Há centenas de acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa que foram decididos ao longo de dez anos e que podem vir a ser anulados — ou, pelo menos, questionados. Em todos eles está a assinatura do juiz Rangel, recentemente demitido do cargo no âmbito de um processo disciplinar, quando a sua elaboração esteve, na verdade, a cargo de Fátima Galante, a mulher com quem continua casado, embora separado, e que trabalhava numa outra secção daquele tribunal.
A lista infindável de acórdãos com a participação de Galante foi encontrada pelas autoridades na caixa de correio eletrónico dos dois magistrados, entretanto afastados de serviço — ela aposentada compulsivamente e ele demitido. Nos e-mails trocados existem centenas de números de acórdãos sobre vários tipos de casos e crimes, desde traficantes de droga, acidentes de viação e até casos mais mediáticos, como um recurso do processo Fizz e o caso dos No Name Boys.
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▲ Procuradora Maria José Morgado tem o processo de Rangel nas mãos
HUGO AMARAL/OBSERVADOR
Mais: Galante não terá sido a única a colaborar nos acórdãos daquele tribunal superior. As autoridades descobriram também que uma das namoradas de Rui Rangel, uma advogada estagiária, terá igualmente ajudado o magistrado nesse trabalho. Num dos e-mails lidos pelas autoridades está mesmo um comentário de Galante a dizer isso mesmo. Depois de enviar alguns acórdãos corrigidos a “Papi”, como chamava a Rangel, Galante, a “Mami”, diz-lhe, numa nota final, que consegue identificar quando a “Garimpeira 2” o ajuda, insinuando que o faz em troca da dissertação que está a escrever.
Nos documentos que constam da investigação — e que foram entregues ao Supremo Tribunal de Justiça, que se debruçou, a pedido do próprio Rangel, sobre a pena disciplinar de demissão — constam também os locais em que ambos combinavam deixar os processos, como a portaria do Tribunal da Relação de Lisboa, um espaço perto dos cacifos ou até numa secretária.
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▲ A juíza Fátima Galante e o juiz Rui Rangel foram ouvidos em primeiro interrogatório no Supremo Tribunal de Justiça
ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
Galante ajudou Rangel para o juiz poder ter outras atividades. Centenas de processos podem estar em risco
No processo disciplinar, o Supremo Tribunal concluiu que Fátima Galante ajudava Rangel para que ele pudesse desempenhar outras atividades paralelas, que lhe traziam dinheiro, violando assim o Estatuto dos Juízes. Por outro lado, segundo esse acórdão a que o Observador teve acesso, Galante também recebia dinheiro além ordenado. E às vezes era mesmo ela que o pedia ao advogado Santos Martins, também arguido na Operação Lex e descrito como sendo o testa de ferro de Rangel — embora o juiz justifique os pagamentos que recebia como a liquidação de dívidas antigas, de uma certa altura da sua vida em que lhe emprestou dinheiro.
E o que acontece agora nos processos que tiveram decisões assinadas por Rui Rangel mas escritas, afinal, por outra pessoa? Segundo o artigo 449.º do Código do Processo Penal, qualquer decisão poder ser revista em qualquer altura — “ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida” —, se “uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo”, ou seja, se o magistrado que a fez for condenado por crimes como aqueles de que Rangel está acusado.
Significa isto que caso o juiz, ou mesmo Fátima Galante, sejam condenados, poderão começar a surgir uma série de pedidos de visados nos processos que sintam que não houve segurança jurídica na sua decisão. Será preciso, porém, esperar que a sentença se torne definitiva, depois de todos os recursos possíveis, o que significa que esta possibilidade deverá demorar vários anos.
Na sequência do processo disciplinar, o Supremo Tribunal concluiu que os dois juízes desembargadores violaram os deveres de prossecução do interesse público, de independência e de isenção, além dos deveres de integridade, retidão e probidade inerentes às funç̧ões de magistrado judicial. Já para não tocar em casos em segredo de justiça que Rui Rangel partilhou com Fátima Galante.
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▲ Rui Rangel chegou a concorrer contra Vieira para a presidência do Benfica e até pediu escusa do processo dos No Name Boys
JOSÉ COELHO/LUSA
Nesta década entraram nas contas de Rangel e Galante 270 depósitos em dinheiro
As autoridades acreditam que esta partilha de processos ocorreu entre 2008 e 2018, altura em que nas contas de Rangel e de Galante entraram 270 depósitos em dinheiro, num total de 394.544,53 euros.
Um dos acórdãos sob suspeita faz parte do processo dos No Name Boys. O julgamento deste caso ocorreu em 2010 e dele saíram 13 condenações a penas de prisão efetiva e 16 penas suspensas entre os 38 arguidos. Quando chegou ao tribunal superior, Rui Rangel ainda pediu escusa, por integrar a lista de candidatura à presidência do Benfica. Mas o Supremo Tribunal considerou que devia ser ele a manter-se no processo. O acórdão seria assinado por ele, mas terá sido escrito por Fátima Galante.
Isso mesmo terá acontecido com as reclamações pelo facto de o recurso não ter sido aceite — como uma, em que vota vencido, a explicar que recusou porque estava fora de prazo. Já os colegas consideravam que o recorrente teria apenas que reformular o recurso.
Há também um caso ocorrido em 2014 na A8, na zona de Lousa, quando um condutor que circulava a 100 quilómetros/hora num piso molhado se despistou, capotou e embateu de frente com outro carro. Um dos ocupantes da viatura morreu e uma outra vítima, que sofreu ferimentos graves, descobriu mais tarde, nos exames médicos, que tinha acabado de perder um bebé. O condutor foi acusado de homicídio qualificado e recorreu. A resposta do Tribunal da Relação também terá sido preparada por Fátima Galante, apesar de o caso ter sido entregue a Rui Rangel.