Quase dispensam apresentações: Mundo Segundo (Edmundo Silva) e Sam the Kid (Samuel Mira) são dois dos mais históricos intervenientes e impulsionadores do hip hop português, dois dos rappers e produtores musicais cujas rimas e batidas (o primeiro a solo e no grupo Dealema, o segundo a solo e no grupo Orelha Negra) os fãs mais acérrimos do géneros têm na ponta da língua e na memória.
Com os primeiros trabalhos lançados em 1996/2003 e 1998, respetivamente os anos em que os Dealema lançaram o primeiro EP e álbum e Sam the Kid lançou Entre(tanto), os músicos de Chelas (Sam the Kid) e Vila Nova de Gaia (Mundo Segundo) assinaram na última década e meia alguns dos grandes êxitos do rap nacional, de “Poetas de Karaoke” a “Escola dos 90”.
O sucesso e impacto, somado à influência que tiveram nos seus pares — Sam the Kid pela música, pelas colaborações e pelo canal dedicado ao género que recentemente lançou, TV Chelas e Mundo Segundo pela música, pelo programa de rádio que vai mantendo na Rádio Nova Era e por ter feito do “2º piso” de sua casa a grande universidade do rap do Porto –, fazem do duo (que recentemente juntou-se para um projeto musical conjunto) conhecedor ímpar do hip hop português. Na hora de documentar a história deste género musical, há que falar com eles.
Foi isso que fizeram as duplas Francisco Noronha & Catarina David e António Freitas & Fábio Silva, responsáveis respetivamente pelos documentários “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” e “Hip to da Hop”. O primeiro conta a história evolutiva do rap do Porto (e com ele a da cidade), com entrevistas e material de arquivo inédito, o segundo propõe-se contar a história da evolução do movimento em Portugal destacando as suas vários vertentes (do graffiti ao breakdance e DJing).
Os dois filmes nacionais tiveram participação de Sam the Kid e Mundo Segundo e serão exibidos nos próximos dias na 15ª edição do festival IndieLisboa, “Hip to da Hop” já este sábado, dia 28, e “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” na quinta-feira, 3, às 18h30, (ambos na sala Manoel de Oliveira, do Cinema São Jorge). A exibição dos filmes motivou uma grande entrevista com a dupla, que recordou ao Observador algumas memórias de episódios vividos desde que o hip hop se impôs em Portugal (em meados dos anos 1990), falou do seu papel nesta sub-cultura (a quem deixaram juras de amor) e comentou ainda a afirmação polémica de Rui Veloso de que o hip hop “não é música”. Eis a resposta de Sam the Kid: “É música e ele sabe disso. Ao dizer isso parece que voltámos atrás no tempo 20 anos (…) Mas para ser sincero não me chocou vindo de quem vem”.
Vão agora estrear dois documentários sobre a história do hip hop português no Indie Lisboa. Ambos participam nos documentários como entrevistados. O que é que sentiram a reviver a história deste movimento que ajudaram a construir?
Sam the Kid (STK) – Durante estes anos todos, já houve várias tentativas de fazer documentários e coisas do géneros sobre esta cultura, cada um com o seu ângulo — uns mais históricos, outros mais concretos sobre certos estilos de hip hop. Naquele que é mais baseado no hip hop do norte (“Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes”), eu nem precisei de dizer nada porque senti logo que é feito por alguém que sabe o que é que está a fazer. Não menosprezando o outro mas lembro-me de ter uma conversa com eles [autores do “Hip to da Hop”] a dizer: por favor, façam isto como deve ser e não sejam mais uns daqueles realizadores que inicialmente têm uma ideia e depois deslumbram-se quando entram num bairro e desviam o tema central, partem para uma coisa que é quase National Geographic, que é “a vida nos bairros” e depois o hip hop fica secundário.
A mim já me aconteceu ficar de fora de dois documentários em que eu inicialmente é que sugeri as pessoas com quem os autores deviam falar e depois fiquei de fora porque se calhar não era suficientemente exótico ou não tinha uma casa a cair aos bocados para poderem explorar um lado mais sensacionalista. Isso já me aconteceu e devido a esse tipo de desilusões tive essa conversa com as pessoas do documentário “Hip to da hop”. Mas rapidamente senti que eles estavam a fazer um bom trabalho. Eu pessoalmente ainda não vi nenhum dos documentários mas a minha intervenção em ambos é de ‘talking head’, é uma cabeça a falar daquilo que eu sei, da minha história. Não tendo visto nenhum dos dois, gostaria de além de ver cabeças a falar também ver pessoas em ação, a fazer o que sabem fazer. Porque a conversa é muito interessante, pode abrir a mente mas às vezes em termos cinematográficos e de filme o que fica na memória é mesmo a música que alguém compôs, o beatbox, o improviso que alguém faz. Além das conversas sobre a história também é importante ver as pessoas do hip hop, sejam mais antigas ou mais novas, fazer hip hop.
No documentário “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” há muitas imagens de arquivo: de noites, concertos, momentos no Segundo Piso [divisão na casa de Mundo Segundo onde os amantes do rap do Porto se juntavam — “nave mãe de batidas e improviso”, assim a descrevia M. S. na mixtape Mundo Segundo Vol.] festas no Cómix…
STK – Pois, altamente! Era isso que queria dizer, acho que para ficar tudo bem e para não ficar chato é bom que essas imagens surjam para alternar e ilustrar um pouco o que se está a falar.
https://www.facebook.com/MundoSegundo/photos/a.272722912866292.1073741828.272719639533286/1047889135349662/?type=3&theater
O Mundo Segundo tem um grande destaque nesse documentário.
MS – Ainda não tive possibilidade de ver. Algumas pessoas que me são mais próximas já viram e comentaram exatamente isso. Quando o Francisco [Francisco Noronha, realizador] me abordou, contei um pouco da história [do rap do Porto] e levei-o a alguns sítios importantes. Em vez de estar a contar a história numa escada preferimos ir visitar os sítios e contar a história in loco porque o revivalismo acaba por ser maior quando a pessoa consegue estar no sítio e visualizar as coisas. E depois também fiz questão de lhe passar muitos contactos das pessoas, da nova e da velha escola, que representam texturas sonoras diferentes da cidade do Porto, não só dentro da música, também no breakdance e noutras vertentes. Acho que toda a gente que participou no documentário e já viu ficou muito satisfeito.
Durante essas entrevistas, aconteceu recordarem-se de momentos que a memória já tinha apagado?
