Há centenas de acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que foram decididos ao longo de dez anos e que podem vir a ser anulados — ou, pelo menos, questionados. Em todos eles está a assinatura do juiz Rangel, recentemente demitido do cargo no âmbito de um processo disciplinar, quando a sua elaboração esteve, na verdade, a cargo de Fátima Galante, a mulher com quem continua casado, embora separado, e que trabalhava numa outra secção daquele tribunal.
A lista infindável de acórdãos com a participação de Galante foi encontrada pelas autoridades na caixa de correio eletrónico dos dois magistrados, entretanto afastados de serviço — ela aposentada compulsivamente e ele demitido. Nos e-mails trocados existem centenas de números de acórdãos sobre vários tipos de casos e crimes, desde traficantes de droga, acidentes de viação e até casos mais mediáticos, como um recurso do processo Fizz e o caso dos No Name Boys.
Mais: Galante não terá sido a única a colaborar nos acórdãos daquele tribunal superior. As autoridades descobriram também que uma das namoradas de Rui Rangel, uma advogada estagiária, terá igualmente ajudado o magistrado nesse trabalho. Num dos e-mails lidos pelas autoridades está mesmo um comentário de Galante a dizer isso mesmo. Depois de enviar alguns acórdãos corrigidos a “Papi”, como chamava a Rangel, Galante, a “Mami”, diz-lhe, numa nota final, que consegue identificar quando a “Garimpeira 2” o ajuda, insinuando que o faz em troca da dissertação que está a escrever.
Nos documentos que constam da investigação — e que foram entregues ao Supremo Tribunal de Justiça, que se debruçou, a pedido do próprio Rangel, sobre a pena disciplinar de demissão — constam também os locais em que ambos combinavam deixar os processos, como a portaria do Tribunal da Relação de Lisboa, um espaço perto dos cacifos ou até numa secretária.
Galante ajudou Rangel para o juiz poder ter outras atividades. Centenas de processos podem estar em risco
No processo disciplinar, o Supremo Tribunal concluiu que Fátima Galante ajudava Rangel para que ele pudesse desempenhar outras atividades paralelas, que lhe traziam dinheiro, violando assim o Estatuto dos Juízes. Por outro lado, segundo esse acórdão a que o Observador teve acesso, Galante também recebia dinheiro além ordenado. E às vezes era mesmo ela que o pedia ao advogado Santos Martins, também arguido na Operação Lex e descrito como sendo o testa de ferro de Rangel — embora o juiz justifique os pagamentos que recebia como a liquidação de dívidas antigas, de uma certa altura da sua vida em que lhe emprestou dinheiro.
E o que acontece agora nos processos que tiveram decisões assinadas por Rui Rangel mas escritas, afinal, por outra pessoa? Segundo o artigo 449.º do Código do Processo Penal, qualquer decisão poder ser revista em qualquer altura — “ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida” —, se “uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo”, ou seja, se o magistrado que a fez for condenado por crimes como aqueles de que Rangel está acusado.
Significa isto que caso o juiz, ou mesmo Fátima Galante, sejam condenados, poderão começar a surgir uma série de pedidos de visados nos processos que sintam que não houve segurança jurídica na sua decisão. Será preciso, porém, esperar que a sentença se torne definitiva, depois de todos os recursos possíveis, o que significa que esta possibilidade deverá demorar vários anos.
Na sequência do processo disciplinar, o Supremo Tribunal concluiu que os dois juízes desembargadores violaram os deveres de prossecução do interesse público, de independência e de isenção, além dos deveres de integridade, retidão e probidade inerentes às funç̧ões de magistrado judicial. Já para não tocar em casos em segredo de justiça que Rui Rangel partilhou com Fátima Galante.
Nesta década entraram nas contas de Rangel e Galante 270 depósitos em dinheiro
As autoridades acreditam que esta partilha de processos ocorreu entre 2008 e 2018, altura em que nas contas de Rangel e de Galante entraram 270 depósitos em dinheiro, num total de 394.544,53 euros.
Um dos acórdãos sob suspeita faz parte do processo dos No Name Boys. O julgamento deste caso ocorreu em 2010 e dele saíram 13 condenações a penas de prisão efetiva e 16 penas suspensas entre os 38 arguidos. Quando chegou ao tribunal superior, Rui Rangel ainda pediu escusa, por integrar a lista de candidatura à presidência do Benfica. Mas o Supremo Tribunal considerou que devia ser ele a manter-se no processo. O acórdão seria assinado por ele, mas terá sido escrito por Fátima Galante.
Isso mesmo terá acontecido com as reclamações pelo facto de o recurso não ter sido aceite — como uma, em que vota vencido, a explicar que recusou porque estava fora de prazo. Já os colegas consideravam que o recorrente teria apenas que reformular o recurso.
Há também um caso ocorrido em 2014 na A8, na zona de Lousa, quando um condutor que circulava a 100 quilómetros/hora num piso molhado se despistou, capotou e embateu de frente com outro carro. Um dos ocupantes da viatura morreu e uma outra vítima, que sofreu ferimentos graves, descobriu mais tarde, nos exames médicos, que tinha acabado de perder um bebé. O condutor foi acusado de homicídio qualificado e recorreu. A resposta do Tribunal da Relação também terá sido preparada por Fátima Galante, apesar de o caso ter sido entregue a Rui Rangel.