A Rússia poderá nesta quarta-feira falhar um importante pagamento de dívida pública, algo que, a confirmar-se, acontecerá pela primeira vez desde a Revolução Bolchevique, em 1917. São 117 milhões em obrigações em dólares, divisa à qual a Rússia diz não conseguir aceder devido às sanções – apesar do ministro das Finanças russos Anton Siluanov ter dito que enviou os dólares para os bancos norte-americanos onde Moscovo detém as suas reservas faltando saber se irá conseguir pagar com esse dinheiro — e, por isso, até admitiu pagar em rublos ou mesmo em yuans chineses.
Em caso de incumprimento, ficará automaticamente em risco a totalidade dos 150 mil milhões de dólares em dívida que a Rússia tem (em moeda estrangeira) – seria um dos maiores defaults da História financeira. Mas o Ocidente não parece muito preocupado.
Moscovo tem de pagar esta quarta-feira 117 milhões de dólares em juros de cupão de dívida pública (44 milhões numa linha de obrigações e 73 milhões noutra). São duas linhas de obrigações denominadas em dólares – sendo que algumas linhas de obrigações soberanas da Rússia têm cláusulas que preveem a possibilidade de pagar em rublos, mas não é o caso destes títulos que atingem o vencimento nesta quarta-feira.
Rússia tenta evitar default e dá ordem para pagar juros da dívida em dólares
São os primeiros pagamentos de capital ou juros em moeda estrangeira (neste caso, o dólar) desde que houve um decreto presidencial do Kremlin, a 5 de março, em que Vladimir Putin criou uma espécie de regime de exceção no tratamento de credores internacionais que tenham sede num dos países que aplicaram sanções à Rússia.
Com esse decreto, as empresas (e o Estado) passaram a ter de pagar em rublos quando os credores são de “países hostis”. Não se tornou impossível que haja pagamentos na moeda original dos contratos, como o dólar, mas isso só pode acontecer com autorização por parte das autoridades.
O ministro das Finanças português, João Leão, indicou esta terça-feira que um default poderá ocorrer “nas próximas semanas”. E as agências de rating já falam num risco de incumprimento “iminente“. Porém, à semelhança do que aconteceu na recente saga da chinesa Evergrande, os títulos de dívida têm um período de carência máximo de 30 dias – só depois pode ser declarado o default oficial.
Putin garantiu que Moscovo tem todas as intenções de cumprir os pagamentos mas em rublos, porque entende que as sanções aplicadas à Rússia não permitem pagamentos em dólares. Porém, não será exatamente assim – estando em causa a movimentação de dólares, as sanções aplicadas pelos EUA preveem uma exceção que permite transações com pessoas ou entidades nos EUA quando a justificação é que estas “recebam juros, dividendos ou pagamentos de capital associados a instrumentos de dívida ou ações”.
Apesar dessa exceção, a Rússia tem dito estar impossibilitada de pagar a dívida (em dólares) porque os aliados do Ocidente lhe têm aplicado sucessivos pacotes de sanções económicas, que levaram a que mais de metade das suas reservas estrangeiras tenham sido congeladas. Estarão em causa mais de 300 mil milhões de dólares que a Rússia está impedida de movimentar – o dobro daquilo que é a sua dívida total em moeda estrangeira. O ministro das Finanças russo veio esta quarta-feira atirar a bola para o lado dos aliados: “Temos o dinheiro, fizemos o pagamento, agora a bola está do outro lado, em primeiro lugar das autoridades americanas”. Citado pelo Wall Street Journal, Siluanov diz que a Rússia enviou os dólares para os bancos norte-americanos. Mas enquanto o pagamento está a ser processado, não há qualquer confirmação se chegou ou chegará aos credores. Os bancos, acrescenta, estão em contacto com a OFAC (Office of Foreign Assets Control, a entidade que tem como missão controlar a aplicação das sanções), mas se as restrições se mantiverem o ministro das Finanças russo reafirma a alternativa de pagar em rublos.
Ao todo, a Rússia tem o equivalente a cerca de 150 mil milhões de dólares em dívida denominada em moedas estrangeiras. Desses, a maior parte (perto de 120 mil milhões) está precisamente denominada em dólares, com o grosso do restante em euros.
Embora não seja um montante irrelevante, a diretora-geral do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, mostrou ter dúvidas de que a exposição dos bancos e investidores mundiais à dívida russa possa tornar-se um problema grave, já que essa exposição “não é sistemicamente relevante”. Ainda assim, Georgieva reconheceu que um incumprimento russo “deixou de poder considerar-se um evento improvável”.