STK – Talvez, no meu caso acho que sim. As entrevistas para o “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” fiz com o DJ Cruz [DJ Cruzfader] e para o “Hip to da Hop” fiz com [a banda] Orelha Negra. Aqui em casa com o Cruz, uma coisa puxa a outra, um relembra o nome de uma coisa, o outro lembra-se de outra… Acho que isso aconteceu. Não me estou a lembrar especificamente do quê mas é provável que tenha acontecido.
MS – A mim também me aconteceu mas mais no “Hip to da Hop” porque eu fiz a minha entrevista juntamente com o Ace e conseguimos ir repescando algumas memórias um do outro, coisas de que realmente já não falávamos há muitos anos e que aconteceram ao longo destes anos. Lembro-me por acaso, não sei se depois ficou no documentário do Porto, de falar numa noite em que estamos à porta do Hard Club, em que o Sam estava connosco e foi a rimar da porta do Hard Club até à ponte D. Luís I. Foi um momento muito engraçado, uma noite muito fixe, toda a gente na galhofa… Esse foi um dos momentos de que eu me lembrei [durante a feitura do documentário], há muitos mais.
Como é que era numa primeira fase a relação entre as pessoas do Porto e de Lisboa, no hip hop? O Rapública (primeira coletânea de rap nacional) só tem rappers e bandas de Lisboa…
MS – Vou eu responder primeiro, ó Sam [risos]. Na minha ótica, acho que nós no Porto abraçámos mais rápido a cultura de Lisboa. Eu falo na minha experiência pessoal porque eu enquanto fiz festas [organizava festas de hip hop no Hard Club] senti sempre necessidade de trazer pessoal de fora, essencialmente da cidade de Lisboa, que foi na altura a primeira cidade representativa desta arte. No Porto sempre abraçámos isso desde o início, sempre fizemos por trazer pessoal de fora e mostrar também o que tínhamos aqui. Nesse sentido, acho que nós sempre abraçámos muito aquilo que é extra cidade do Porto — e estou a falar de rap mas também de DJing. O breakdance é diferente porque os b-boys têm uma eterna rivalidade mas isso faz parte também da cultura, com as battles [batalhas] e assim.
No rap, a rivalidade que existe ou de que se fala muito é a de um tentar parecer melhor a seguir ao outro. Isso é uma coisa boa no hip hop, faz com que a arte vá avançando e com que a fasquia vá ficando cada vez mais elevada. Isso eu acho que se mantém em todos estes anos, alguém fazer um disco e outro querer fazer sempre melhor, fazer uma coisa mais fresca… Nesse sentido a rivalidade é boa mas desde início que aqui no Porto abraçámos sempre a cultura vinda de outras cidades.
STK – Sim, eu concordo com tudo o que o Mundo disse, é verdade. Ele foi muito importante nesse aspeto de levar pessoal de Lisboa às festas do Porto — seja no Hard Club ou noutro sítio mas falo principalmente das do Hard Club, que foram as mais míticas. Sem dúvida que isso acontecia muito mais do que ao contrário e na altura já haviam grupos no Norte, claro. À exceção dos Mind da Gap, que iam uma vez ou outra a Lisboa, não acontecia tanto. Havia grupos que tinham o mesmo estatuto que eu inicialmente e não iam a Lisboa, é um facto.
Num dos documentários mencionava-se uma aposta envolvendo o Hard Club e um moche…
STK – [Risos] Sim, sim. Isso foi com o Chullage. É engraçado, até recentemente com pessoal da nova geração como o Bispo, é comum eu dizer: olha, vais adorar o Hard Club. E ele foi lá a primeira vez e isso marcou-o. O mais interessante disto é que o Hard Club não é no mesmo sítio [o primeiro Hard Club funcionou de 1997 a 2006 em Vila Nova de Gaia, tendo o espaço migrado em 2008 para o Mercado Ferreira Borges, na zona histórica do Porto] e as pessoas que vão lá já são de uma nova geração mas o impacto mantém-se. É espetacular: o sítio mudou, as pessoas são outras e o impacto marcante de sentir que há ali um público diferente que faz com que um concerto seja inesquecível ainda se mantém. Essa aposta fi-la quando existia ainda o Hard Club antigo e foi com o Chullage. Era a primeira vez que ele lá ia e eu disse quando entrasse o instrumental do [tema] “Rhymeshit que Abala” as pessoas iam começar a fazer moche. E foi mesmo isso que aconteceu. Embora num momento inicial [do movimento] as pessoas reagissem a saltar e só mais tarde é que passaram a fazer moche. Eu ao princípio achava aquilo um bocado estranho…
https://www.facebook.com/samthekidchelas/photos/a.1523723564615869.1073741828.1523716524616573/1997798027208418/?type=3&theater
Numa fase inicial, antes do aparecimento da televisão (a internet então só chegaria bastante depois), o grande canal de acesso acabava por ser a rádio, correto? Em particular o programa Repto, do José Mariño…
MS – Sim. Comigo, grande parte das pessoas que conhecia até era — nomeadamente o Samuel mas também outro pessoal – através do José Mariño. Foi por ele que acabei por conhecer grande parte do menu de rap nacional [ri-se].
Lembram-se da primeira vez que se ouviram um ao outro? Foi no Repto?
STK – Foi, exatamente. A primeira vez que ouvi o Mundo não sei qual foi. Ele tinha lá umas maquetes em inglês: freestyle assassin. Lembro-me de ouvir essa maquete — ainda tenho lá gravado em casa, em cassete. Ele tinha isso mas não sei se foi a primeira que ouvi. Ó Mundo, qual é que foi a primeira maquete tua a passar no Repto?
MS – Acho que a primeira vez em que me lembro de me ouvir no Repto talvez tenha sido com a [maquete] “Mafília”. Era eu, o Ace [membro dos Mind da Gap], o Maze [membro dos Dealema]…
STK – Mas espera aí, tu fizeste “Mafília” e a seguir na “Freestyle Assassin” ainda rimaste em inglês?
MS – Não, “Freestyle Assassin” é mais antigo mas eu não me lembro se depois chegou a passar no Repto.
STK – Mano, se eu te estou a dizer… então como é que eu tenho isto gravado em cassete? [Risos]
MS – Ah, ok. Está certo. Já não me lembrava, foi há tantos anos.
STK – Pois, por isso é que eu estou a dizer. Normalmente quando uma pessoa canta em português já não volta ao inglês.
