(Entrevista publicada no Observador, originalmente, em setembro de 2016)
As bombas ameaçaram tirar-lhe a vida por duas vezes. Esteve preso outras seis. Aos 14 anos já tinha levado a primeira sova da polícia durante uma manifestação em Lisboa. Mais tarde, sofreria tortura às mãos da PIDE. Herdou a costela de esquerda dos pais, embora a política corresse nas veias familiares desde os bisavôs.
Jornalista de profissão, Ruben de Carvalho chegou a diretor do “Avante!” fintando a censura prévia num “jogo do gato e do rato”. Aficionado pelo fado numa época em que ser comunista e gostar de fado eram fenómenos contraditórios, era já um melómano quando o conceito seria estranho à grande maioria dos portugueses. A sensibilidade musical acima da média foi decisiva na organização da primeira Festa do Avante!, em 1976, e as 39 edições que lhe seguiram. É única pessoa da primeira comissão executiva da Festa que “ainda anda por cá”. No ano em que se celebram os 40 anos da primeira edição, Ruben de Carvalho puxa a fita para trás e fala do seu percurso e da história da Festa do Avante!
Estávamos a 22 de setembro de 1976, a dois dias da primeira Festa do Avante. Mas uma explosão numa cabine elétrica deixou o recinto da antiga FIL praticamente às escuras. Recorda-se dessa noite?
Se me lembro. Dei um pulo na cadeira. Foi posta uma bomba na cabine elétrica que dava para a Avenida 24 de julho, que privou metade das instalações de corrente elétrica. Era uma tentativa de impedir que a gente fizesse a festa, porque nessa altura, a dois, três dias de começar, já era evidente que a gente a ia fazer. Que íamos ser capazes de fazer a Festa do Avante!. Foi uma tentativa de a impedir por meios violentos.
Hoje, à distância de 40 anos, não tem dúvidas de que se tenha tratado de um atentado?
Nenhuma. Absolutamente nenhuma.
O PCP incomodava assim tanto?
Ao que parece, sim. Mas tem de perguntar a quem pôs lá a bomba. Continua-se a não saber quem foi porque o atentado nunca foi reivindicado e as investigações ficaram sempre em águas de bacalhau. Aquilo do ponto de vista operacional até foi uma coisa relativamente fácil. Uma vez feita a bomba, o que também não era nenhuma proeza especial e na altura não era — havia bombas por todos os lados –, bastou parar o carro na 24 de julho, pôr uma bomba de trotil junto à porta da cabine e acioná-la. Mas conseguimos resolver o problema em menos de dois dias.
Como?
Arranjou-se um gerador junto da EDP. Estava no arquivo de identificação, no Torel. Foi preciso ir lá buscá-lo, levar um camião e a grua, trazer o camião para a FIL, pôr o gerador no chão, ligar aquilo tudo, refazer as ligações, etc. A FIL não tinha nada. Tinha equipamento, estrados, expositores. Tudo o mais teve de ser feito. Tudo teve que ser concebido e construído dentro da FIL. E tudo se arranjou.
Ainda assim, tinha sido um atentado à bomba, havia essa perceção…
Felizmente, não houve feridos, só danos materiais. A bomba rebentou perto do local onde tínhamos instalado a regie da parte dos espetáculos, que era exatamente onde eu estava. Saltei por cima da mesa e ainda hoje estou para saber como. Mas também bombas para mim não eram novidade.
Porquê?
Tinha estado em Angola. [Silêncio] Vim evacuado da guerra com uma perna partida depois de um mina me ter mandado pelo ar. Tinha 23 anos.
Porque é que foi tão importante realizar a primeira Festa do Avante! em 1976? O PREC esvaziara-se com a tentativa fracassada de golpe de Estado a 25 de novembro, o PCP vinha de três resultados aquém das expectativas (constituintes, legislativas e presidenciais), Mário Soares era primeiro-ministro, o Governo era socialista… A Festa do Avante! era uma tentativa de demonstração de força do PCP?
