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Depois de conquistar a quinta Bola de Ouro, em janeiro passado, Cristiano Ronaldo deixou no ar uma revelação curiosa. “Quero sete Bolas de Ouro e sete filhos”. A frase, dita entre sorrisos, só pode parecer brincadeira para quem não conhece o craque português. CR7 alimenta-se de desafios – como mostra a mudança para Itália –, alimenta-se de metas constantes que coloca a si próprio e que quase sempre consegue alcançar, por mais estapafúrdias que possam parecer a um primeiro olhar. Quando Ronaldo diz que quer conquistar sete troféus, passa a ser sério candidato a fazê-lo.
Ainda faltam duas para as sete, é certo, mas falta apenas uma para o português poder ser o sétimo jogador da Juventus a levantar o galardão dourado. Antes de si houve mais seis – de Omar Sivori (1961) a Pavel Nedved (2o03), passando pelo “mágico” Zidane e pelo “maestro” Platini, o recordista, com três galardões consecutivos conquistados ao serviço da Vecchia Signora.
Pavel Nedved, o checo que “corria até quando dormia”
Depois de conquistar o terceiro scudetto com a camisola da Juventus, em 2003, Pavel Nedved expressou um sonho: “O meu maior presente seria jogar a final da Liga dos Campeões”. Até ao minuto 82 daquela meia-final com o Real Madrid, no Delle Alpi, esse sonho estava bem vivo. A Vecchia Signora vencia por 3-1 (tinha perdido por 2-1 na primeira mão), Figo até tinha falhado uma grande penalidade e Nedved tinha marcado um golaço – numa daquelas arrancadas que deixou Hierro a ver navios. Só que naquele minuto 82, o impossível aconteceu: o avançado viu cartão amarelo, acumulou com os outros dois que já levava na prova e ficou de fora do decisivo jogo com o AC Milan, em Manchester.
O público gritava: “Nedved, Nedved”. Mas ele estava de rastos. Até ao apito final do suíço Urs Meyer, limitou-se a deambular pelo campo, incrédulo, aturdido. No final, caiu sobre o relvado, as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Teria de ver a partida que mais sonhou jogar da bancada. Caía por terra o sonho de levantar a ‘orelhuda’ naquele que tinha sido o seu melhor ano na Juventus, com 14 golos e 11 assistências, a juntar à conquista do Campeonato e da Supertaça.
Nedved, a quem chamavam “Anjo Loiro”, era o principal motor da equipa, com aquelas arrancadas que varriam o corredor esquerdo, com os passes certeiros e os remates para golo, tanto fazia com que pé. Sem ele, a Juve acabou por perder a final, mas o avançado checo era aclamado o melhor do mundo: vencia a Bola de Ouro, assim como o prémio FIFA. “Nem em sonhos acreditava que ia ser o vencedor. Assim que soube dos nomeados, nunca pensei. Não sou uma estrela como Figo, Ronaldo ou Zidane“, disse depois de receber a distinção mais importante da carreira.
Zidane… Foi exatamente o médio francês que Nedved foi substituir na Juventus, corria a época 2001/02. Tinha sido descoberto por Mino Raiola, o excêntrico (e por vezes polémico) agente que hoje representa, por exemplo, Pogba, Lukaku ou Ibrahimovic, e que o tinha ajudado a brilhar na Lázio (depois de uma passagem pelo futebol checo, com destaque para o Sparta de Praga). Um dia o telefone tocou. Do outro lado estava Luciano Moggi, diretor da Juventus. Queria contratar Nedved. Marcou-se um encontro em Florença, ao meio-dia, e o agente, que não tinha especial boa relação com o responsável da vecchia signora, alertou-o: se chegasse mais do que dez minutos atrasado, o preço do jogador duplicaria. E assim foi: Moggi atrasou-se, Raiola foi embora e o negócio fez-se por 41 milhões de euros.