MS – A título de curiosidade, essas maquetes em inglês foram gravadas já depois de rimarmos em português. Fomos fazer um projeto em inglês, foi uma experiência, fizemos umas três músicas ou assim. Mas a primeira vez que me lembro de me ouvir rimar em português na rádio foi na “Mafília”.
Que o Samuel, na entrevista que fez ao José Mariño para a TV Chelas, disse que estava no top das melhores maquetes que ali passaram.
STK – Está, está. Sem dúvida, sem dúvida.
Voltando ao acesso que existia à música. Hoje é mais fácil aos mais novos ouvirem só a música que querem quando ligam o computador, não são obrigados a ouvir tudo o que existe (por não haver muita coisa) para formarem depois um gosto. Isso é bom ou mau?
STK – É curioso, quando entrevistei o José Mariño toquei um pouco nesse assunto que é o papel do cicerone, a pessoa em cujo gosto se confia. Embora no caso do Mariño, ele disse-me que quando passava as maquetes não significa que gostasse de todas, dependia mais se achava que elas tinham qualidade, se a pessoa merecia que a maquete passasse… Mas acho que estamos numa era em que também seria importante continuar a haver pessoas que filtrassem [a música]. Há o caso do Mundo que tem um programa de rádio, eu também o faço no meu canal. Por exemplo no podcast que temos [3 Pancadas, com Sam the Kid, João Moura e Sir Scratch no canal TV Chelas] há uma coisa em que reparo: as pessoas que são convidadas sentem que o convite representa uma aprovação. Não quero dizer que o nosso programa tenha alguma coisa de especial mas eu sinto isso, que o artista sente-se elogiado por ser convidado. E nós na realidade filtramos, também escolhemos de acordo com o nosso gosto, não vamos trazer rappers populares que nós achamos podres… Nós acabamos por filtrar e conversar sobre isso e falar da música deles. E isso acho que ainda é importante — mas [também] há muitas pessoas como eu que gostam de procurar por si, seja hip hop nacional ou internacional.
No meu caso também gosto de ouvir programas de rádio como os do DJ Premier, por exemplo, em que eu sei que pelo gosto dele não vai passar trap, por exemplo. Isso indica-me logo um certo gosto. Acho que é importante haver as duas coisas: a liberdade do artista de não depender destes meios e destas plataformas para vingar mas também haver plataformas que me permitam não perder um dia inteiro à procura de algo de que goste. Para isso é preciso confiar no gosto desses cicerones.
Para quem não passou por essa experiência, como é que era ouvir programas como o Novo Rap Jovem e o Repto (ambos do radialista José Mariño)?
MS – Eu fazia uma reunião lá em casa, o pessoal reunia-se todo, uns quatro ou cinco à volta do rádio para ouvir. Era interessante porque o Mariño quando passava uma música fazia questão de explicar o que é que a música abordava, quem é que constituía o coletivo que a fazia, de onde é que vinha, contava alguma curiosidade relacionada com a banda, tudo isso. E voltando um pouco atrás na conversa, acho que a grande diferença é essa, como antes não havia outras coisas a chegar-nos à mão nós apaixonávamo-nos por aquilo que nos chegava. Quando se conhecia um artista quase que se ganhava uma paixão por esse artista, pela história dele… Essa é uma das grandes diferenças que eu sinto face ao que acontecia antigamente. Eu ouvia o Nas, por exemplo e apaixonava-me por aquilo de uma forma que me levava a ouvir um álbum, sei lá, dez mil vezes… hoje em dia já não se ouve tanto um álbum e isso se calhar também faz com que não nos apaixonemos de uma forma tão profunda pelos MCs. Mas as recordações que tenho são essas: uma reunião à volta do rádio e depois gravar-se o programa em cassete, por exemplo para quem não tinha ouvido naquela semana, para poder passar de mão em mão…
STK – Era um culto, uma religião. Eu que nunca tive aquela febre do futebol, de ter de ir para casa ou ter de ir ali ver um jogo de futebol porque não o podiar perde por nada, o mais próximo que tive disso foi com o Repto. Lembro-me de estar num casamento num sábado e ir para dentro de um carro ouvir o programa. Normalmente num casamento uma pessoa está distraída, a divertir-se mas eu tinha de ir ouvir o programa. E nem era para ver se passava uma maquete minha, era para ouvir o programa, para ouvir novidades.
Esse entusiasmo com as músicas e os rappers também foi referido numa entrevista acabada de sair do Sam the Kid [ao programa Ecos Urbanos], em que usava as expressões “ingenuidade” e “encanto”. Essa febre devia-se também à exclusividade do hip hop, a pertencerem a um movimento alternativo, pequeno mas em crescimento, que muita gente não conhecia?
STK – Sinceramente não sei. O hip hop, sendo uma cultura alternativa, tinha aquele fascínio de se conhecer grupos que ninguém conhecia. Depois havia aquela atitude adolescente de achar que este ou aquele por já ser muito conhecido não era tão interessante… Existia isso mas eu, para ser sincero, nessa altura pré-adolescente ou um pouco antes, não tinha isso, consumia o que era popular. Se não fosse algo popular no hip hop a atrair-me para ele, podia não chegar lá. Teve de haver algo popular que saísse de Nova Iorque e chegasse até aqui.
Claro que há esse sentimento de exclusividade, de culto, de poucas pessoas estarem a par e do fascínio que era quando se conhecia alguém com quem se podia falar de hip hop. Mas acho que isso ainda se mantém, na verdade. Hoje toda a gente está familiarizada com os rappers e com muito rappers mas não há muitas pessoas com quem eu atualmente possa ter uma conversa profunda a nível de conhecimento de hip hop. Eu acredito que há muitas pessoas com quem não posso falar de certos grupos — e nem estou a falar de mencionar grupos do passado a adolescentes de agora, estou a falar de conversar com um miúdo que curte Lil Pump mas não sabe quem é o Black Milk. Por isso acho que ainda sinto a mesma excitação quando conheço uma pessoa que digo: ok, este é dos meus. Seja um fã ou um MC. E mesmo que seja um MC fraco, já me deixa satisfeito o facto de ele ter knowledge [conhecimento], é uma coisa que acho muito importante. Não há muitas pessoas que sejam nerds da coisa… sei lá, posso falar com o Mundo, podemos fazer jogos de desafios sobre quem é que sabe mais coisas. O Tekilla também é um tipo que tem muito knowledge, o Black Mastah, o Bob da Rage Sense.