Fitch diz que pagar rublos não é pagar. Mas alerta que default virá mais cedo
Vários indicadores de mercado corroboram essa avaliação. Os mercados de credit default swaps, uma espécie de instrumentos financeiros que protegem os investidores de incumprimentos em dívida, estão a atribuir uma probabilidade de 70% a que exista um incumprimento na Rússia este ano. A Fitch Ratings vai mais longe e diz que um default é “iminente”.
A agência de notação financeira comentou na terça-feira que se a Rússia tentar pagar em moeda local, o rublo, à luz dos seus critérios isso constituirá “um incumprimento por um Estado soberano”, uma vez cumprido o período de carência de 30 dias. Isso faria com que o default nestes títulos ocorresse em meados de abril.
Por regra, quando um emitente falha um pagamento de uma linha de obrigações, o default automaticamente estende-se a toda a dívida (comparável) desse emitente, pelo que os investidores podem iniciar os procedimentos de recuperação, incluindo processos em tribunal. Porém, pelo menos aos olhos da Fitch, o incumprimento pode ser declarado formalmente ainda antes, a 1 de abril.
Porquê? Porque a 2 de março (dias antes do decreto de Putin), falhou parcialmente o pagamento de um conjunto de títulos de dívida federal russa (OFZ) que são denominados em rublos.
Segundo a Fitch, a informação que existe é que o Ministério das Finanças russo fez o pagamento dos juros relativos aos títulos que são detidos por entidades ligadas ao Tesouro público russo “mas os juros não foram pagos aos investidores estrangeiros, devido a restrições aplicadas pelo Banco Central da Rússia”, isto é, as medidas de controlo de capitais.
Mesmo salientando a Fitch que não tem qualquer “documentação que confirme a existência de qualquer período de carência” neste tipo de títulos, a agência estabelece ainda assim que a Federação Russa tem 30 dias (a contar de 2 de março) para “curar” este pagamento que estará em falta. Daí que 1 de abril seja, já, uma data importante a ter em conta.
Primeiro incumprimento (com moeda estrangeira) desde 1918?
Às 11h45 desta quarta-feira, hora de Lisboa, a agência Bloomberg noticiou que os detentores de algumas destas obrigações em dólares ainda não tinham recebido qualquer pagamento. E às 12h15 a agência RIA citou declarações de autoridades russas a avisar que esses pagamentos podem não chegar aos detentores dos títulos. Depois do fecho da sessão bolsista na Europa veio nova confirmação, dada por duas fontes à Bloomberg: ninguém parece ter recebido qualquer notificação de pagamento.
A última vez que a Rússia incumpriu com o pagamento de dívidas em moeda local foi na crise de 1998 mas é preciso recuar até 1918 para encontrar a última vez que o país não pagou dívida denominada em moeda estrangeira – foi logo após a revolução bolchevique de 1917, cujos protagonistas não reconheceram as dívidas do czar.
A intenção do Kremlin é, mesmo, ao que tudo indica fazer o pagamento em rublos (à cotação cambial do dia do pagamento, o que é relevante tendo em conta a desvalorização brusca da moeda russa nas últimas semanas). Mas numa declaração carregada de simbolismo geopolítico, o ministro das Finanças, Anton Siluanov, deu a entender nos últimos dias que a Rússia poderia recorrer às suas reservas de moeda chinesa – o yuan – para fazer os pagamentos.
Moscovo acusa o Ocidente de tentar “engendrar um default artificial”, sem justificação económica. Isto porque ao longo dos últimos anos, a Rússia consolidou a sua posição como um país relativamente pouco endividado, com volumosas reservas de moeda estrangeira espalhadas pelos quatro cantos do mundo – mais de 600 mil milhões de dólares, mais de metade dos quais agora inacessíveis.
Esse “fortalecimento da Rússia” foi a estratégia de Putin sobretudo desde 2014, quando foram aplicadas sanções (suaves) após a anexação da Crimeia. Antes deste conflito na Ucrânia, a Rússia tinha um endividamento de uns meros 13% do PIB (dados de 2021) e a dívida externa total rondava o equivalente a apenas 150 mil milhões de dólares – menos do que a dívida externa líquida de Portugal.
Quase um terço desta dívida é detida pelo próprio estado federal e boa parte do restante nas mãos dos bancos russos. O restante está nos balanços de investidores institucionais como fundos de pensões, fundos de cobertura de risco (hedge funds) e empresas, incluindo bancos.
