Salvador Malheiro, vice de Rui Rio no PSD e presidente da Câmara Municipal de Ovar, alugou recentemente um carro de luxo por mais de 2000 euros mensais. O Lexus LS500h, com um ano e meio e avaliado em cerca de 75 mil euros, está ao serviço da autarquia, pelo menos, desde novembro do ano passado (ainda que o contrato só tenha ficado fechado em fevereiro, de acordo com a autarquia). Mas o Observador sabe que o carro de serviço do município tem sido utilizado pelo autarca nas constantes deslocações a Lisboa para tratar de assuntos da direção do partido. Nos últimos dias, já depois de o carro ter ficado estacionado na sede do PSD, Malheiro tomou precauções para não ser visto em Lisboa ao volante do Lexus — ao ponto de estacionar a algumas centenas de metros da São Caetano à Lapa e apanhar boleia noutro carro, mais modesto, no resto do trajeto.
Nos últimos dois meses e meio, Salvador Malheiro — o homem que ajudou Rui Rio a chegar à liderança do PSD, que já esteve ligado a casos de caciques em Ovar e que viu o Ministério Público abrir uma investigação aos negócios entre a câmara, os clubes da região e uma empresa de relvados artificiais —, tem multiplicado quilómetros entre Ovar, Porto, Lisboa, Setúbal, Évora e outros locais, sempre em deslocações com alguma envolvência partidária. Em pelo menos cinco situações que o Observador identificou, o autarca viajou no novo carro da câmara para participar em eventos do PSD — e pode, por isso, ter incorrido no crime de peculato de uso.
O Observador cruzou as faturas de abastecimento do Lexus, pagas com o cartão Galp Frota da Câmara Municipal de Ovar — em diferentes estações de serviço, em vários dias e em vários momentos do dia — com as ações partidárias em que Salvador Malheiro participou nos últimos dois meses e meio: desde a missa em homenagem a Francisco Sá Carneiro a reuniões do PSD, de visitas ao Palácio de Belém enquanto vice de Rio a deslocações a Borba, ao local da tragédia onde cinco pessoas morreram em dezembro. São muitos quilómetros ao volante de um carro pago pelo município, mas que tem sido usado pelo dirigente do PSD para participar em ações do partido, como braço-direito de Rui Rio.
Mas o Observador não cruzou apenas os documentos entregues na autarquia com os registos públicos das deslocações de Malheiro. Na última quinta-feira, dia em que Rui Rio formalizou o eurodeputado Paulo Rangel como cabeça de lista do PSD às europeias, verificámos de perto a forma como o também presidente da Câmara de Ovar simulou uma chegada à sede do partido à boleia de outro carro para ocultar mais uma dessas deslocações no Lexus.
Malheiro garante que todas as deslocações tiveram cariz autárquico. Em resposta por escrito às questões do Observador, a diretora do departamento administrativo, jurídico e financeiro, Susana Pinto, garante que cada um dos casos apresentados (ver cada um deles mais abaixo) estão abrangidos pelo “exercício das funções que estão cometidas ao senhor presidente da Câmara Municipal, nomeadamente em matéria de representação política, a par da participação em várias reuniões de trabalho e sessões públicas e privadas, com diferentes entidades e organismos“. Sem registo público dessas reuniões ou das entidades com que Malheiro esteve envolvido, o Observador insistiu e pediu dados concretos. A autarquia recusou-se a prestar mais esclarecimentos. Mas as primeiras respostas já tinham deixado pontas soltas. Já lá vamos.
Malheiro vai à sede, mas troca de carro antes de chegar
Esta quinta-feira, Salvador Malheiro chegou à São Caetano à Lapa quando faltavam 17 minutos para as duas da tarde. Uma fonte garantia ao Observador que o autarca tinha saído de Ovar com o seu novo Lexus, depois de participar numa reunião de câmara. No entanto, quando o autarca chegou à sede do partido, acompanhado do seu homem de terreno, Henrique Araújo, nem sinal do carro. Vinham num utilitário, um Volkswagen Up! preto, que parou ao lado do portão verde, tocaram à campainha e entraram.
O dia era importante para o PSD. Estava marcada uma reunião do núcleo restrito de Rui Rio (a Comissão Permanente), havia ainda uma reunião da Comissão Política Nacional para discutir as europeias e, ao final da tarde, Paulo Rangel seria apresentado como cabeça-de-lista às eleições de maio. Salvador só saiu da sede social-democrata mais de cinco horas depois de ali ter entrado, já depois da conferência de imprensa que juntou Rangel e Rio. Salvador Malheiro partiu como chegou, à boleia, mas agora noutro carro. Os portões verdes voltaram a abrir-se e um Jaguar arrancou São Caetano acima. Malheiro e Araújo seguiam no banco de trás.
