar pagar um preço desproporcionado para fornecer o bem público, para evitar que outros beneficiem à sua custa, ganhando vantagens indevidas. Ou, mais cinicamente, procura pagar menos do que deve para obter benefícios à custa dos outros. Pior ainda, alguns Estados e muitas vezes não os menos importantes, recusam-se a pagar seja o que for. O resultado desta dinâmica é que o fornecimento de bens públicos no sistema internacional é insuficiente, embora todos reconheçam que, num mundo globalizado, eles são mais necessários do que nunca.

Quando o poder está concentrado, esse problema é mitigado. Uma potência hegemónica pode funcionar como um sucedâneo do poder central, exercendo o papel de federador. O federador da vontade coletiva é um líder: identifica os problemas, assume um custo desproporcionado pelo fornecimento de bens públicos internacionais, tem suficiente poder para manter os seus aliados em linha, se necessário pela coação e pela violência. Após a criação das Nações Unidas, os EUA desempenharam esse papel. Nos últimos anos têm vindo a abdicar dele, mostrando-se cada vez mais tentados pelo unilateralismo puro e duro.

Mesmo querendo os EUA recuperar esse papel, num mundo multipolar é mais difícil exercê-lo. A existência de diferentes polos de poder exerce uma influência centrífuga. Quando a cooperação falha, ou tarda em materializar-se, aumenta a pressão para os Estados atuarem cada um por si.

Os Estados Unidos dispõem ainda, com o dólar, de um poderoso elemento federador. Mas cedem cada vez mais à tentação perigosa de o utilizar como uma arma para impor a extraterritorialidade da lei americana, usando e abusando de sanções unilaterais. Com Trump, os EUA não se limitaram a atuar de forma unilateral. Procuraram mesmo opor-se ativamente à vontade coletiva — por exemplo ao retirarem-se dos acordos de Paris. O comportamento da administração Trump foi apenas a manifestação mais extrema e aberrante de uma tendência bem implantada no partido Republicano A administração Biden procura agora revertê-la, mas ainda que o consiga as profundas divisões existentes na sociedade americana fazem temer que a sua política não dure.

Porém, mesmo querendo os EUA recuperar esse papel, num mundo multipolar é mais difícil exercê-lo. A existência de diferentes polos de poder exerce uma influência centrífuga. Quando a cooperação falha, ou tarda em materializar-se, aumenta a pressão para os Estados atuarem cada um por si. Cada qual se sente não só na obrigação de agir unilateralmente para defender os seus interesses como mais livre para o fazer. Quanto mais os Estados atuam por conta própria, numa lógica egoísta, mais os outros se sentem obrigados a proceder da mesma forma, privilegiando interesses nacionais limitados, mas imediatos, a interesses coletivos difusos e só materializáveis a médio ou longo prazo.

epa09292306 Democratic Senator from West Virginia Joe Manchin walks up the East Front steps of the Senate during voting on Capitol Hill in Washington, DC, USA, 21 June 2021. The Senate is expected to hold a vote, 22 June, on whether to advance voting legislation, 'For the People Act'. Democrats face the strong possibility of the bill being blocked by Republicans.  EPA/MICHAEL REYNOLDS

As profundas divisões existentes na sociedade americana fazem temer que a política de Biden não dure

MICHAEL REYNOLDS/EPA

Uma estrutura multipolar dificulta a formação de consensos para produzir bens públicos à escala internacional e torna mais difícil exercer o papel de federador. Quanto maior o número de grandes potências, mais difícil é conciliar os seus interesses e maior é a margem de manobra para os estados de segunda linha. A deriva da Turquia é paradigmática. Continua a ser vista como um aliado indispensável no seio da NATO e, teoricamente, mantém o seu estatuto de candidato a membro da União Europeia, mas age cada vez mais em função dos seus interesses próprios, sem sofrer consequências. As suas relações com os seus aliados são eivadas de ambiguidade. Sente-se livre para defender os seus interesses se necessário contra os seus próprios aliados, pois sabe que é tida por indispensável para controlar o fluxo de migrantes e refugiados em direção à Europa e como contrapeso à Rússia.

Pela primeira vez desde a criação das Nações Unidas, a diplomacia multilateral tem de funcionar no quadro de uma estrutura multipolar. As dificuldades são evidentes a olho nu. O Conselho de Segurança está paralisado. Ainda assim, é um tributo extraordinário à sagacidade dos fundadores das Nações Unidos que o seu núcleo de membros permanentes continue a ser largamente representativo da distribuição do poder a nível internacional. Dos cinco membros permanentes, três, os EUA, China e Rússia, são grandes potências. A União Europeia está de algum modo representada pela França. Só o Reino Unido é, desde o Brexit, um caso à parte. É um argumento poderoso para respeitar a composição do núcleo duro do Conselho de Segurança.