Qualquer grande iniciativa partidária é sempre uma afirmação de força, seja ela um comício, um jantar, ou um piquenique. No caso concreto das festas, como as festas dos jornais e da imprensa comunista, era também uma iniciativa que tinha que ver com a sobrevivência económica das próprias publicações. As festas constituíam uma forma de angariar fundos. Isto tanto era verdade em Paris, como em Berlim, como em Lisboa. Digamos que esse era o objetivo fundamental. Claro que se tratava também de uma afirmação de capacidade de organização, de mobilização e um meio concreto de levar a mensagem às pessoas.
Era, de alguma forma, uma prova de vida do PCP?
É exagerado dizer isso. Não estava em causa se o PCP existia ou não ou se tinham ou não condições para existir. Agora que constituiu uma poderosa afirmação de força isso constituiu.
Mas era uma forma de dizer que o partido estava unido…
A questão da unidade do partido é um leitmotiv constante da vida do PCP. Isso tanto era verdade no dia 25 de novembro de 1975, como no dia 15 de setembro de 2015. É evidente que, numa altura de crise política generalizada, um dos elementos fundamentais de força e de capacidade de resposta do partido era a sua unidade, a sua coesão, o virar para uma ação conjunta e não se desperdiçar e dividir em várias tendências.
Como se explica a alguém que não viveu aquele contexto o significado de uma Festa daquelas proporções?
É difícil. A primeira Festa aconteceu em circunstâncias muito complicadas do ponto de vista histórico. Fez-se poucos meses depois do 25 de novembro, depois de uma viragem importante no processo político português. Mas a ideia de a fazer a já existia há muito tempo.
Quando é que perceberam que era possível avançar com a ideia?
Na passagem de ano de 75 para 76 fizemos uma festa na FIL, que tinha sido ocupada pela Comissão de trabalhadores. Arrendámos o espaço, praticamente apenas a nave central, para fazer uma festa, com umas bifanas e música e tal. E isto revelou que a FIL tinha uma coisa que praticamente não havia em mais lado nenhum: condições materiais, físicas e técnicas para receber a Festa do Avante!. Isto aconteceu pouco depois do 25 de novembro e correu muito bem. Era o tilt de que precisávamos para avançar. E avançou-se.
O que se recorda desses três dias de Festa?
Excedeu muito as nossas expectativas. Não se podia andar dentro da FIL. Estava rigorosamente a deitar por fora.
Como é que alguém, nascido no seio de uma família burguesa, com o pai médico e a mãe professora primária, que estudara no Lar da Criança, um colégio privado por onde desfilavam os filhos do regime, como Marcelo Rebelo de Sousa, acaba envolvido neste caldo político?
O envolvimento na política na família vinha de trás. O meu bisavô foi vice-governador da Índia e o outro também viria a ser governador de São Tomé. Curiosamente, um dos meus dois avôs era monárquico e o outro republicano. A costela de esquerda seria a costela da família. O meu pai e a minha mãe eram pessoas de esquerda, sobretudo a minha mãe, que era militante do partido em 1930. Havia mais militantes do partido na família. Depois, havia as visitas de casa, os amigos dos meus pais. O meu pai era médico de metade dos neorrealistas desta terra. Esse convívio influenciou-me muito. O Alves Redol, o Leão Penedo, o Rogério de Freitas, o Lima de Freitas, eram visitas frequentes. Estamos a falar de 1958, das eleições presidenciais do Humberto Delgado. Tinha 14 anos. O mesmo ano em que levei pela primeira vez uma cacetada da polícia numa manifestação na Estefânia. Era também o arranque com mais força, nos anos 50, da resposta à tentativa do fascismo de controlar as associações de estudantes, que tinham adquirido uma importância muito grande. E isso alarga-se também aos liceus. O Liceu Camões estava dividido entre direita e esquerda e a minha turma era de esquerda. Portanto, houve um conjunto de circunstâncias de ordem social e política que empurraram as pessoas para esquerda.
Foi perseguido e preso pela PIDE…
Fui preso seis vezes. A primeira vez, em 62, fui preso em casa. Depois, no mesmo ano, fui preso na cantina universitária, durante a famosa greve de fome. Fui novamente preso em 63… E a última prisão lembro-me que foi em 74. Tinha saído de Caxias quinze dias antes do 25 abril e havia largas probabilidades de lá voltar se não tivesse havido o 25 de abril. Andei por toda a parte. Só não andei por Peniche. De resto, tiveram a fineza de me apresentar todas prisões do fascismo.