Todos esses nomes são de rappers já com alguns anos de hip hop. Entre os mais novos, há alguns em quem reconheçam esse interesse e conhecimento?
STK – Agora assim de cabeça não sei dizer. Há muitos que têm algum knowledge mas ainda não estão…
MS – Eu acho que esse tipo de conhecimento, além de obrigar as pessoas a serem auto-didatas, é uma coisa que só se consegue com os anos. Vai-se para a ‘universidade’ do hip hop, vai-se estudando ano a ano, vai-se enriquecendo… Se quando eu tinha 16 anos e conhecia dez ou 20 projetos de hip hop me dissessem que hoje ia conhecer milhares deles e ia saber nomes de MC’s, produtores, b-boys, dos engenheiros de som, do tipo que faz as capas, do fotógrafo, eu ia dizer que era impossível. Mas no entanto fui avançando, avançando, avançando e chega-se a um ponto em que já se conhece tanta coisa que quando se começa a falar com alguém dá para perceber que há muito pessoal que acha que percebe de hip hop e não sabe aquilo que eu sei, que eu acho que é pouco… Isto é como a escola, são precisos muitos anos de experiência para se poder ter conhecimento de causa para se ter essa conversa com profundidade, que pode ir desde o que aconteceu em mil novecentos e setenta e qualquer coisa até ao que acontece 2018. Mas isto não quer dizer que não se possa aprender, cabe à pessoa ter interesse de aprofundar.
STK – Estou-me aqui a lembrar de nomes, por acaso, para também não ser ingrato… O João Moura que também participa no [podcast] 3 Pancadas e que tem o [site] Rap Notícias tem bastante conhecimento para a idade que tem. Há um miúdo, o Oseias Xavier [compositor de batidas e produtor musical], que hoje em dia está ligado ao trap mas é bastante eclético e tem muito conhecimento. Conhece a atualidade, investiga o passado… há outro rapaz, o Fábio Marques Monteiro, que também tem muito conhecimento. É engraçado, há pouco tempo estive a passar música num bar no Bairro Alto em que se pode passar tudo e estava a ir ao hip hop mais underground. Lembro-me que estava lá um miúdo que não tinha mais de 20 anos que conhecia até as coisas mais obscuras. Até há algumas pessoas mas ainda é especial para mim encontrar alguém assim. Lá está: não nos podemos iludir e achar que devido à popularidade do rap — e falo do rap porque as outras vertentes do hip hop [graffiti, beakdance e DJing] não estão tão populares –, as pessoas vão ser todas assim. Não, são poucas.
Valete: “O hip hop está a perder a única coisa que não podia”
No “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” surge a certa altura uma comparação entre o hip hop e o punk. O punk tinha ganhado popularidade alguns anos antes, também tinha uma cultura DIY (Do It Yourself, “faz por ti mesmo”), em que não era preciso ser um músico virtuoso tecnicamente para fazer música, o que era preciso era passar uma mensagem com força através da palavra… a comparação é válida?
MS – Da minha parte, pelo que se viveu na cidade do Porto, acho muito válida porque por exemplo o graffiti, a pixação, inicialmente era mais punk do que propriamente do hip hop. Essas duas coisas, o DIY e a escrita de rua, sem dúvida que herdámos do punk. Podemos ir fazer um estudo aprofundado mas estou certo disso, especialmente a cultura DIY, porque hoje em dia quase todos os artistas do hip hop têm o seu estúdio em casa, a sua forma de fazer e editar CD, de os vender, marcam os seus próprios concertos — e sem dúvida que isso tem tudo a ver com o punk.
STK – Essa associação sempre foi feita mas é engraçado que, havendo um respeito de ambas as partes e uma concordância nesses pontos que estão a ser falados, esteticamente não é muito comum haver pessoas que gostam de ambas as coisas.
Queria chegar aí, perceber se vocês e as pessoas que vos são próximas tinham tido essa influência direta.
MS – Quem gostava dos dois estilos era o pessoal do skate, eventualmente.
STK – Exatamente. E, para ser sincero, essas são as semelhanças entre os dois estilos mas se quiséssemos também podíamos encontrar no hip hop semelhanças com o fado, que é uma música que também vive muito da palavra, é uma música muito de rua, onde também há muito improviso, há a poesia que liga um género ao outro… Comparar o hip hop com estes dois géneros é válido porque existem semelhanças mas depois também podemos ir ver as diferenças, como eu gosto de fazer até para privilegiar a minha cultura. Não gosto de dizer que é maior, porque a arte é subjetiva, mas se eu quiser encontro esta diferença: a estética do punk é limitada. Não pode haver uma música de punk com flauta, acho eu e no hip hop pode. Até pode haver uma música de hip hop só com flauta, sem batida, com alguém a rimar por cima do som da flauta. Fica diferente mas é válido e o hip hop é mesmo isso, é a liberdade. Mesmo as pessoas mais puristas dizerem que trap [sub-género particular] não é hip hop é errado. O trap também é hip hop, se dissermos o contrário estamos a contradizer esta liberdade. O hip hop tem esta maleabilidade estética.
É mais uma das ramificações, portanto?
STK – Exatamente. O hip hop para mim é isso tudo e é bonito por causa disso, por ter uma variedade enorme de estéticas em que podem caber todos os instrumentos.
Quem é David Bruno, o artista que junta Marante, samples e Vila Nova de Gaia?
No “Hip to da Hop” o Francisco Rebelo diz que alguns músicos tinham preconceito em tocar hip hop e que ele era considerado um género menor. Na verdade, apesar da popularidade do género esse preconceito ainda existe, não? Há aquela entrevista recente do Rui Veloso, que deu muita polémica. Curiosamente no meio do fado, que até poderia ser mais conservador e tradicional, houve empatia com o trabalho do Sam the Kid.
STK – Sim. Mas concretamente a situação do Rui Veloso a mim não me surpreendeu nada. Porquê? Porque é o Rui Veloso, é uma pessoa desbocada. É como o José Cid, quando diz aquelas coisas sem pensar, são pessoas que gostam de falar sem grande filtro. Obviamente que ele sabe que hip hop é música, a definição de música prende-se com os silêncios e os espaços, ele sabe isso. Claro que é música. Acho que ele quis mais falar com o coração para destacar a música dele como sendo melhor, como eu agora também estava a fazer em comparação com o punk, para demonstrar a minha paixão.