A multipolaridade e o sistema de alianças

Numa estrutura multipolar, o sistema das alianças é, simultaneamente, menos previsível, porque cada estado tem mais opções, e mais importante porque, para equilibrar o poder, as alianças contam mais do que os esforços internos. O sistema bipolar desmoronou-se essencialmente por a URSS ser incapaz de competir economicamente com os EUA. Num mundo multipolar globalizado, as alianças contam mais do que as capacidades internas porque o perigo do isolamento é maior. Nenhuma grande potência, por maior que seja o seu poder, pode arriscar o isolamento completo. O sistema de alianças é mais fluido igualmente por outras razões, ideológicas e geopolíticas.

O atual sistema de alianças continua a basear-se nas afinidades ideológicas. De um lado, as chamadas democracias liberais ocidentais – E.U.A., União Europeia, Austrália — do outro os dois gigantes ex-comunistas, com regimes políticos autoritários. Na Ásia, o Japão e a Coreia do Sul mantêm-se firmemente ao lado dos E.U.A. para conter a China. Na Europa, a NATO, ainda que em morte cerebral, como disse Emmanuel Macron, continua a estruturar uma aliança contra a Rússia. Entre a Rússia e a China, há um entendimento, ou se quisermos uma aliança tácita, ainda que eivada de desconfiança mútua. Tal como Mao não quis ficar subalterno de Kruschev, também Putin não quer ficar na dependência de Xi Jinping.

Embora a UE e a China exerçam uma influência global no plano económico, do ponto de vista geopolítico são potências regionais: a UE na Europa e a China na Ásia. Estas diferentes situações geográficas ditam perspetivas diferentes sobre as ameaças a que estão sujeitos.

A administração Biden tem claramente apostado nesse critério, procurando caracterizar a sua política externa como um confronto ideológico entre as democracias e os regimes autoritários. O cimento ideológico é, no entanto, mais frágil que no tempo da guerra fria. Por um lado, esbateram-se as diferenças entre o mundo ocidental e o mundo ex-comunista. O autoritarismo da China e da Rússia já não se exerce em nome de uma ideologia claramente oposta ao Ocidente. O facto de ambas terem adotado o capitalismo de Estado permite-lhes participar de um mesmo sistema económico globalizado. Ao mesmo tempo que se atenuaram as diferenças ideológicas que demarcavam o Ocidente dos países comunistas, cavaram-se as diferenças ideológicas no campo ocidental. Biden não obstante, os EUA e a Europa têm hoje em dia de perspetivas muito diferentes sobre o mundo. A União Europeia é pacifista, feminista, antinacionalista e multilateralista ao passo que os Estados Unidos, são cada vez mais militaristas, nacionalistas e unilateralistas.

O credo comum da democracia liberal não chega para disfarçar o afastamento crescente na maneira de ver o mundo entre os EUA e a UE. É claro que, sob a administração Biden, estamos todos a fazer um esforço para mostrar que se regressou ao passado. Mas não vale a pena ter ilusões. Para além das suas ideologias coincidirem cada vez menos, as situações geopolíticas dos EUA e da UE ditam à partida prioridades distintas e preferências não necessariamente coincidentes.

O ponto de partida para analisar estas prioridades e preferências é necessariamente geográfico. Os EUA e a Rússia são potências simultaneamente europeias e asiáticas. Embora a UE e a China exerçam uma influência global no plano económico, do ponto de vista geopolítico são potências regionais: a UE na Europa e a China na Ásia. Estas diferentes situações geográficas ditam perspetivas diferentes sobre as ameaças a que estão sujeitos.

Um dos critérios básicos para avaliar o nível de ameaça nas relações internacionais é a proximidade. A União Europeia está rodeada pela Rússia a Norte e pelo mundo muçulmano a Sul. Para gerir e conter as ameaças que partem da sua vizinhança, depende, ou dependia, essencialmente dos EUA. Essa proteção está a desaparecer, à medida que os EUA prosseguem inexoravelmente a sua retirada do Médio Oriente, se viram para a Ásia e insistem para que os europeus assumam uma maior quota de responsabilidade pela sua defesa. Não admira assim que a União Europeia, ao constatar a sua solidão crescente, queira desenvolver a sua autonomia estratégica.

