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Um processo “desvirtuado”, feito “aos safanões” e “nas costas” dos autarcas. Rui Moreira abriu a porta à saída da Câmara Municipal do Porto da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) com estrondo, criticando a suposta conivência da associação, presidida pela socialista Luísa Salgueiro, com o Governo.
Mas a insatisfação não é de agora: há anos que o autarca do Porto se queixa do processo de transferência de responsabilidades do Estado Central para as autarquias — e está longe de estar sozinho nessas reivindicações.
Falta dinheiro, dizem os autarcas, seja porque as contas foram mal feitas, porque a pandemia atrapalhou o inventário ou até porque os custos da energia subiram desde o início do processo, que se arrasta por sucessivos adiamentos desde 2018 e deve prolongar-se pelo menos até ao fim deste ano.
Do lado da ANMP, que tem feito rondas para se reunir com os autarcas por todo o país e acusa Rui Moreira de não colaborar, ouvem-se pedidos de “solidariedade”. O processo da descentralização é tão complexo que até a própria Luísa Salgueiro admite que é preciso aperfeiçoá-lo — mas não há acordo à vista.
Porque é que Rui Moreira ameaça bater com a porta?
É uma luta antiga – tão antiga quanto os próprios acordos para a descentralização. Desde 2018, ano em que foi assinado o acordo entre PS e PSD para passar às autarquias as responsabilidades que eram, até então, do Estado Central em 21 áreas diferentes (incluindo Educação, Saúde, Turismo, Justiça ou Praias, por exemplo).
Rui Moreira tem apontado publicamente, e repetidamente, falhas ao que agora descreve como “um processo desvirtuado e feito aos safanões”. E culpa a ANMP, responsável por levar as posições das autarquias de todo o país às negociações com o Governo.
Desta vez, e quando o lento processo se está a aproximar do fim, o presidente da Câmara do Porto vai levar à Assembleia Municipal do Porto uma proposta para que a autarquia deixe mesmo de fazer parte da ANMP.
Argumentos? Uma alegada “postura de cumplicidade e total conivência” da ANMP (que até ao ano passado era presidida pelo socialista Manuel Machado, então presidente da Câmara de Coimbra, e passou para as mãos da também socialista Luísa Salgueiro, autarca de Matosinhos) com o Governo.
Moreira chega a acusar a ANMP de “boicotar” os próprios membros – ou seja, as autarquias – e fazer acordos com o Executivo “sem estar para tal mandatada, ignorando os seus interesses e preocupações legítimas”.
Por isso, Rui Moreira quer agora deixar de passar “cheques em branco à ANMP” e passar a negociar diretamente com o Governo, com quem está, aliás, a tentar reunir-se desde o início do mês, até agora sem sucesso. Resta saber se conseguirá aprovar essa proposta na Assembleia Municipal.
Mas qual é o ponto de situação da descentralização?
É um processo longo, que se arrasta desde 2018 e já foi alvo de vários adiamentos e críticas – incluindo, aliás, por parte do PSD de Rui Rio, que assinou o acordo inicial (traduzido depois em mais de vinte diplomas sobre as várias áreas setoriais a que se aplica) com António Costa mas acusou o Executivo de “falhar” na execução e de não pôr o que estava acordado em prática.
Ora o que estava acordado inicialmente era que os municípios passassem a ser responsáveis por muitas das tarefas até agora entregues à administração central, com um envelope financeiro inicialmente previsto de quase mil milhões de euros.
A ideia, depois de alguns adiamentos iniciais e das dificuldades impostas pela pandemia, era que a descentralização universal – uma vez que os municípios foram aceitando algumas competências avulso – ficasse finalmente terminada, em todas as áreas, a 1 de janeiro deste ano.
Ainda assim, como explicam ao Observador fontes conhecedoras do processo, nas áreas mais complexas – Educação (que tem a maior fatia do envelope financeiro), Saúde e Ação Social – o processo foi-se arrastando, “porque era necessária a aferição completa de recursos humanos, financeiros e patrimoniais, município a município”.