Mas se eu quiser responder a tudo o que ele disse, posso fazer um contraponto. Ele falou no hip hop como sendo monótono mas se formos ouvir os blues também são uma música que vive muito da palavra. Uma pessoa que está fora do blues e pensa no que é o estereótipo do género pensa nos acordes e pensa nos momentos em que a voz entra e é sempre a mesma coisa. Também é uma repetição. Claro que ele me vai dizer: não, Samuel, o blues não é só isso, é mais não sei quê e não sei que mais. Ok mas é o que eu estou a dizer: ele também não é um entendido em hip hop. Ele ao dizer isso parece que voltámos atrás no tempo 20 anos [ri-se], foi um bocado estranho mas para ser sincero não me chocou vindo da parte de quem vem. Há muita gente que pensa isso, o Rui Reininho também já em tempos falou mal do hip hop, o Adolfo Luxúria Canibal a mesma coisa. Mas isso é normal.
Há pessoas que também podem ter a teoria do ressabiamento, sobre eles há tempos serem os populares e agora… da mesma forma, para mim também há Rui Velosos dentro do hip hop. As pessoas que dizem que trap não é hip hop estão a ser Rui Veloso, estão a ser conservadores e também podem ser acusados de ressabiamento — “eles agora é que estão em alta e tu estás com saudades de quando as coisas que estavam em alta tinham mais qualidade”… Pode haver certas coisas factuais nessa posição. Eu sou uma pessoa que respeita muito a música do passado e também concordo com alguns dos pontos de que ele fala, que nós no rap também falamos. Sempre falámos das futilidades de algum rap americano, do bling bling e de coisas fúteis. Há gente do hip hop que critica quem tem esse tipo de discursos [nas músicas]. Agora, com a evolução dos tempos, cá em Portugal também há pessoas a quem a carapuça já serve mas ao mesmo tempo nós somos os primeiros a fazer este tipo de crítica. Agora, que não é música…
Que outros argumentos é que normalmente se usam para defender isso?
STK – Às vezes usa-se o argumento dos samples, de que no hip hop não se cria as músicas do zero [utiliza-se excertos de músicas alheias reiventando-os]. Mas é sempre criativo, essa tranformação é arte. Se alguém prefere chamar-lhe outra coisa qualquer que não música, chamem-lhe um remix, chamem-lhe o que quiserem mas é arte à mesma. O ouvido, se formos ver, também é influenciado, nunca se cria do zero. Falando do meu caso, eu sempre procurei a aceitação dos outros poetas e músicos e a aceitação da geração anterior, que consegui. E isso deixou-me satisfeito. No início o que nós [rappers e músicos em geral] queremos é uma aceitação, mais do que sucesso. Assumo isso. E essa aceitação que se procura, mais do que aceitação do público é uma aceitação dos parceiros, é o respeito de outros rappers e do pessoal do hip hop, primeiro e das pessoas de outros géneros musicais, depois. Isso para mim era um fator importante e motivador. Claro que quero manter isso mas já o consegui e não é uma coisa assim tão importante para mim hoje. Até porque existe o fosso geracional: é muito normal os pais não gostarem da música que os filhos andam a ouvir e se calhar vai acontecer o mesmo connosco no futuro. Se calhar essa é a batalha: o hip hop era consensualmente uma música de jovens para jovens mas hoje já começa também a ser quarentão e pode conquistar jovens e graúdos ao mesmo tempo.
No “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes”, a certa altura o Fuse [parceiro de Mundo Segundo nos Dealema] diz que Vila Nova de Gaia “tinha muitos tribos e não havia separatismo entre essas tribos”. Que importância teve o Cómix Bar na junção de sub-culturas diferentes?
MS – O Cómix era um bar de rock, punk, metal e hip hop. Eventualmente numa noite de hip hop encontravam-se todo este tipo de clientes vindos de tribos diferentes, digamos assim. Vias um tipo abanar a cabeça a um som de hip hop com um colete dos Megadeath. Isso já era uma prova que havia espaço para pessoas fora do espetro hip hop gostarem de o ouvir. Quanto a Gaia, de facto tinha muitas tribos, havia o pessoal do skate, do futebol, do punk, do hardcore, do metal, do techno, do house. E toda a gente se misturava. Acontecia virem a minha casa levar toda a tarde com hip hop e eu se calhar ir depois a uma noite de house. Sempre houve muito essa partilha aqui na cidade de Gaia e lembro-me que desde miúdo havia essa partilha em tudo, acho que é uma forma de estar daqui.
Curiosamente, no grande Porto há pelo menos um espaço que se mantém como chamariz de hip hop, o Hard Club, mesmo tendo mudado de sítio. Em Lisboa não existe nenhum espaço destes. Ou existe?
STK – Não, não, não. Comparável não há, mesmo. Pensei no Musicbox mas mesmo assim não tem metade do carisma no hip hop — tem um carisma geral, generalista. Eu só comecei a sair de Chelas para noites de hip hop no Johnny Guitar. Não presenciei isso que o Mundo está a falar [mistura de sub-culturas], embora também fosse uma casa com noites variadas. Isso também aconteceu na América, a cultura hip hop era tão fresca que uma das primeiras menções até veio da cantora dos Blondie, a Debbie Harry, que até rappou numa música chamada “Rapture”.
No Johnny Guitar lembro-me de ver a Lena d’Água — mas pronto, ela depois não fez uma música como essa dos Blondie [risos]. Sei que para as pessoas mais antigas de Lisboa pode haver o Trópico, que era aqui em Lisboa e era o Boss AC que dinamizava, como o Mundo [Mundo Segundo] fazia com o Hard Club, numa altura ainda pré-Rapública e a coincidir com o Rapública. Teve vários eventos de hip hop, matinés, etc. Mas pronto, morreu tal como o Johnny Guitar. O Hard Club, mesmo com pessoas diferentes a dinamizar, ainda se mantém. E mantém-se igual, com o mesmo espírito. Em Lisboa, o cenário [dos concertos] melhorou por passarmos a ter finalmente o que o Hard Club já tinha: pessoas apenas ouvintes, que não são necessariamente rappers, a ir aos concertos e divertir-se. Antes, aqui em Lisboa, era sempre o rapper a ver o rapper, a observar, a aplaudir só o amigo [risos]. Era um bocadinho mais hostil. No Porto não se sentia isso.