A razão para a alteração na posição americana é simples: como potência global, simultaneamente europeia e asiática, os EUA preocupam-se mais com a China, em ascensão, do que com a Rússia, em declínio. A China representa um desafio claro e evidente à supremacia americana e uma ameaça direta ao seu sistema de alianças na Ásia. Com quase 1500 milhões de habitantes, um território de dimensão semelhante ao dos Estados Unidos, uma economia que será muito em breve, ou por alguns critérios, já é a maior do mundo e um sistema político que se tem revelado altamente eficaz, só resta à China transformar-se num grande poder militar para se poder equiparar plenamente e até mesmo superar os Estados Unidos.

Para confrontar simultaneamente a Rússia e a China, o Ocidente vai precisar de aliados e, para os encontrar, não poderá ater-se a critérios de pureza ideológica. Mais uma vez, o caso da Turquia é paradigmático.

Para a União Europeia, a China, por ser distante, é uma ameaça menos presente do que a Rússia. Se analisarmos as relações de força unicamente pelo prisma económico, a China é um rival muito mais poderoso que a Rússia, mas também oferece muitas oportunidades. A Rússia é mais perigosa simplesmente por estar mais próxima e competir num mesmo espaço geopolítico. Presa das suas contradições internas, a UE não o pode reconhecer abertamente, mas o Reino Unido já o fez na sua recente Strategic Review. A Rússia é uma potência revisionista, com ambições territoriais no coração da Europa e uma atitude agressiva relativamente ao mundo ocidental que se manifesta nas suas tentativas para corromper e manipular os seus regimes democráticos, atacando-os na ciberesfera e financiando movimentos populistas e antieuropeus. O seu desrespeito pelos direitos humanos deixa pouco a desejar ao que se verifica na China.

Com uma determinação algo surpreendente, a administração Biden optou inicialmente por confrontar simultaneamente a Rússia e a China num terreno essencialmente ideológico. Mas se esse critério serve para dar coesão às suas alianças na Europa e no Extremo Oriente, será certamente mais problemático aplicá-lo no resto do mundo. O confronto com a Rússia e a China já está a levar a uma maior aproximação entre estes dois países e a uma tendência para se erigirem em protetores dos países em conflito com os EUA como o Irão. Para confrontar simultaneamente a Rússia e a China, o Ocidente vai precisar de aliados e, para os encontrar, não poderá ater-se a critérios de pureza ideológica. Mais uma vez, o caso da Turquia é paradigmático. Se a Rússia é uma ameaça à UE, é lógico procurar uma aproximação à Turquia, visto que Rússia e Turquia são potencialmente rivais. Por mais que Erdogan seja um parceiro incómodo, a Europa não o pode dispensar.

Não admira que a União Europeia, ao constatar a sua solidão crescente, queira desenvolver a sua autonomia estratégica

Anadolu Agency via Getty Images

A pressão americana provoca uma cristalização do sistema de alianças, com os países ocidentais de um lado e a Rússia e a China do outro. Quanto maior for a tensão internacional, maior será a tendência para a bipolarização, tal como ocorreu nas vésperas da primeira guerra mundial. Mas o facto de haver uma tendência para a bipolarização não significa que a estrutura do poder seja bipolar. Significa apenas que a competição chegou a um tal nível de intensidade que todos os países são obrigados a escolher entre dois campos. Tal tendência, ao dividir o mundo em campos opostos, também não será muito favorável ao multilateralismo.

Quanto mais rígido for o sistema de alianças, mais difícil será operar um sistema multilateral eficaz. Pelo contrário, uma situação fluida, com áreas sobrepostas de competição e cooperação entre as grandes potências, parece ser a que melhor permitirá preservá-lo. Mas, ainda que seja possível evitar a cristalização, as estruturas multilaterais continuarão sujeitas a erosão pelos efeitos da multipolaridade no sistema internacional.

No atual mundo multipolar, dominado pela competição entre os EUA e a China, não é de excluir que os Estados Unidos se sintam um dia tentados, como sucedeu com Trump, ainda que por outras razões, a procurar uma acomodação com a Rússia para a afastar da China – o inverso do que fez Kissinger com a sua abertura à China no tempo da Guerra Fria. Para a União Europeia, pelo contrário, parece mais atraente uma acomodação com a China para travar a Rússia. Na UE há um grupo substancial de países – os que estiveram sob domínio soviético — que se sentem diretamente ameaçados pela Rússia. A China é mais remota e consensual.