Apesar da hora — poucos minutos antes das sete da tarde —, não havia trânsito em Lisboa e a viagem de cerca de 800 metros durou menos de cinco minutos. De forma inesperada, as luzes vermelhas dos travões do Jaguar acenderam-se em frente ao Jardim da Estrela. O carro parou e Malheiro e Araújo saíram. De pasta preta na mão esquerda, cigarro entre os dedos da mão direita, o autarca e o seu adjunto cruzam a estrada, em direção a uma lateral da Basílica da Estrela, para desaparecerem no interior de um parque de estacionamento, ao fundo da rua.
Dez minutos depois, dois faróis brancos sinalizam a saída iminente da viatura. Henrique Araújo vinha ao volante, Salvador Malheiro seguia à pendura. Era ali que estava, afinal, estacionado o Lexus. Viraram à esquerda, passaram em frente à Basílica e seguiram viagem.
Porto-Lisboa-Évora-Setúbal-Ovar: as voltas do Lexus
O caso desta quinta-feira foi apenas o último de uma série de episódios que envolvem Malheiro e o seu novo carro. Entre 4 de novembro do ano passado e 7 de fevereiro deste ano, o Observador contou quatro momentos em que Salvador Malheiro se deslocou a eventos do PSD ao volante do Lexus. E chegou às faturas que comprovam o reabastecimento do carro da câmara de Ovar nessas deslocações. Só nessas quatro viagens ao serviço do PSD, o autarca percorre quase 2000 quilómetros com o carro do município.
Na manhã de 4 de dezembro, o PSD assinalava os 38 anos sobre a morte de Francisco Sá Carneiro. Exatamente às 9h30, na área de serviço da Galp em Aveiro, são pagos 67,74 litros de gasolina simples 95 com o cartão Galp Frota da Câmara Municipal de Ovar. No documento, ficou registada a matrícula do carro abastecido: 68-TU-21, a matrícula do Lexus LS500h.
Pouco depois, ainda nessa manhã, Salvador Malheiro é filmado à porta da Basílica da Estrela ao lado de Rui Rio, Marcelo Rebelo de Sousa e outras figuras do PSD e do CDS. Estavam ali para a missa em memória do fundador social-democrata.
Nessa mesma noite, os conselheiros nacionais do partido ainda teriam de viajar até Setúbal para uma reunião daquele órgão. Nesse encontro, no Novotel, Salvador está sentado na primeira fila, de frente para uma sala repleta de militantes, mesmo à esquerda do presidente do partido. Luís Montenegro ainda não tinha lançado o desafio à liderança — isso só aconteceria em janeiro —, mas o PSD já estava em ebulição e o rosto de Nuno Morais Sarmento ficaria como registo dessa noite, ao pedir aos sociais-democratas que unissem “todas as forças numa única direção”.
Eram 3h35 da manhã de dia 5 de dezembro, quarta-feira, quando fica registado um novo reabastecimento. Na área de serviço de Pombal, sentido sul/norte, são abastecidos mais 52,15 litros de gasolina no Lexus. Num intervalo de 18 horas, são gastos mais de 170 euros em combustível, pagos integralmente com o Cartão Frota 708257595526006314, da Câmara Municipal de Ovar.
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Poucas horas depois, o presidente da câmara de Ovar assina a escritura da compra de um edifício à Igreja Evangélica do concelho, mas haveria de voltar a Lisboa logo no dia 6 de dezembro, para participar numa reunião da direção do PSD com o Presidente da República, no Palácio de Belém.
Quarta-feira, 19 de dezembro. Um mês depois da tragédia, Rui Rio está em Borba para visitar o troço da Estrada Nacional 255 junto a uma pedreira que tinha abatido. Cinco pessoas morreram. A meio dessa tarde, numa estação de serviço da Galp na zona sul de Évora é registado novo abastecimento do Lexus. São mais quase 70 litros.
Chega o ano novo e a situação no PSD agudiza-se. A 9 de janeiro, aos microfones da TSF, Luís Montenegro defendeu que o PSD tinha de “mudar”. E deixa a pista: “Assim” — entenda-se, com Rio aos comandos —, o PSD “não se vai conseguir afirmar”. A concretização viria dois dias mais tarde, ao formalizar-se o desafio à liderança para a convocação de eleições diretas. Na madrugada de dia 10 (exatamente às 1h58), já o núcleo duro de Rui Rio discutia cenários e projetava os caminhos a seguir a partir dali, mais um abastecimento na estação de serviço de Aveiro, poucos quilómetros antes de chegar a Ovar.