Referiram há pouco que outras componentes do hip hop — graffiti, breakdance, DJing — não estão tão populares como o rap. Muitos queixam-se de que a relação entre estes elementos perdeu-se, que antigamente havia uma grande união entre todos. Foram as pessoas que perderam o interesse no breakdance, no graffiti e nos DJ ou ele mantém-se mas só o público do rap é que cresceu?
STK – Às vezes esquecemo-nos muito de uma coisa: as coisas não acontecem do nada, os eventos não acontecem do nada, tem de haver alguém a organizá-los. Acho que para essa ligação acontecer quem faz os eventos tem de ter isso em consideração. Era muito aí que se devia trabalhar para transparecer essa saúde e união desses elementos, dessas vertentes. O público também tem a sua responsabilidade e não devia ter de haver um concerto de um rapper num evento de b-boys para ele lá ir — ou o contrário. Mas é assim. Em Lisboa ainda vejo um grupo, que é sempre o mesmo grupo [ri-se], a ir a DJ sets e às vezes cria ali uma rodinha.
Mas o melhor é ir à raiz da questão: o que é que nos unia a todos, talvez à exceção do graffiti? A música. Para fazer graffiti não é preciso ouvir música mas para as rimas e para a dança é essencial… Antigamente se calhar os campeonatos de DJ nos anos 1990 tinham muitos instrumentais de hip hop que agradavam a um rapper e a um b-boy. Depois começou a surgir sub-géneros, os DJs já põem uma música que quase parece música eletrónica, os b-boys estão a dançar um estilo de música que só eles é que dançam e isto criou uma grande divisão. Não há rappers a rimarem em instrumentos em que os b-boys estão a dançar, não há rappers a rimar nos sons que os DJ estão a pôr… isto parece subtil mas eu estou atento a estas coisas porque a música era o que nos unia. Vou dar um exemplo: eu tenho rimas em músicas minhas que pus de propósito com esperança de ver um DJ a utilizar. “Eles só mexem nos pratos quando estão a lavar a loiça”, “eles só fazem scratch com o fecho do casaco”… eu dizia isto com esperança de um dia, numa batalha, um DJ utilizar isso contra outro DJ. Não me lembro de ter acontecido, pronto. Mas mesmo eu disponibilizar os à capella e os instrumentais das minhas músicas, são coisas que faço de forma consciente para contribuir para essas colaborações, para que não esteja cada um no seu canto. Porque é triste, isso.
MS – Eu concordo com o que o Sam está a dizer. Nem acrescento nem retiro. [Risos]
Há tempos o Ace [do grupo, já extinto, Mind da Gap] dizia numa entrevista que achava que a música do Porto tinha menos impacto hoje do que há uns anos. Concordam?
M.S – Sem tirar o primor a cada artista, é complicado fazer música, ser do Porto e ter notoriedade. São coisas que combinadas tornam logo à partida tudo um bocado complicado e é por isso que grande parte dos músicos do Porto com sucesso acabam por sair daqui porque percebem que para ter alguma notoriedade — quando eu digo notoriedade falo em exposição e publicidade — este se calhar não é o melhor sítio porque a imprensa não está aqui sediada. Nós nesse sentido temos alguma dificuldade em fazer com que projetos com valor consigam furar e aparecer com o destaque que merecem. Sobretudo se falarmos de um músico com um produto mais alternativo, é super difícil.
Primeiro o skate, agora os beats: quem é Minus & Mr. Dolly, um 2 em 1 do hip hop?
Eu, por exemplo — e o Sam sabe disto –, quando apresento um disco tenho de ir para Lisboa publicitá-lo, tirar um ou dois dias da minha vida para ir para Lisboa fazer entrevistas na rádio, na televisão, para poder chegar ao resto do país. Dizer a alguém de Lisboa que faz música mais alternativa que precisa de ir ao Porto publicitar o seu álbum… não vão, só vão ao Porto para tocar, não precisam de ir à televisão e à rádio no Porto porque o grosso desse tipo de imprensa está em Lisboa. Nesse aspeto estamos um pouco mais desapoiados. Algo que é bom se calhar em vez de demorar dois ou três meses a aparecer vai demorar dois ou três anos a conseguir ter destaque. Nesse sentido, não temos tanta força mas continua a haver muito boa música no Porto, em garagens e em salas de ensaio, que de vez em quando vão aparecendo num ou noutro festival e começam a ganhar terreno. Mas ainda falta desbravar muito caminho para conseguirmos ter o destaque que as bandas do Porto, as mais velhas e as mais novas, merecem.
Essa qualidade parece notória mesmo olhando para os artistas posteriores a Mind da Gap e Dealema que surgem no documentário sobre o rap do Porto.
M. S. – Sim, sim. Houve uma “fase crítica” em que toda a gente que aparecia soava a Mind da Gap ou a Dealema. Era natural, as pessoas estavam a iniciar-se na cultura, a dar os primeiros passos… passada essa fase, começaram a surgir artistas com texturas muito interessantes e totalmente diferentes das nossas, que se sente que têm inspiração mas que têm uma forma totalmente diferente de comunicar e que têm ideias muito próprias. No Porto isso acontece e é muito bom sentires que cada MC quer ter a sua identidade, já não é como no início em que soava tudo a Mind da Gap ou a Dealema. Hoje em dia todos querem soar a si próprio tendo aquele cunho de representar a cidade, que é uma coisa típica do hip hop, cada um representar a zona de onde vem. Se calhar não há muitos projetos mas há muita qualidade nos projetos que há e isso também é muito importante. Falo dos Corona, do Virtus, do Keso, do D-One, do DJ Serial… Há tantos e todos com texturas diferentes.
Ainda sobre essa influência de Mind da Gap e Dealema, a Capicua refere no “Não Consegues Criar o Mundo Duas Vezes” que os projetos que nasceram no rap do Porto posteriores a estes dois grupos inspiraram-se mais diretamente no modelo dos Dealema do que no dos Mind da Gap. Isso acontecerá também pelo papel que tu, Mundo, exerceste no Segundo Piso, onde muitos desses artistas passaram, ouviram música, contactaram contigo?
M. S. – Possivelmente, sim, poderá ser uma das explicações. Outra das explicações pode ser o facto de sermos quatro MCs e quatro pessoas com estilos totalmente diferentes uns dos outros, que vêm de zonas diferentes do Porto e de Gaia. É outra das características dos Dealema, nenhum de nós cresceu uns com os outros tirando eu e o DJ Guze. De resto, vínhamos de zonas diferentes. Hoje em dia isso até é estranho, haver um grupo de hip hop de não sei quantas pessoas que não eram amigos há não sei quantos anos quando começaram. Mas nos nossos concertos acho que dava para perceber que havia quatro MCs e um DJ de zonas diferentes do Porto, com estilos diferentes — com um pouco de rock, um pouco de horrorcore, um pouco de realidade de rua, um pouco de cultura geral. Basicamente, trazíamos um pouco de tudo misturado dentro da mesma panela.