Trinta anos depois, há razão para pensar que Fukuyama errou ao não antecipar a vitalidade da tradição de governo autoritário na Ásia, e a forma como a China e a Rússia a renovaram após o fim do comunismo, inventando um novo tipo de regime político assente no capitalismo de Estado, servido por uma máquina política de elite.

Em divergência estratégica com a UE, os EUA sentem-se tentados a construir na anglo-esfera um novo sistema de alianças com países like minded. O recente episódio do contrato com a Austrália para a dotar de submarinos de propulsão nuclear, que enfureceu Macron, é um bom exemplo. Mas Biden já dera outras indicações no mesmo sentido. Uma das suas primeiras iniciativas foi a organização de um encontro virtual da chamada Quad Alliance – Quadrilateral Security Dialogue – em que participaram, para além dos Estados Unidos, a India, o Japão e a Austrália. Para o Reino Unido, esse poderia ser um caminho atraente, que lhe permitiria situar-se numa bissetriz entre os EUA e a UE. O Brexit permite ao Reino Unido recuperar plenamente a sua soberania política, mas não lhe confere autonomia estratégica, devido à sua contínua dependência dos EUA, que lhe fornecem os misseis Trident que equipam os seus submarinos nucleares.

A globalização e a crise da democracia liberal

A situação internacional afeta a política interna das democracias liberais do mundo ocidental. O colapso do comunismo levou Fukuyama a decretar o fim da história. A sua tese não foi bem compreendida. Fukuyama não previu o fim dos conflitos ou da evolução da humanidade. Apenas argumentou que a democracia liberal triunfara de forma definitiva no plano ideológico, independentemente do tempo e das peripécias que fossem precisas para vingar em todo o mundo.

Trinta anos depois, há razão para pensar que errou ao não antecipar a vitalidade da tradição de governo autoritário na Ásia, e a forma como a China e a Rússia a renovaram após o fim do comunismo, inventando um novo tipo de regime político assente no capitalismo de Estado, servido por uma máquina política de elite, como o Partido Comunista Chinês ou o FSB, sucessor do KGB russo, chefiado por uma figura carismática, e capaz de utilizar tecnologias de controlo social sem precedentes na história da humanidade, baseadas na análise de dados e na inteligência artificial. Desde que consigam gerar crescimento económico e garantir a segurança de pessoas e bens, estes regimes são perfeitamente capazes de beneficiar da aceitação tácita da maioria da população, o que lhes confere uma certa aura de legitimidade.

A vitalidade destes regimes, particularmente na China, constitui um desafio para as democracias liberais e para um sistema de alianças baseado em afinidades ideológicas. No atual momento histórico, podemos dizer que o capitalismo reina triunfante, mas as democracias liberais estão sujeitas a novos desafios e manifestam graves sintomas de crise. Paradoxalmente, a globalização, seu principal triunfo, contribui para este estado de coisas, por duas razões

Primeiro, a adesão geral ao capitalismo, seja ele essencialmente privado ou de Estado, esbate as diferenças ideológicas entre, por um lado, as democracias liberais, e, por outro, as democracias iliberais – como a Hungria de Vítor Orban, em que um poder autoritário é sufragado por eleições livres e continua a permitir um módico de liberdades e garantias individuais — e os regimes autoritários puros e duros, como a Rússia ou a China e permite a estes penetrarem e corromperem o Ocidente com o poder do dinheiro.

epa08852336 A Chinese national flag flies at the Chinese Embassy in in Canberra, Australia, 30 November 2020. On 30 November, Australian Prime Minister Scott Morrison call for China to apologise for a social media post depicted an Australian soldier murdering an Afghan child. According to the Australian government, China's Foreign Ministry spokesman Lijian Zhao posted the image.  EPA/LUKAS COCH AUSTRALIA AND NEW ZEALAND OUT

A vitalidade de regimes como o chinês, constitui um desafio para as democracias liberais e para um sistema de alianças baseado em afinidades ideológicas

LUKAS COCH/EPA

Segundo, a globalização, ao promover uma divisão internacional do trabalho cada vez mais fina, favorece o desenvolvimento económico, mas produz igualmente efeitos perversos, gerando desigualdades que minam por dentro as democracias. O crescimento das desigualdades nos próprios expoentes da democracia liberal, estimula neles uma reação nacionalista, populista e autoritária. Nos EUA, um país que nunca conheceu outro regime político, o símbolo máximo da democracia — o Capitólio — foi atacado em nome dos seus próprios princípios pelos partidários de Trump. Na Europa, essa reação alimenta-se de outras tradições políticas – não necessariamente fascistas – cuja memória está ainda bem presente e é agravada pelo facto dos regimes democráticos nacionais terem de conviver e competir com instituições comunitárias dotadas de um formidável poder burocrático e centralizador.