Ou seja, era preciso saber exatamente quais os recursos com que cada município contava para perceber quanto dinheiro seria preciso transferir – e os autarcas queixaram-se repetidamente de que os relatórios traziam números desatualizados e informação errada, o que os prejudicaria depois na atribuição dos recursos financeiros.
A própria ANMP percebeu que com a pandemia a atrasar o processo e os erros que se iam somando no percurso seria preciso adiar a tal “descentralização universal”, pelo que pediu ao Governo que a data final para todas as áreas fosse 1 de abril.
No caso da Saúde essa pode, na verdade, não passar de uma formalidade, uma vez que será preciso que cada município assine ainda um auto junto de cada Administração Regional de Saúde para confirmar as competências a transferir.
Já no caso da Ação Social, o diploma que é descrito como “o mais complexo”, a ANMP – já com Luísa Salgueiro como presidente – pediu o adiamento da entrada em vigor da transferência de competências e essa só acontecerá no final do ano.
E qual é o problema agora?
São vários. Para já, há autarquias que continuam a queixar-se de números desatualizados, fruto de contagens erradas e de números que ainda reportam ao período pré-pandemia.
Depois, há o chumbo do último Orçamento do Estado, que provocou a queda do Governo e, com ele, vários assuntos pendentes, desde logo a aprovação do próprio Fundo para a Descentralização (que constará do Orçamento aprovado esta terça-feira em Conselho de Ministros, mas que ainda precisará de passar pelas semanas de processo parlamentar até ser aprovado e entrar em vigor).
Além disso, há autarcas que se queixam de custos que aumentaram desde que o envelope financeiro começou a ser calculado, sendo o mais evidente o da energia, que com a guerra na Ucrânia disparou. “É um assunto a ser negociado com o novo Governo”, explica fonte da ANMP.
E há, de resto, verbas a serem contestadas, como é o caso do exemplo dado por Rui Moreira esta terça-feira: o autarca referiu os 20 mil euros que serão dedicados à manutenção de cada escola, queixando-se de que a ANMP fez um “negócio nas costas” dos municípios com o Governo.
De acordo com fonte que acompanhou o processo, o valor até seria mais baixo e deve ser dedicado a “despesas correntes”, e não a obras; mas a explicação não satisfaz o autarca, que classifica a verba como uma “grave lesão” para os interesses da autarquia e dos seus munícipes: “As verbas que hoje temos de alocar a descentralização não nos permitem fazer os investimentos que os cidadãos esperam de nós”.
Rui Moreira acabou por interpor, a 25 de março, uma providência cautelar para travar a descentralização nas áreas da Educação e Saúde, pedindo o seu adiamento, no primeiro caso, para o início do próximo ano letivo.
Dias antes, enviara a António Costa uma carta escrita juntamente com o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, em que garantiam que as verbas que acompanham a transferência de competências nestas áreas são insuficientes.
E como é que a ANMP responde a isto?
Não é que as críticas de Rui Moreira sejam novidade para a associação de autarcas, uma vez que já são repetidas pelo presidente da Câmara do Porto há anos (e muitas vezes acompanhadas por outros autarcas).
Ainda assim, segundo apurou o Observador, a ANMP não terá tido conhecimento da proposta de Rui Moreira para deixar a associação. As queixas foram ouvidas na última reunião que a ANMP fez no Porto (com as autarquias da área metropolitana e comunidades intermunicipais), na qual Rui Moreira foi o primeiro a falar e a registar estas preocupações, mas da qual terá saído sem ouvir as respostas.
Agora, Luísa Salgueiro vem pedir “união” e “solidariedade” aos autarcas e garantir que o processo não está “concluído” e é “dinâmico”, estando a trabalhar para responder às “reivindicações” de Moreira e de outros autarcas.
É, aliás, a própria autarca de Matosinhos que assume que o processo não é perfeito – ainda este mês defendia publicamente ser “imprescindível” que o Governo revisse os critérios da delegação de competências para evitar um “agravamento da situação financeira das autarquias”.