Depois essa parte de exercer esse papel, de trazer as pessoas para as festas, de travar conhecimento com pessoas de diferentes idades partilhando este conhecimento e este amor pela cultura, isso é verdade e acho que faz com que as pessoas se sentissem identificadas porque no fundo é o que todos nós queremos: conviver, aprender e evoluir. Acho que as pessoas sentiram-se próximas de Dealema um pouco por causa disso, por causa da nossa linguagem, da nossa forma de comunicar.
Querer falar com os dois teve muito a ver com isso — esse papel de construção de comunidade que exerceram, no caso de um no Segundo Piso e mais recentemente na rádio [Mundo Segundo tem um programa de hip hop na rádio Nova Era], no caso de outro com a TV Chelas, a colaboração e produção de temas para outros, etc.
M. S. – Acho que mais do que nós estarmos a fazer isto é importante que as pessoas percebam que é bom que quem vem a seguir a nós — porque para nós os anos vão passando — tenha essa mesma atitude perante a cultura, de querer fazer algo “for us, by us”, como o Sam costuma dizer, utilizando o slogan da FUBU [marca norte-americana de roupa identificada com o hip hop]. Nós fazermos para os nossos. É importante que a seguir a nós venham outros que tenham outras plataformas onde mostrem o que está a acontecer e deem continuidade a isto porque no fundo é isto que alimenta a cultura, que faz com que as pessoas que estão a aparecer tenham vontade de fazer a sua maquete ou o seu disco para poder ir mostrar ali, para poder ir tocar àquele palco e para poder aparecer na plataforma TV Chelas, porque quando isso acontecer o pessoal do hip hop já vai saber de onde é que vêm, vão conhecer a história deles. Surgir no “Skills”, que é o meu programa na Nova Era, uma das maiores rádios da cidade do Porto, e chegar à comunidade… Todas essas coisas são importantes. Nós também passámos pelas mãos do José Mariño que nos abriu a plataforma dele e nos deu a conhecer ao resto de Portugal. Por isso, é importante que as pessoas além de olharem e gostarem do que estamos a fazer, comecem também a perceber como se faz para elas próprias o poderem fazer no futuro.
[A cumplicidade entre os dois produtores e MCs deu origem à junção de Sam the Kid com Mundo Segundo num novo projeto. O primeiro álbum poderá chegar ainda este ano e já se podem ouvir três singles no Youtube. Este é “Brasa”, com instrumental do produtor canadiano Marco Polo:]
STK – Vou falar noutra coisa para valorizar a nossa cultura em comparação com outras: a quantidade de colaborações. Nós, se formos ver, continuamos a fazer bastantes colaborações seja com pessoas antigas ou novas, que pouca gente conhece. Eu continuo a fazer isso, o Mundo recentemente também está a fazer um projeto com diretos do Instagram em que junta artistas mais e menos conhecidos e isso é uma coisa que faz parte da nossa cultura e sempre fez. Se voltarmos às comparações com outro género musical, não existe música que tenha mais colaborações e a ideia de alguém dar a mão a alguém e torná-lo seu protegido do que o hip hop. Parecido, fora do hip hop, só me lembro dos Pólo Norte serem mais ou menos afilhados dos Delfins [risos].
Há o outro lado da moeda, das rivalidades e dos despiques entre rappers através da música.
STK – Mas as colaborações provam que há união. E no meu caso e do Mundo acho que damos um bom exemplo de pessoas que colaboram com pessoas da nossa geração, de outras gerações, da nossa cidade, de outras cidades de norte a sul… não temos problemas nenhuns porque vemos o hip hop mesmo assim, como uma coisa bonita, de colaboração. Lá fora também sempre nos mostraram isso. Por vezes diz-se que este ou aquele não aparecem por mérito próprio — mas isso faz parte do hip hop. Pode haver uma ou outra pessoa que anda às cavalitas de outra ou que é um rapper fraco mas tem beats de um Dr. Dre ou algo assim. Mas faz parte. E depois o tempo é que dirá quem é que são os grandes, os que ficam. Porque isto é uma maratona, não é ver quem é que está a ser mais ouvido este verão.
Aproveitando o “mais ouvido”, como é que se chegou ao ponto em que o hip hop português está hoje? Tendo em conta que começou muito anti-sistema, com uma relação conflituosa com as editoras e hoje é tão popular.
STK – Eu parece que tenho um preconceito ou um complexo de inferioridade mas não sinto que faça parte da indústria musical portuguesa. Não me importo que alguém me veja como uma figura da música nacional portuguesa mas eu considero-me do hip hop tuga. É engraçado, em certos aspetos não gostamos de estar dentro de uma caixinha mas neste aspeto eu gosto, da mesma forma que visto a camisola de Chelas e não visto a camisola de Portugal. São caixinhas que me dão mais orgulho do que se eu vestir uma camisola generalista que às vezes não é pão nem é queijo. Não, eu sou hip hop e tenho todo o orgulho nisso. Não é que tenha algo de mal a apontar à música nacional e à indústria mas sempre me senti um outsider. Compreendo que os miúdos mais novos me vejam como alguém que faz parte dela mas eu não sinto que faço parte disso.
Para mim, nada mudou. Mesmo a minha relação com as editoras, lidei com elas mas mantenho esta postura e acho que agora até está tudo a voltar ao ciclo inicial. Não voltámos a uma fase de sermos anti-editoras mas não precisamos delas e estamos bem do lado de fora. Isto excetuando os artistas menos centralizados. Temos agora os casos do Valas e do Domi — um é do Alentejo e outro do Algarve — e eu acho que eles fizeram muito bem [em assinar com editoras], tanto um como o outro estão de parabéns. A editora também está, por apostar em pessoas que não são centralizadas e que não são apostas 100% seguras porque eles não são os mais populares do mundo, ainda estão a evoluir. Eles estiveram bem porque acho que de outra forma a caminhada iria ser muito mais longa. É engraçado que antigamente o demónio que nós víamos era a grande indústria, as majors. Eu sinceramente se calhar até tenho mais razões de queixa de editoras pequenas [risos]. Mas houve de facto uma geração que começou por fazer as coisas de forma independente, fez as maquetes e pôs nas lojas, e aos poucos foi ganhando respeito para conseguir fazer acordos com editoras mas à nossa maneira, ao contrário de uns Black Company que se calhar, com a ingenuidade inicial, tiveram de cometer erros para nós aprendermos com esses erros.