Sob que acusação?
Nenhuma. Rigorosamente nenhuma. Era esse o comportamento da polícia. Estavam afastadas quaisquer hipóteses de falar, de fazer denúncias ou até de confirmar coisas que a polícia já sabia. A polícia até podia saber tudo, mas o princípio era negar sistematicamente. E isto não era um problema menor para a polícia. Negando a polícia ficava a braços com um problema complicado: ou denunciava as próprias fontes ou era o próprio a confirmar. Como eu nunca disse nada em todas as prisões acabavam por nunca me conseguir julgar.
Sofreu algum tipo de tortura?
O costume. Tortura do sono. Cheguei a estar seis meses em Caxias isolado. Preso sozinho, numa cela, sem falar com ninguém, sem jornais, sem livros, rigorosamente sozinho.
Alguma vez teve medo?
Ouça, se alguma vez alguém lhe disser que nunca teve medo, mande-o dar uma volta de bicicleta. Eu estive na guerra, estive na atividade política na clandestinidade, fui preso. É evidente que tive medo. So what?
Acompanhava este lado de militância política com a carreira de jornalista — foi chefe de redação da Vida Mundial e redator paginador d’O Século antes de se tornar, finalmente, diretor do “Avante!”, já depois do 25 de abril. Como era viver permanentemente a tentar fintar a censura?
Complicado, claro. No fundo, era um jogo do gato e do rato. Criava-se uma forma de escrever por elipses. Era comum escrever uma coisa introduzindo um ou dois parágrafos que já se sabia a priori que a censura ia cortar, umas afirmações bombásticas exatamente para isso: para libertar as partes realmente importantes. Mas as limitações eram enormes. A censura foi um dos mais eficazes instrumentos do fascismo. Os jornais de todo o período do fascismo refletem um país que não existia. Um país onde não havia greves, onde as pessoas nem sequer se suicidavam… Não se podia dizer num jornal que o fulano se tinha suicidado. Tinha aparecido morto. Ou caído de uma janela. Qualquer tipo de acontecimento que perturbasse a tranquilidade e o sossego do fascismo, a censura encarregava-se de cortar e limitar. Não se podia criar alarme alarme social.
Ao mesmo tempo, era já um aficionado pelo fado. Não era algo contraditório para um destacado militante comunista?
Na altura, chocavam um bocado. A ideia de que o fado era uma expressão decadente a que o regime dava um certo apoio existia. Foi um problema que só se esclareceu já muito depois do 25 de abril. E isso não aconteceu só com o fado. As músicas populares e urbanas sempre foram consideradas um fenómeno menor do ponto de vista musical.
Mas como nasceu essa paixão pelo fado?
Não diria só pelo fado. Era pela música em geral. Se falar com qualquer pessoa da minha idade todas elas são amadores musicais. A música tornou-se a partir dos anos 50 um fenómeno muito presente na vida cultural juvenil. Desde o Zeca Afonso até à Amália, passando pelos Rolling Stones, Beatles, Pete Seger ou Chico Buarque, a música era já uma forma de intervenção.
Já nessa altura era aquilo a que se pode chamar de melómano. Esse conhecimento, essa sensibilidade acima da média, foi de alguma forma decisiva na organização da Festa do Avante!?
Sim. Até porque tinha iniciado, como jornalista, uma secção de crítica musical no Século Ilustrado e era o que se pode chamar presunçosamente um estudioso do assunto. Assinava publicações estrangeiras, tinha muitos amigos que trabalhavam em companhias de aviação que iam ao estrangeiro, o que me dava uma certa atualização sobre o que ia aparecendo em termos de música por esse mundo fora. Era um especialista no assunto.
Recorda algum concerto na Festa do Avante! que o tenha deixado especialmente orgulhoso?
