Não. Qualquer “não” está carregado de negatividade. “Não isto”, “não aquilo”. Não corras dentro de casa, não comas chocolates uns atrás dos outros, não bebas demais, não isto e não aquilo. É um fartote de nões, armadilhas infinitas de proibições e barreiras psicológicas para tudo e mais alguma coisa. Pois bem, o “não” ganha um novo élan em 1995, ano em que a editora Companhia das Letras lança Estrela Solitária, a biografia de Garrincha escrita pelo prodigioso Ruy Castro, já então autor dos estimulantes Chega de Saudade: A história e as histórias da Bossa Nova (1990) e O Anjo Pornográfico: A vida de Nélson Rodrigues (1992).
Para o Estrela Solitária, Ruy Castro faz mais de 500 entrevistas com 170 pessoas. Números avassaladores, de competência maiúscula e leitura obrigatória. Ao longo das 522 páginas, o dia a dia de Garrincha é revisitado como se o estivéssemos a viver no aqui-agora. É incrível a maneira como Ruy Castro nos entrega de corpo e alma à realidade pobre de Pau Grande, terra-natal de Garrincha, e depois à loucura citadina do Rio de Janeiro, onde joga o Botafogo, clube de quase toda uma vida do craque mais sensacional do futebol brasileiro.
Sim, claro, há Pelé e Djalma Santos, mais tarde Rivellino e Tostão, depois Sócrates e Zico, ainda Cafu e Ronaldo. Só que Garrincha tem um peso acrescido pela vida a mil à hora, sem pés nem cabeça. Se quantificarmos o mediatismo, Garrincha rebenta a escala de Richter. Na boa. Aliás, quem não conheça Garrincha de todo, lê o Estrela Solitária e das duas uma: ou o livro é de ficção ou é um romance. Seja qual for, o autor tem o dom da criatividade elevado ao cubo. Só que não. Lá está, a palavra não.
Não. O Estrela Solitária começa com um não. E bem. Afinal, Garrincha é tudo aquilo, é ficção romanceada de fio a pavio. É um herói tragicamente humano. A Tinta da China reedita a obra e facilita-nos a conversa por email com o autor. “Xará, estou às ordens”. É o ponto de partida para 11 perguntas. Onze, o número de futebol por excelência.
Que outro futebolista dos nossos dias dava um herói e um livro como Garrincha?
Há vários grandes jogadores brasileiros que, um dia, renderão biografias fascinantes, melhores do que as que já se escreveram sobre eles. Alguns: Zico, Sócrates, Ronaldo Fenómeno. E, naturalmente, Pelé.
Gostava de escrever sobre que outros jogadores?
Sinceramente, nenhum. Procuro não repetir géneros. Já biografei um dramaturgo (Nelson Rodrigues), um jogador de futebol (Garrincha) e uma cantora (Carmen Miranda). Cada qual foi um mergulho num universo diferente. Não será o caso, mas, se houver um próximo biografado, ele terá de ser algo como um ventríloquo, um escafandrista ou um político brasileiro.
Pior do que a miopia propriamente dita, é a miopia mental, certo? Acha que Freud foi um bom “oftalmologista da alma”?
Não faço ideia. Nunca fui psicanalisado — estava muito ocupado vivendo.
Futebol = patrocínios = direitos televisivos = contratos milionários = publicidade direta e encapotada: o mundo em que vivemos tornou mais difícil escrever sobre o futebol, ou, pelo contrário, reforçou a veia crítica do cronista?
Acho que reforçou. Tirou o lado, digamos assim, “humano” do futebol [os jogadores do passado eram de uma pobreza fabulosamente romântica], mas, por outro, jogou o esporte numa teia de conspirações envolvendo economia, política, sexo e até esporte. Ruim para o futebol, mas bom para o cronista.
Como é que vê futebol: vai ao estádio? Veste a camisola? Vê na televisão? Continua a ter o rádio de pilhas por perto?
Há alguns anos, tornei-me membro da gigantesca torcida Fla-Sofá — a que assiste aos jogos do Flamengo pela televisão. Somos, por baixo, uns 35 ou 36 milhões. Assisto até ao básquete do Flamengo, por sinal ótimo. A camisola, evito vestir — não se deve conspurcar a camisola do nosso clube com uma barriga indecente.