Lembram-se de algumas histórias que ilustrem essas tensões iniciais que existiam com as editoras?
M. S. – Vou dar um exemplo muito concreto: nós, com Dealema, fizemos o nosso primeiro disco e editámos em 2003 pela Norte/Sul. E quando estávamos a gravar o segundo, já numa fase final fomos mostrá-lo à editora. O que tínhamos era só um contrato para um disco com opção do segundo para as duas partes. Fizemos o disco e era um disco em que nós acreditávamos, que tinha potencial. E fomos mostrá-lo à editora e na altura disseram-nos que ainda não tinha aquele single que se pudesse pôr numa telenovela ou coisa do género, foi uma coisa assim mesmo ridícula. E nós, pronto, fomos à nossa vida porque não íamos fazer singles de encomenda. Viemos embora da editora, fizemos nós o disco por nós e por nós acabámos por vender mais discos do que os que tínhamos vendido do primeiro. Isso é a prova viva de que de hip hop percebemos nós, basicamente — e que isto é um tipo de música que se move num espetro diferente do que aquele em que se move a música pop. Essa foi logo uma das nossas primeiras experiências mais profundas com editoras — e acabámos por não fazer mais nenhum disco por mais nenhuma editora.
Fizemos tudo sempre por nós e foi o melhor que fizemos e se tiveres essa possibilidade e fores auto-didata o suficiente para o conseguires fazer, é mais aconselhável. Ou então fazer esse tipo de parceria que o Sam estava a referir, um acordo de distribuição mas com total controlo criativo do que se está a fazer porque qualquer artista que goste da sua arte e a respeite tem de fazer aquilo que quer e não o que lhe mandam fazer. A arte não pode ser feita de encomenda — tu podes pedir um quadro com a tua fotografia de encomenda, metes a tua fotografia e o pintor faz o seu trabalho normal mas de certeza que não é aquilo que ele mais gosta de fazer… Na altura fizemos isso, foi uma história curiosa e felizmente correu tudo bem, continuamos aqui com saúde [ri-se].
STK – Pessoalmente nunca tive essa situação de meterem o bedelho nas minhas coisas, sempre me deixaram muito à vontade, eu é que escolhia o single, escolhia tudo. Mesmo em pagamentos tive sempre mais sorte a solo do que por exemplo com Orelha Negra, a quem a Valentim de Carvalho está a dever dinheiro, por exemplo. Eu pessoalmente não consigo trabalhar com pressão. Orelha Negra foi muito bem sucedido porque foi uma ideia nossa, que nós criámos. Podia muito bem ser um projeto inventado por uma editora — mas nunca resultaria se o fosse porque a editora ia pôr o bedelho. Quando a ideia é deles, é muita gente a opinar. Depois há a pressão, tem que se acabar e fazer até uma certa altura…
https://www.youtube.com/watch?v=XF5fa4bWr-E
Eu já tive hipótese de gravar um álbum com o Carlos do Carmo mas a editora é que estava a propor, portanto, não aceitei. Se for uma música, como fiz para o Carlos Paredes [o tributo “Viva!”], ainda consigo fazer. Mas grandes pressões, comigo não dá. Lembro-me assim de uma história: sempre fui a favor das coisas puras e antes de editar pela EDEL era independente mas já tinha dado algumas entrevistas. E as entrevistas que eu tinha dado foi como esta que estamos a fazer. Quando saiu o meu álbum Sobre(tudo) perdi a ingenuidade e o encanto quanto a entrevistas e à promoção porque percebi que as pessoas que me estavam a entrevistar nessa altura não me estavam a entrevistar porque queriam, era porque existia um protocolo, porque era da companhia, porque existia um circuito que as pessoas não conhecem e que às vezes tem mais importância que o mérito próprio… e isso faz-te pensar: porra, tenho valor ou não tenho? Há coisas como estas que nos fazem perder a ingenuidade e perceber que o mundo não funciona como pensávamos.
Há algum tempo, quando perguntaram ao Slow J se o hip hop português estava de boa saúde, ele disse que achava que sim mas que não havia uma quantidade assim tão grande de álbuns de qualidade a sair face à popularidade que o género já tinha… como é que isto se explica?
STK – Hoje em dia não estamos na era do álbum. Eu compreendo e respeito perfeitamente as pessoas que não se querem dedicar a esse tipo de conceito com cabeça, tronco e membros. Portanto, também dou um desconto nesse aspeto porque há uma razão para isso acontecer. Quando estávamos na era do álbum, saíram vários discos que eu considero clássicos…
Papillon juntou-se a Slow J: o hip hop em 2018 não vai ser o mesmo
MS – Pelo menos duas mãos cheias.
Há alguns que achem especialmente marcantes? Tenham ou não um reconhecimento muito grande do público.
STK – Sim, o Sem Cerimónias [dos Mind da Gap] e do Kilú o Um Outro Lado da Versão, para dar dois exemplos, um mais bem sucedido [o primeiro] e o outro mais sub-valorizado [o segundo]. Diz tu também, Mundo.
M. S. – Tenho um top assim um bocado extenso… vou fazer uma lista um bocado aleatória mas de discos que considero importante para a história. Sem dúvida o Sem Cerimónias, o segundo e o terceiro disco do Sam, não vou falar dos nossos projetos a solo, Dealema e assim, porque isso deixo ao critério das pessoas mas o primeiro álbum do Chullage é muito bom [Rapresálias] e Microestática, o primeiro álbum dos Micro, também é muito importante na história. Sei lá, o primeiro álbum do NBC [Afro-Disíaco], gosto muito do Rimar contra a Maré do Boss AC, o segundo álbum de Black Company [Filhos da Rua] também tem uma produção incrível, com alta qualidade. Há tantos álbuns, é quase infindável. É como estava a dizer, eu tenho pelo menos duas mãos cheias de discos que, seja a nível de conteúdos, sonoramente ou porque eram frescos, têm um condimento especial e que para mim marcam a história do hip hop de alguma forma.
Muito obrigado.
M. S. – Obrigado nós.
STK – Obrigado.