Homem tímido e discreto, era líder, mas exercia essa liderança fora dos holofotes. Também passava longe de toda a parafernália de contratos de publicidade e era pouco sensível aos apelos do dinheiro. “Chegava e dizia-lhe: ‘Pavel, vais ganhar muito dinheiro se fizeres estas oito campanhas’. Ele olhava para mim e dizia: ‘Mino, conheces-me bem'”, relata o empresário. “Não havia dinheiro no mundo que lhe valesse perturbar a vida familiar. Tive uma oferta por ele do Japão. Era uma quantia de dinheiro que ninguém oferecia nem pelo Zidane. Mas ele não quis que os filhos mudassem de escola”. Era também incansável no trabalho, dos tais que são os primeiros a chegar e os últimos a sair. “Não deixava de correr, nem mesmo quando dormia”, sintetizou Marcello Lippi, que treinou Nedved na Juventus.
Terminou a carreira aos 37 anos, não sem antes se tornar (ainda mais) um ídolo para os adeptos bianconeri quando foi um dos poucos a ficar no clube quando um escândalo de manipulação de resultados impôs a descida à Série B, em 2006. A fidelidade ao emblema de Turim valeu-lhe uma carreira como dirigente – primeiro diretor desportivo, depois vice-presidente. Fechou o ciclo já com 45 anos, ao assinar pelo FK Skalná, clube amador checo onde nasceu para o futebol: dava uma perninha em campo (ao lado do filho, também jogador) nos intervalos da vida empresarial na Juventus e assim completava o ciclo na carreira.
Zinedine Zidane, o mágico com pés de veludo
Era o verdadeiro dono da bola. Mal a agarrava, ela colava-se-lhe aos pés e só voltava a sair em forma de poesia. Poucos lha conseguiam roubar. É daqueles jogadores que não enganam: são feitos para paladares refinados. Basta recordar – ou ver nos muitos vídeos no YouTube – a roleta que leva o seu nome, talvez o mais conhecido produto do seu variado repertório.
Dele, Alfredo Di Stéfano disse que parecia jogar “como se tivesse luvas de seda nos pés”. Jean Varraud, que o descobriu e treinou no Cannes, garante que “os seus pés conversavam com a bola”. Como naquela final da Liga dos Campeões, em 2002, em que Zizou respondeu a um cruzamento de Roberto Carlos com um poderoso remate de vólei e marcou um golaço que ajudou o Real Madrid a levantar mais uma Liga dos Campeões. Aquela elasticidade Zidane pode ter ido buscar ao judo, primeiro desporto que praticou – e onde foi cinturão verde.
Curiosamente, não foi de pés, mas de cabeça que rematou para a Bola de Ouro de 1998. Naquele dia 12 de julho, a França jogava em casa a final do Mundial frente ao Brasil. Zidane, que acabava de perder duas Ligas dos Campeões pela Juventus (frente a Borussia Dortmund e Real Madrid), não queria voltar para casa com mais um falhanço internacional. Aos 27 minutos, o cruzamento da direita caiu redondinho na sua cabeça calva e o remate deixou Cláudio Taffarel pregado ao chão. Ainda antes do intervalo, novo canto, agora da esquerda, com o mesmo desfecho. A França ganhava o seu primeiro Mundial naquele Stade de France onde, um punhado de anos mais tarde, Portugal seria tão feliz…
Uma década antes desse Mundial ganho, Zizou despontava no futebol, ao serviço do Cannes. Tinha decidido correr atrás do sonho e para isso saiu da casa dos pais, emigrantes argelinos que tinham chegado a França em 1953 – primeiro a Paris, depois a Marselha. As origens sempre estiveram muito presentes na vida do craque: por exemplo, enquanto com a mãe falava em francês, com o pai comunicava num dialeto da terra natal.
Do Cannes, onde passou quatro anos, Zidane seria transferido para o Bordéus, onde esteve outros quatro. Mas o estatuto de estrela só chegou verdadeiramente quando voou para fora de França. Primeiro na Juve, onde aterrou em 1996 e logo foi campeão nacional, depois no Real Madrid, que pagou 73 milhões de euros pelo negócio, na altura o mais caro de sempre da história do futebol (e que Florentino Pérez diria, tempos depois, ter sido barato).
Disse adeus aos relvados com tudo o que um jogador pode pedir: além do par de distinções de melhor do mundo pela FIFA (em 1998 e 2000) e da tal Bola de Ouro (1998), conquistou 15 títulos, entre os quais brilham um Europeu (2000) e um Mundial (1998) pela seleção e ainda uma Champions (2002). Nada ficou por conquistar, mas Zidane ainda conseguiu mais uma proeza, já enquanto técnico do Real Madrid: ser o primeiro da história a ganhar o prémio FIFA como melhor jogador e melhor treinador. Juntar o ótimo ao incrível. É para poucos; só mesmo para Zizou.