Os autarcas deveriam aceitar as novas competências, até para serem consequentes com o discurso “regionalista” que têm defendido – mas com os meios financeiros correspondentes, assumia a mesma Luísa Salgueiro.
No entanto, defendeu esta terça-feira no Fórum TSF e numa conferência de imprensa posterior, não é abandonando a ANMP que se resolve o problema: “Este é mesmo um momento decisivo que não recomenda estas atitudes. Já falei com o Rui Moreira sobre isto. Aqui não há avanços e recuos, há atitudes de colaboração com os restantes colegas, no sentido de todos podermos avançar nas melhores condições possível”.
Segundo fonte da ANMP, por causa da pandemia não foi possível fazer “uma mega reunião” que juntasse todos os presidentes de câmara, mas o périplo que Luísa Salgueiro tem feito para conversar com os autarcas e ouvir as suas queixas – já esteve no Porto, Lisboa e Coimbra, com os representantes das respetivas áreas metropolitanas e comunidades intermunicipais – vai agora continuar em direção ao Algarve e Alentejo, a 2 e 3 de maio, e depois rumo a Madeira e Açores.
As preocupações são apenas de Rui Moreira?
Não. A ANMP tem consciência de que as queixas de Moreira encontram eco em muitos outros municípios, sendo que a própria Luísa Salgueiro reconhece que a descentralização continua a ter falhas.
Esta terça-feira, também o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, teceu duras críticas ao processo, embora afastando taxativamente a hipótese de que a autarquia também venha a desvincular-se da ANMP.
“Nós não podemos estar aqui a ser os tarefeiros do Governo. Temos de ter competências que nos são atribuídas com os recursos necessários. Se o Estado nos transfere competências nas áreas da Saúde e da Educação, temos de ter capacidade e recursos para as poder exercer”, disse à Lusa, oferecendo-se para fazer o papel de mediador e “trabalhar com a ANMP” para evitar que o Porto saia da associação, que deve ter “uma voz forte em relação ao Governo seja qual for a cor do Governo.
As reações à tomada de posição de Moreira dividiram os autarcas, como a TSF noticiou. O presidente da câmara de Coimbra, José Manuel Silva (PSD), disse “compreender bem” a posição de Moreira, mas disse desejar que Luísa Salgueiro consiga abrir um debate na ANMP sobre esta matéria e resolver a situação.
Já a presidente da Câmara de Portimão, a socialista Isilda Gomes (presidente dos autarcas socialistas), teceu críticas duras a Moreira, sobretudo pela forma como anunciou a pretensão de retirar o Porto da ANMP, própria de quem “não respeita os órgãos que representam os autarcas”.
No passado, foram vários os autarcas das câmaras mais populosas do país que criticam a forma como o processo da descentralização estava a acontecer. Eduardo Vítor Rodrigues, socialista de Gaia, chegou a apontar de forma cáustica os dados errados que lhe tinham chegado sobre os recursos a atribuir à autarquia (“Em dois minutos desfiz o Excel que a ANMP andou dois anos a trabalhar”).
Isaltino Morais, o presidente independente da Câmara de Oeiras, classificou a transferência de competências como um “presente envenenado” e Bernardino Soares, ex-presidente da Câmara de Loures (comunista), juntou-se às críticas.
Parte delas foram ouvidas numa conferência promovida pelo Jornal de Notícias no Teatro Rivoli, no Porto, em que Rui Moreira voltou a liderar as queixas e a classificar o processo como uma “pseudo descentralização” e uma “tarefização” que daria aos autarcas responsabilidades que são “uma maçada para o Estado”.
Dessa conferência saiu a “Declaração do Rivoli”, um documento subscrito por dezenas de autarcas que exigia a suspensão imediata do prazo para a transferência de competências (nessa altura era janeiro de 2021) e o regresso ao diálogo direto entre Governo e municípios.
Agora, o problema volta a colocar-se de forma ainda mais evidente, com Rui Moreira a ameaçar bater definitivamente com a porta e deixar a ANMP.