À crise do multilateralismo, favorecida pela estrutura multipolar do sistema internacional, junta-se assim uma crise da democracia liberal, paradoxalmente favorecida pela globalização.

A qual, por sua vez, está nitidamente em recuo. Antes mesmo de se agudizarem as tensões entre os EUA e a China, esse recuo já era patente nas tendências protecionistas que se verificam um pouco por todo o lado e na progressiva dissolução de um regime comercial global em prol de arranjos bilaterais ou regionais. A pandemia de Covid19 agravou essa tendência. A competição entre os EUA e a China pode acentuá-la ainda mais, diminuindo a interpenetração das suas economias, ou levando mesmo ao “mundo fraturado” dramaticamente evocado pelo secretário-geral da ONU, António Guterres. Prima facie, esse recuo da globalização também não será de molde a favorecer o multilateralismo.

As contradições do século XXI

Vivemos assim uma situação recheada de contradições.

Em primeiro lugar, as mudanças na distribuição de poder no sistema internacional, consubstanciadas na transição para uma estrutura multipolar, dificultam a obtenção dos consensos necessários para que o multilateralismo, principal mecanismo para os fornecer a nível internacional, resista e seja eficaz, numa altura em que é mais necessário do que nunca.

Em segundo lugar, essas dificuldades são agravadas pelos efeitos perversos da globalização. Se, por um lado, a globalização carece de ser gerida no plano multilateral, por outro provoca reações protecionistas e nacionalistas, devido ao desejo natural de cada Estado de evitar dependências indesejadas — veja-se o atual debate sobre as cadeias de abastecimento global — e de mitigar as desigualdades internas que ela favorece.

Não estamos perto do desfecho fatal que se verificou em 1914. Para o mantermos longe do nosso horizonte, devemos, contudo, avaliar corretamente as relações de força e as dinâmicas que produzem, evitando analogias erradas com a época da Guerra Fria, e apreender as contradições do sistema em que vivemos.

Em terceiro lugar, o recurso à ideologia para demarcar campos perde eficácia devido às divergências estratégicas entre EUA e UE, à necessidade de aliados que não podem ser recrutados apenas com base em critérios de pureza ideológica, à crise da democracia liberal, e ao facto de o capitalismo ter deixado de ser apanágio do Ocidente para passar a ser praticado, com crescente sucesso, por regimes políticos autoritários como o chinês e o russo.

Como lidar com estas contradições?

Num mundo simultaneamente mais integrado e mais fragmentado, parece importante reconhecer que a globalização não é garantia de paz, nem de bom governo global. Prosseguindo a analogia com o século XIX, convém não esquecer o fim trágico de uma outra era áurea da globalização. Após uma longa paz que, apesar de algumas guerras localizadas, durou praticamente um século, pensava-se que a guerra entre as grandes potências era impossível, tal a interpenetração das suas economias. Não foi o que aconteceu.

Não estamos perto do desfecho fatal que se verificou em 1914. Para o mantermos longe do nosso horizonte, devemos, contudo, avaliar corretamente as relações de força e as dinâmicas que produzem, evitando analogias erradas com a época da Guerra Fria, e apreender as contradições do sistema em que vivemos.

Perante as incertezas que se perfilam no horizonte, recomenda-se prudência e flexibilidade. Sem renegar os valores do Ocidente, é importante reconhecer os limites da ideologia como princípio orientador da política internacional e procurar manter, a todo o custo, entendimentos multilaterais em matérias de óbvio interesse global, como a crise climática, a controlo das armas nucleares, ou a gestão da saúde pública.

Ao mesmo tempo, é preciso aceitar que a globalização pode, e provavelmente deve, ser limitada, de forma a mitigar a instabilidade que gera. Um mundo de blocos mais independentes entre si, desde que aprendam a cooperar uns com os outros em matérias de interesse fundamental, não será necessariamente pior, nem mais instável.

Bernardo Futscher Pereira é embaixador de Portugal em Rabat. Foi anteriormente assessor diplomático e sherpa do Primeiro-Ministro António Costa.

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