Roberto Baggio, o rabo de cavalo de ouro
Tinha o número 10 nas costas e levava-o muito a sério. Aquela era a camisola dos craques, dos que tiram sempre qualquer coisa da cartola, dos que fazem o que mais ninguém faz. Assim era Roberto Baggio. Recusava-se a jogar sem mostrar algo de bonito às pessoas. Não ia pelo caminho mais fácil; ia pelo seu caminho. E os adeptos adoravam as fintas e os dribles, os livres e os passes – porque tudo era feito para entreter. “O número 10 é aquele que diverte mais gente. Quando se tem o 10 nas costas, sabe-se que os adeptos vão esperar mais, é normal. Ou seja, fazer um passe quando, normalmente, se fariam três para chegar ao mesmo ponto. É justamente o que entusiasma as pessoas, que as torna felizes”, disse o médio, conhecido por Il Codino d’Oro (o rabo de cavalo de ouro), apelido quase tão bizarro como o dito cujo penacho que trazia agarrado à cabeça.
Foi esta sintonia com o que o futebol tem de mais genuíno que fez dele um ídolo. Não foram os títulos; Baggio somou apenas quatro em mais de 20 anos de carreira: dois campeonatos italianos, uma Taça de Itália e uma Liga Europa conquistada em 1993, precisamente o ano em que foi premiado com a Bola de Ouro – à qual juntou a distinção de melhor do mundo da FIFA.
Era por tudo isto que Baggio era chamado de Il Poeta em Itália. Mesmo que as lesões no joelho tenham sido uma constante desde muito novo: em adolescente rompeu o ligamento cruzado anterior e lesionou o menisco, o que fez com que antes dos 18 anos já tinha sido operado três vezes. Mais tarde ainda sofreria seis contusões graves – quatro no joelho direito e duas no esquerdo –, antes da lesão mais dramática, que o obrigou e levar 220 pontos na perna e a ligar o tendão à tíbia. E para piorar era alérgico à maioria dos analgésicos, por a dor foi fiel companheira de todo o trajeto no futebol, que só terminou aos 37 anos. Talvez por isso se tenha virado para o budismo: diz Baggio que o ajuda a encontrar o equilíbrio como pessoa.
Mesmo com as lesões, a Fiorentina não desistiu de o contratar, ainda menino, por um valor que podia fazer torcer o nariz. Afinal de contas, tinha 17 anos, vinha do Vicenza, um clube acabado de subir à segunda divisão, e custava 1,7 milhões de euros – para se ter uma noção, Maradona tinha sido comprado um ano antes pelo Nápoles ao Barcelona por 5,8.
Mas não há um adepto que diga que não valeu a pena. Pelo contrário: quando se soube que tinha sido vendido à Juventus, Florença parou. Milhares de pessoas rodearam o estádio Artemio Franchi durante horas, o presidente do clube trancou-se no escritório e recusou de lá sair. Houve até confrontos, dos quais resultaram 50 feridos. Estava tudo de cabeça perdida. Foi preciso a polícia intervir.
Na época seguinte, de regresso a Florença já com a camisola da Juve, recusou-se a bater um penálti contra a antiga equipa. Era o seu pé que tinha de bater a bola, mas, na falta dele, chegou-se à frente De Agostini. Que falhou. A Vecchia Signora acabaria por perder por 1-0 e Baggio por ser substituído. Enquanto caminhava para o banco, alguém na bancada lhe atirou um cachecol da Fiorentina, que não tardou no seu pescoço. Pode-se imaginar a reação dos adeptos bianconeri…
Mas a imagem mais marcante, aquela que o perseguiu até ao último pontapé dado num retângulo de relva, foi mesmo o penálti falhado no Mundial de 1994, na final frente ao Brasil. O jogo tinha dado empate sem golos, era preciso apelar aos pontapés dos 11 metros. Depois de Baresi e Massaro terem falhado, Baggio atirou a bola para as nuvens e entregou o tetra à canarinha de Bebeto e Romário. Naquele dia, tornou-se o italiano mais brasileiro da história. “Quando fui bater estava bastante lúcido, tanto quanto era possível naquela tipo de situação. Sabia que o Taffarel mergulhava sempre, por isso decidi rematar a bola ao meio, a meia altura, para que ele não lhe conseguisse chegar com os pés. Foi uma decisão inteligente, porque o Taffarel caiu para a esquerda, e nunca teria apanhado o remate que planeei”, explicaria Baggio na sua autobiografia, publicada em 2002.