A convulsão interna culmina na madrugada de 18 de janeiro, por volta das três horas da manhã, quando o Conselho Nacional, reunido no hotel Porto Palace, aprova a moção de confiança apresentada pelo presidente do PSD por uma diferença de 25 votos (75 a favor, 50 contra). Várias horas depois, já ao final dessa noite, há registo de uma paragem técnica em Torres Vedras, onde são injetados quase 47 litros. A fatura regista o mesmo combustível, a mesma matrícula, o mesmo modo de pagamento e o mesmo cartão. O Observador não conseguiu apurar o destino nem o propósito desta viagem para sul.
Certo é que a presença de Salvador Malheiro em eventos do PSD, na qualidade de vice-presidente do partido, e os registos documentais a que o Observador teve acesso mostram que o autarca usou meios que estavam ao serviço da Câmara Municipal de Ovar para atividades que nada tinham a ver com o município. Nada prova que a totalidade do combustível tenha sido gasta em proveito do partido, mas fica claro que são usados bens públicos para fins partidários. A presença na São Caetano à Lapa, na última quinta-feira, e a forma como Malheiro deixou o Lexus na garagem anexa à Basílica da Estrela e seguiu de boleia até ao destino, é o último exemplo dessa prática.
Malheiro confirma deslocações partidárias. Respostas mostram contradições
Nas questões que colocou ao gabinete do presidente da Câmara Municipal de Ovar, o Observador pediu esclarecimentos sobre estas deslocações e sobre os contornos do aluguer do Lexus. Além da justificação para a utilização do carro em eventos do PSD, pretendia-se perceber a partir de que momento a autarquia começou a usar oficialmente o carro, uma vez que já em novembro estavam a ser pagos abastecimentos quando, de acordo com o autarca, só no final de dezembro teria sido tomada a decisão de concretizar o aluguer. As respostas deixam mais dúvidas por esclarecer.
O gabinete jurídico da autarquia assegura que as deslocações estavam abrangidas pelo exercício das funções como autarca. “A viatura Lexus é usada pelo senhor presidente da Câmara Municipal de Ovar, no exercício das suas funções autárquicas”, diz a responsável do gabinete jurídico. Também refere que o contrato de locação foi formalizado a 1 de fevereiro de 2019. No entanto, o Observador sabe que, logo no início de janeiro, a autarquia já tinha contratualizado o seguro do carro, com efeitos a partir do dia 3, o que significa que — a julgar pelas respostas apresentadas — um mês antes de estar garantido o contrato já a autarquia assegurava o pagamento do seguro de um carro sobre o qual não tinha ainda responsabilidades formais.
Nas mesmas respostas, a Câmara de Ovar refere que a utilização do Lexus antes de o contrato ser assinado — e que se prolongou, pelo menos, por dois meses e meio — foi feita a título “gratuito”, portanto, sem custos para o município. “A viatura Lexus foi cedida, a título gratuito, no final do ano passado, pela sua proprietária, a sociedade Caetano Renting, SA, enquanto veículo usado de cortesia — prática comercial habitual — para experimentação ou teste pelo senhor presidente da Câmara Municipal”, referem os esclarecimentos prestados. O período de “teste” era gratuito, e por cortesia, mas ainda antes de assinar contrato o município já pagava o seguro.
Mesmo não sendo totalmente claras, as respostas da Câmara deixam perceber que Salvador Malheiro usou, de facto, o carro para fins partidários. A autarquia não esclarece os contornos das viagens ao Porto, a Évora ou a Setúbal com que o autarca foi confrontado, mas levanta o véu sobre as presenças na capital. “Face ao elenco de reuniões em Lisboa, de natureza partidária, esclarece-se que as deslocações à capital do país são sempre programadas de forma a acautelar a realização do maior número de reuniões passíveis de ser concretizadas, no mesmo dia, evitando-se deslocações exclusivamente para fins partidários ou para o tratamento de assuntos enquanto autarca social democrata, inerentes ao exercício de funções de natureza política”, diz o gabinete jurídico.
Ou seja, para justificar deslocações a Lisboa para tratar de assuntos do PSD, Salvador Malheiro organizava — alegadamente — encontros de cariz autárquico. Que encontros? Com que interlocutores? Para discutir que assuntos? Nem uma linha, apesar da insistência do Observador para obter esse esclarecimento. E apesar da suposta abertura, num primeiro momento, para a “prestação de outras informações que sejam consideradas necessárias ou adequadas”.