Foram muitos… Chico Buarque, Judy Collin, Richie Havens, os Dexys Midnight Runners, os Bogus Brothers… Estive a fazer as contas no outro dia, assim por alto, e, entre portugueses e estrangeiros, ao longo destes anos passaram pela Festa do Avante seguramente mais de 20 mil artistas. Houve espetáculos a todos os níveis memoráveis. Espetáculos que, de certa forma, que são irrepetíveis. Às vezes digo que houve artistas que fizeram espetáculos no Avante! melhor do que eles próprios. O Chico [Buarque], por exemplo, que tem um horror a palcos, fez um espetáculo notável e histórico, em 1980. Depois, há uma coisa que contém uma certa dose de originalidade — e que mantém essa originalidade — que foi termos introduzido música erudita, música clássica, num festival com aquelas características. Uma coisa que nunca tinha sido feita e só nós é que a fazemos. Meter uma orquestra com 90 pessoas a tocar “A Sagração da Primavera” em cima de um palco de rock não é propriamente muito comum. Foi daquelas coisas que, quando se fez pensámos: ‘Vamos ver o que é que dá’. E deu.
Voltando um bocadinho atrás para regressar depois ao presente. Na primeira edição da Festa do Avante, Álvaro Cunhal aproveitaria para dizer que o PCP estava “são, unido e firme como uma rocha”. 40 anos depois, com o PCP a suportar, pela primeira vez, uma solução de Governo socialista, podemos dizer que o partido está menos firme?
Acho que não. Do meu ponto de vista está tão firme, tão são e tão rocha como sempre foi. Não vejo que haja qualquer indício de que assim não seja.
Perguntava-lhe indiretamente se o PCP, envolvido nesta solução de poder, não corre o risco de perder a identidade…
Votei favoravelmente esta solução que, diga-se em abono de verdade, não marca nenhuma alteração particular da parte do PCP.. Nós sempre defendemos a necessidade de uma alternativa de esquerda para a governação. Não tiramos nenhum coelho do chapéu. Mas nas últimas eleições criaram-se condições objetivas [os resultados eleitorais] e subjetivas [os protagonistas] para que isso acontecesse.
Foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa entre 2005 e 2013. Trabalhou diretamente com António Costa. Ele era o homem certo para concretizar esta solução?
Sou suspeito para falar sobre o António Costa. Andei com ele ao colo e quando digo que andei com o António Costa ao colo não é uma figura de retórica. O meu pai e o pai do António Costa eram amigos. Quando eu tinha 18 anos o António Costa tinha dois ou três. E apesar de o pai do António Costa ser militante do partido ele lá acabou por ir para o PS por causa de um brotoeja qualquer. Nunca percebi o que é que lhe deu. Mas sempre nos demos bem. E, de certa forma, pode dizer-se que António Costa sempre foi um homem que esteve nas bandas mais à esquerda do PS durante as clivagens do partido.
Sim, mas o partido que emergiu no pós-25 de abril rever-se-ia neste PCP?
É uma comparação um bocado difícil de fazer. Sim e não. Por um lado, sim, porque há características intrínsecas do partido que me parece que se mantêm. Mas, por outro lado, a própria sociedade portuguesa modificou-se. Não seria muito frequente ver militantes do partido a caçar Pokémons. Não seria plausível, até pelo excelente motivo de que não existiam Pokémons. As coisas mudaram. Os hábitos, os costumes, os interesses da sociedade são outros. Repare, dentro de cinco anos o partido vai fazer 100 anos. Ora, uma estrutura que dura 100 anos tem de se transformar, mas tem de manter a identidade. Se aparecessem cá agora o Bento Gonçalves ou o Pavel [pseudónimo de Francisco de Paula Oliveira] e olhassem para o partido não seria exatamente o partido que eles conheceram, mas também não seria uma coisa que eles não sabiam o que era.
Ao fim de 40 anos como membro do executivo da Comissão Organizadora da Festa do Avante, a motivação para continuar é a mesma?
Do ponto de vista do ânimo e da vontade sem dúvida. Agora noto que os anos passam. Uma coisa é ter 32 anos, outra é ter 72. Não é por acaso que eu sou a única pessoa da primeira comissão executiva da Festa do Avante! que ainda cá está. Os outros reformaram-se ou, enfim, desapareceram. Garanto-lhe que aqui há dez anos não me encontrava a dormir no dia anterior a abrir a festa. A fadiga é muito maior. Já tive um enfarte do miocárdio, sofro de insuficiência renal, tive este sarilho que foi complicado da fratura do fémur há dois anos [a mesma que partira na Guerra Colonial]. Portanto, o normal da vida.