Pendurou as botas em 2004, depois de representar Fiorentina, Juventus, Milan, Bolonha, Inter e Brescia. Foi adorado em todos os clubes por onde passou. Já na derradeira época, Trapattoni chamou-o à seleção para se poder despedir e as bancadas do estádio do Génova, pejadas de gente, aplaudiram-no durante três minutos seguidos. A prova de que Óscar Tabarez não tinha razão quando um dia disse, a propósito de Baggio, que “não há lugar para os poetas no futebol”.
Michel Platini, o maestro que marcava livres como penáltis
Não uma, não duas, mas três. Três Bolas de Ouro foi a conta que Michel Platini fez. E fê-la em grande estilo: como isto de ser o melhor futebolista do mundo por três vezes não era tarefa suficientemente extraterrestre para o francês, encarregou-se de acrescentar todo um novo nível de dificuldade e foi o melhor três vezes consecutivas (1983, 1984 e 1985). E ali ficou sozinho, no Olimpo, anos a fio com a sua façanha, até outro extraterrestre chamado Lionel Messi lhe fazer companhia nesta espécie de campeonato à parte.
Mas esse já é outro assunto. Voltemos a Michel Platini. Um número 10 redondinho, à antiga. Daqueles que fazem o futebol aparecer, nos seus pés e nos dos outros. Que conduzem a equipa como um maestro os seus músicos. O francês tinha tudo: passe, controlo de bola, visão – e ainda tinha golo. Pensava a jogada, dava o tiro de partida e ainda ia lá à frente para ter certeza de que ele ia direitinho ao destino final: a baliza contrária. Ah, e ainda marcava livres que mais pareciam penáltis.
O futebol foi parar-lhe pela primeira vez à cabeça no café da família, em Jouef, uma pequena terra industrial no norte de França. Lá, a bola era a rainha das conversas – ou não se chamasse o espaço ‘Café des Sportifs’. Por outro lado, o pai Aldo tinha sido jogador profissional. Os astros estavam alinhados. O pequeno Michel começou no clube da terra, aos 11 anos, quase foi parar ao Metz, mas o médico do clube diagnosticou-lhe “coração fraco” e “pobre capacidade respiratória” – diz-se que também tinha tendência para ganhar uns quilinhos extra, porque era viciado em pasta (a família é italiana, faz sentido).
Não quis o Metz, agradeceu o Nancy, clube onde viria a conquistar, já como capitão, o troféu mais importante do clube até então, uma Taça de França. Foi lá, no Metz, que Platini começou a desenvolver a pontaria para os livres – duas ou três vezes por semana, ficava para lá da hora do treino só a trabalhar este aspeto. De lá saltou para o Saint-Étienne, onde conquistou um campeonato francês… e o resto é história. Desembarcou na terra dos avós para ser rei na Juventus, por lá ganhou dois scudettos, uma Taça de Itália, outra Intercontinental, ainda a Supertaça Europeia, a Taça das Taças e, claro, a Liga dos Campeões – levantada naquele dia trágico de 1985, em que o hooliganismo saiu à rua e a tragédia de Heysel matou 39 pessoas antes do jogo.
Tudo isto eram argumentos de sobra para justificar as tais Bolas de Ouro, mas ainda faltava a seleção, que Platini capitaneou desde muito cedo. Falhou a final do Mundial de 82 – num jogo em que Battiston perdeu dois dentes e fraturou três costelas num choque com Schumacher – mas emendou a mão em 1984, quando foi campeão europeu em casa, formando um meio campo de sonho com Alain Giresse, Luis Fernández e Jean Tigana. Marcou nove golos em 14 da seleção gaulesa, apontou dois hat-tricks, um deles perfeito (pé direito, esquerdo e cabeça).