O tumulto em Ovar e as justificações de Malheiro
A primeira vez que o Observador soube da nova aquisição da Câmara Municipal de Ovar, em regime de aluguer, foi a 25 de janeiro. Nesse momento começava a correr nas redes sociais uma fotografia do Lexus, estacionado junto ao edifício da autarquia.
Nas últimas semanas de janeiro e no início de fevereiro, o autarca e dirigente do PSD terá sentido a pressão local e no dia 4 de fevereiro, Salvador Malheiro recorre à sua conta no Facebook para se referir publicamente, pela primeira vez (tanto quanto o Observador conseguiu apurar) ao caso que estava a dominar as conversas em Ovar. A justificação para a aquisição do veículo são os “desafios da descarbonização e da economia circular”.
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Malheiro escreve que para “renovar” a frota automóvel “para a presidência e vereação”, o município tinha decidido alugar, “em vez de comprar”, um carro híbrido “extremamente seguro e confortável com mais de um ano” a uma “empresa com enorme história e tradição em Ovar”, o grupo Salvador Caetano. O texto pretendia evidenciar a “preocupação” da autarquia com a “transição energética” e, ao mesmo tempo, “esclarecer e colocar fim a toda a especulação em torno do Lexus da Câmara”.
Politicamente, os adversários de Salvador Malheiro começaram a explorar — ainda que discretamente — o tema. No dia seguinte à publicação do esclarecimento, e forçado a “sair do silêncio”, um dos vereadores do PS na câmara de Ovar opta pela mesma rede social para dizer que o assunto “nunca foi tema debatido em reunião de câmara” e que os socialistas eleitos para a autarquia desconheciam “os contornos do negócio”. Artur Duarte deixa claro que “esta foi uma decisão única e exclusiva do executivo em permanência”.
A crítica vem em modo suave. A marca, o recurso ao grupo Salvador Caetano, a opção pelo aluguer (e não pela compra) e até os argumentos ambientais são aceites pelo socialista. O único ponto em cima da mesa seria perceber se “não haveria outras alternativas que, quiçá, não dessem tanto nas vistas, ou fizessem sentir um pouquinho mais as más condições das ruas do município, mas que fossem mais económicas“.
Horas depois, é Fernando Camelo de Almeida, do CDS, quem também aborda o tema. O centrista, com lugar na Assembleia Municipal de Ovar, reage depois de perceber que o Lexus não era “uma viatura pessoal”. Exige saber “o custo mensal do aluguer”, aponta à “argumentação infeliz” usada pelo autarca para justificar a opção e desmonta os argumentos ambientais apresentados por Salvador Malheiro, ao defender que “o novo Lexus tem emissões de CO2 superiores ao ‘velhinho’ Volvo com 6 anos”, o carro de serviço usado até novembro do ano passado, mas que agora está parado.
De acordo com os dados do fabricante de ambos os carros, a verdade é que o Lexus tem, de facto, uma pegada ecológica mais pesada que o Volvo dispensado por Malheiro: emissões de 161gramas de CO2 do Lexus contra os 154gramas do Volvo.
Os casos de outros carros e de outros presidentes
O crime de peculato de uso está previsto na lista de “Crimes de Responsabilidade dos Titulares de Cargos Políticos”. No artigo 29º da lei estão listados os cargos políticos sob os quais pesam efeitos acessórios. Entre esses cargos está o de “membro de órgão representativo de autarquia local”. Traduzindo, se um presidente de câmara for condenado por este ou outros crimes dessa lista, a consequência pode ser o seu afastamento da autarquia.
É o risco que corre Luís Mourinha, acusado em julho do ano passado do crime de peculato de uso. O presidente da Câmara Municipal de Estremoz, eleito por um movimento independente, foi alvo de um processo do Ministério Público por ter feito “uso de viatura que lhe estava afeta enquanto presidente de câmara e responsável concelhio da proteção civil para realizar várias viagens de lazer e cariz particular e em proveito próprio e em prejuízo do município”.
Mourinha é acusado de ter usado o carro da autarquia para viajar até Lisboa e, a convite da Caixa Geral de Depósitos, assistir a cinco jogos do Benfica no Estádio da Luz.
Em outubro, o visado foi o presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira. Sem arguidos constituídos, no inquérito que o MP abriu, depois de receber uma queixa dos vereadores socialistas do município, estavam em causa deslocações a locais de voto durante eleições locais e, noutro âmbito, uma viagem a Lisboa para participar no 37º Congresso do PSD.