O romancista e o cronista convivem desportivamente dentro de si?
Não sei, não sou romancista. Escrevo biografias e livros de reconstituição histórica, em que a matéria-prima é a informação. Cometi dois romances, por sinal muito bem recebidos e já editados em Portugal, Bilac vê estrelas e Era no tempo do Rei, mas eram trabalhos de um biógrafo em férias. Além disso, sendo casado com uma superficcionista, Heloisa Seixas, prefiro limitar-me à minha sola de sapateiro.
Há uma guerra interior de sentimentos da sua parte no momento em que descobre a falácia dos laterais joões ou da pressão em cima de Feola para o Brasil-URSS no Mundial-58?
Guerra, nenhuma. Na verdade, adoro quando isso acontece. O biógrafo ou historiador não deve ser um revisionista fanático, mas é esse tipo de revelação que justifica produzir uma biografia.
Ainda se lembra da vez em que conheceu Garrincha futebolista e Garrincha pessoa?
Tomei conhecimento de Garrincha pelo rádio e pelos jornais assim que ele começou no Botafogo, em 1953. Eu tinha cinco anos, mas já estava atento… Depois, assim como todo o Brasil, acompanhei-o empolgado na Copa do Mundo de 1958. Mas só o vi jogar no estádio alguns meses depois, em novembro daquele ano, num jogo Flamengo x Botafogo. Depois vi-o várias vezes, sempre em jogos contra o Flamengo. Era eletrizante, mesmo quando destroçava o nosso time. Pessoalmente, vi-o uma única vez, talvez em 1967, quando eu era repórter de um jornal e ele estava presente num evento que, aliás, não tinha nada a ver com ele. Mas não fui procurá-lo para perguntar o que estava fazendo ali — Garrincha, nesta época, não tinha mais importância nenhuma.
Quais são as suas memórias mais fortes de infância relacionadas com futebol? (flamengo e não só)
Inúmeros jogos do Flamengo e alguns da seleção brasileira, principalmente a das Copas de 1958 e 1970.
Fala sério, com tanta pesquisa para os seus livros, você mora na Biblioteca Nacional do Rio, não mora?
Entre 1991 e 1992, para preparar o livro sobre Nelson Rodrigues, realmente quase me mudei para lá. Para o livro sobre Garrincha, também. É um ambiente maravilhoso. Mas, desde então, de certa forma a abandonei. Na verdade, mudei-me para a minha própria biblioteca nacional, que é o acervo que mantenho em meu apartamento. Além disso, o acervo da Biblioteca Nacional está hoje quase todo digitalizado e pode ser acessado sem que se saia de casa…
Quantos elos de ligação há entre as figuras Garrincha e Carmen Miranda?
Para mim, muitos. Os dois estavam quase esquecidos no Brasil quando resolvi biografá-los — imaginava que havia muito mais na vida deles do que o que às vezes se publicava. E tinha razão. Os dois foram génios, cada qual em sua especialidade, mas não tinham noção dessa genialidade.
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(pergunta suplente) Quando é que vem a Portugal? Já conhece muitas cidades daqui?
Se conheço? Fui pela primeira vez a Portugal em 1967 — ganhei um prémio literário aqui no Brasil, e o prémio era um curso de Língua e Literatura Portuguesa na universidade de Coimbra. Tinha 19 anos. Depois, trabalhei em Lisboa de 1973 a 1975 — era editor-executivo da Selecções do Reader’s Digest –, donde estava aí no 25 de Abril. Morava em Campo de Ourique com minha mulher e uma filha, e outra filha, Bianca, nasceu poucos meses depois. Voltamos para o Rio em fins de 1975, mas, depois disso, fui a Lisboa pelo menos umas dez ou quinze vezes. De alguns anos para cá, tenho ido todos os anos, inclusive por causa de Bianca, que se mudou para aí em 2001, e por meus dois queridos netos lisboetas, João Ruy e Teresa. Este ano, por acaso, não vou — mas meus livros estão aí para me representar.