Despediu-se dos relvados aos 32 anos e depois de 312 golos em 580 jogos. Pegou na capacidade de liderança que já tinha como jogador e ainda fez uma perninha como selecionador francês, antes de passar a dirigente – foi presidente da UEFA e vice da FIFA.
Paolo Rossi, de mal amado a menino de ouro
Zangam-se as comadres, descobrem-se as verdades. E esta começou, ainda gatinhava a década de 80, quando um vendedor de fruta de Roma, Massimo Cruciana, apresentou uma queixa à polícia: alegava que tinha colaborado com o dono de um restaurante da capital para aliciar jogadores da Lazio a colaborarem num esquema de manipulação de resultados no campeonato italiano para beneficiar apostas clandestinas. Cruciani sentia-se enganado por alguns parceiros de crime e resolveu abrir a boca ao mundo. Nascia o famoso caso Totonero.
As imagens que se seguiram não foram bonitas. Um campeonato mergulhado no descrédito total, clubes grandes a descer de divisão (casos do Milan e da Lazio), dezenas de jogadores acusados, alguns detidos em pleno relvado. E por esta altura talvez esteja a questionar o porquê de lhe falar de um escândalo de corrupção num texto sobre os melhores do mundo. Pois é. Pasme-se: Paolo Rossi foi implicado no esquema. Não foi detido, como outros, mas foi afastado dos relvados durante três anos (que foram depois reduzidos a dois).
É muito ano para um jogador de futebol. De repente, tudo parecia perdido. Não que Rossi tivesse dado propriamente nas vistas antes disso. Aquele jogador pequeno e franzino, mas que era especialista em ligar o turbo e rematar em arco de qualquer ponto do relvado, tinha tido passagens discretas pelas camadas jovens da Juventus, e também pelo Como (onde só fez sete jogos e não marcou qualquer golo). Começou a mostrar faro de golo no Lanerossi Vicenza (39 golos em 59 jogos) e no Perugia (14 golos em 32 partidas), clube onde estava quando lhe foi descoberta a ‘careca’ da manipulação de resultados. Mas de nada adiantava ter dado nas vistas. Parecia não haver amanhã para o jogador. “Aos 23 anos, sentia-me terminado como futebolista, um talento inútil. Estava destroçado”, disse anos depois, em retrospetiva.
Deu-lhe a mão a Juventus, que o contratou mesmo não podendo contar com ele dentro das quatro linhas. E Rossi aproveitou. Nunca deixou de treinar. Estava a aquecer os motores para aproveitar a boleia do Mundial de 82, quando o selecionador transalpino Enzo Bearzot deixou Itália à beira de um ataque de nervos por decidir convocar um avançado acabado e que apenas tinha voltado aos relvados três meses antes. Os primeiros jogos deram razão às críticas: Rossi era o vértice ‘seco’ (de golos) de uma seleção que parecia arrastar-se em campo e que colecionou empates na fase de grupos (Polónia, Peru e Camarões) – originando até um blackout por parte de Bearzot.
Pedia-se a cabeça do selecionador e o clima não melhorou com a vitória tangencial sobre a Argentina, conseguida mais com fitas do que com fintas: só Claudio Gentile provocou 23 faltas sobre Maradona. A seleção das pampas não tinha conseguido libertar-se da teia defensiva italiana, mas de certeza que com o Brasil seria diferente. Tinha de ser. Era o Brasil de Falcão, Zico e Sócrates, era o Brasil do futebol total, o Brasil da vertigem, do toque, da velocidade, do ataque em série. Mas o cinismo italiano teve o seu expoente máximo em Paolo Rossi, que estava a zeros nos últimos quatro jogos, mas que envia três batatas à baliza de Peres. A Itália da contenção e dos contra-ataques venenosos vencia por 3-2, com um avançado ‘acabado’ a passar de vilão a herói nacional.