Um exemplo? O Novo Banco tem, como o Observador noticiou a 28 de fevereiro, mais de 10 milhões de euros em dívida da Gazprom da qual se tentou desfazer mas não conseguiu, dada a enorme aversão a tudo o que é ativos russos que existe nas últimas semanas nos mercados financeiros.
Questionado na conferência de imprensa da semana passada, o presidente do banco, António Ramalho, recusou dar mais detalhes sobre essa exposição à Gazprom nem confirmou se o Novo Banco tem exposição a outras empresas russas.
Novo Banco “entalado” com dívida da petrolífera russa Gazprom
Segundo a Bloomberg, as grandes gestoras de ativos mundiais como a BlackRock e a Pimco já estão a preparar-se para “danos financeiros iminentes”. Os fundos da BlackRock com exposição à Rússia perderam 90% do seu valor logo após a invasão e os clientes têm menos de mil milhões de dólares investidos nesses fundos, quando no final de janeiro eram cerca de 18 mil milhões.
As gestoras Fidelity e Capital Group também estarão entre os principais detentores de dívida russa, além da gestora norte-americana Franklin Resources, que logo a 28 de fevereiro reconheceu uma imparidade sobre mais de metade da sua exposição à Rússia.
A exposição de um dos fundos da Franklin à Rússia era de 484 milhões de dólares (1,2% dos seus ativos totais) e a gestora ajustou o valor para menos de metade, no seu balanço, para 194 milhões. A dúvida é se mesmo essa valorização não será, em todo o caso, elevada, tendo em conta a forte depreciação dos ativos russos à medida que o conflito se arrasta e as sanções se acumulam.
Toda a gente tem dívida russa (e isso é uma coisa boa)
Mas não serão apenas estes grandes investidores que terão exposição a títulos do país. Tendo em conta que até há poucas semanas a dívida pública e as empresas russas tinham rating de qualidade, a exposição será bastante generalizada, mesmo por parte de fundos que apenas investem em quantias pequenas, replicando índices globais de obrigações onde a Rússia estava incluída até há bem pouco tempo.
Será por esta razão que a líder do FMI considera que não haverá um “efeito sistémico”. O valor que os investidores arriscam perder com a exposição à Rússia não é pequeno, porém, o facto de as obrigações terem tido sempre rating de qualidade (até recentemente) pode limitar o impacto sistémico já que os títulos estão bem distribuídos por um grande número de investidores – incluindo investidores mais cautelosos que terão esses títulos em carteiras diversificadas.
O problema é que não houve tempo para reduzir a exposição. “Quando um incumprimento é como um acidente de comboio em câmara lenta, após anos de políticas erradas, é possível reduzir o impacto económico e as perdas – através da redução progressiva da exposição”, explica Siobhan Morden, analista da Amherst Pierpoint, citada pela Bloomberg. “O que torna esta crise única é que foi um choque repentino que apanhou toda a gente desprevenida”, acrescenta a especialista.
As fortes subidas nas bolsas europeias esta quarta-feira são a maior prova de que este “default iminente” não está a criar stress nos mercados financeiros – embora parte da explicação para isso possa estar no período de carência de 30 dias que estes títulos têm associado.
“Trinta dias significam que ainda existe algum tempo para que seja negociado um fim para a guerra, pelo que não acredito que este momento [a data de reembolso destes títulos de dívida] traga um aumento significativo da instabilidade no sistema financeiro”, disse o influente Jim Reid, responsável global do Deutsche Bank pela estratégia de investimento em obrigações. “Ainda assim, claramente isto é uma história importante para mantermos debaixo de olho”, reconheceu.
Porém, mesmo que o otimismo de Jim Reid se confirme e o conflito seja resolvido sem que a Rússia entre em default, a expectativa é que o investimento estrangeiro no país e em ativos russos vai ser muito escasso nos próximos anos – o que também poderá depender da continuidade, ou não, do regime de Putin. Timothy Ash, analista da BlueBay Asset Management, diz que este conflito “alterou a narrativa em torno da Rússia e afetou a disponibilidade dos investidores de apostarem no país mesmo no longo prazo”.
“Os danos que estão a ser causados na economia russa vão ser sentidos no longo prazo – e não penso que vá recuperar” rapidamente, afirmou o especialista, na CNBC, lembrando as inúmeras empresas que saíram do país e que não irão voltar de um momento para o outro, mesmo assumindo as hipóteses mais benignas para a forma como o conflito irá evoluir. Timothy Ash diz que “a Rússia vai tornar-se um caso de investimento muito difícil, durante muito tempo, a menos que vejamos mudanças políticas significativas em Moscovo”.