“Em Espanha converti-me num dos símbolos indiscutíveis do Mundial, redimi a minha imagem e silenciei a raiva que tinha dentro de mim. Nasci de novo”, disse o jogador. A partir daí, os golos vieram como o ketchup: na meia-final faturou por duas vezes e no derradeiro jogo, com a Alemanha Ocidental, abriu o marcador que se fixou nos 3-1, dando à Itália o ‘tri’, que chegava 44 anos depois da última conquista. Com seis golos apontados em Espanha, o herói improvável acabaria por ganhar a Bola de Ouro – prémio que juntou à distinção da FIFA – e escrever uma história de superação que o coloca como um dos jogadores italianos mais marcantes de sempre.
Omar Sivori, o baixinho das meias arregaçadas
Foi nos terrenos baldios de San Nicolas de los Arroyos, na Argentina, que nasceu o primeiro Bola de Ouro da Juventus. Um miúdo pequeno e franzino, que se alimentava da bola. De manhã à noite, corria atrás dela pelas ruas, de sapatos furados, camisa rasgada e sem botões. Se não tivesse com quem jogar, fazia-o sozinho: conduzia a bola de um lado ao outro de onde estivesse, driblando tudo o que encontrasse pela frente. Na maioria das vezes, só regressava a casa quando a mãe, Carolina Tiracchia, o puxava pelas orelhas.
O sonho passou à prática aos 16 anos, quando chegou ao River Plate para fazer um teste. Mas foi um fiasco. É que nem uma jogada conseguiu fazer, os seus pés pareciam manteiga, a perder a bola uma e outra vez. Mas houve algo que despertou a atenção do técnico Renato Cesarini. Era a forma panorâmica como via o campo. Era a postura do corpo, das mãos. Tinha pinta de craque e o treinador não se arrependeu de lhe dar uma segunda oportunidade. Cresceu nas camadas jovens mas haveria de estrear-se na equipa principal muito jovem, aos 18 anos, em janeiro de 1954 – num jogo em que estava tão nervoso que nem via o chão.
Quatro anos depois, haveria de despertar a fome dos tubarões – neste caso, da Juventus. À chegada a Turim, o então presidente Umberto Agnelli disse-lhe: “Há dois anos que esperava ter-te aqui”. E não deixou de levar com uma resposta. “E há cinco que eu sonhava jogar na Juventus”. Estava selado o casamento e os laços intensificaram-se quando, ainda antes da sua estreia diante do Hellas Verona, deu quatro voltas ao campo sem deixar a bola cair – uma demonstração de habilidade ao alcance de poucos.
Mas não foram rosas os primeiros tempos com a camisola bianconeri. As dúvidas em relação ao elevado valor pago pelo jogador ao River Plate juntaram-se às críticas por só jogar com o pé esquerdo e por ser demasiado baixo – tinha 1,63 metros. A estrutura de Sivori ainda abalou, mas não caiu. Aos poucos, foi conseguindo explanar em campo a sua inteligência, o seu estilo ‘vagabundo’ herdado do futebol potrero argentino, que vivia de passes curtos, de dribles, de duelos individuais. O avançado parecia ter uma espécie de GPS na ponta das botas: passando a linha do meio-campo, colocava a bola, literalmente, onde quisesse. Não admira que a marcação sobre si fosse voraz. Mas Sivori gostava. Vivia da força do adversário para lhe levar a melhor, à boa moda das artes marciais. Por isso provocava os adversários. Chamava-os a si. Ria-se deles quando os vencia.
Na Juve, tal como tinha feito no River Plate, conquistou três campeonatos consecutivos (1957/58, 1959/60 e 1960/61), além de duas Taças de Itália. O ano de 61 foi mágico: marcou 26 golos em 28 jogos e ainda bateu o recorde do Calcio ao apontar seis golos ao Inter (9-1), na goleada que garantiu o título. Era difícil fugir ao talento do argentino (entretanto naturalizado italiano) e Rossi acabaria por receber a Bola de Ouro. Foi depois recebido em Nápoles como rei, adorado como só El Dios Maradona seria, 20 anos depois. Retirou-se aos 33 anos, ironicamente frente à antiga equipa, Juventus. Embarcou depois para a Argentina, onde ainda foi treinador (mas com pouca expressão), antes de morrer cedo de mais, aos 69 anos, vergado pelo cancro. Fica a história. E a imagem de um rebelde que jogava de camisola de fora e meias enroladas perto das chuteiras. Afinal, não era preciso proteger as canelas das investidas adversárias. Sivori não tinha medo.