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“Fartei-me de Santana”, diz Sampaio. Falta de “escrúpulos”, acusa Santana
Domingo à tarde em Lisboa, 28 de novembro de 2004. Jorge Sampaio, Presidente da República, relaxa, sentado numa sala de cinema, a ver um filme. Na mesma tarde, num cine-teatro em Vila Pouca de Aguiar — Trás-os-Montes — Pedro Santana Lopes, primeiro-ministro, prepara-se para discursar. Mas o momento cinéfilo do Presidente da República é interrompido por Luís Farinha, chefe da segurança de Belém, que entra na sala escura para o avisar. Quase em simultâneo, Pedro Santana Lopes recebe um telemóvel da mão do ministro António Mexia, que o governador civil de Vila Real lhe tinha passado. Era “a” notícia que ia desencadear tudo: a crise de 2004 e a dissolução da Assembleia da República, que José Pedro Castanheira detalha no segundo volume de “Jorge Sampaio — Uma Biografia” lançado esta semana. O Observador conta as duas versões da mesma história, agora com novos esclarecimentos: a do ex-Presidente, narrada na nova biografia, e a do ex-primeiro-ministro, apresentada no livro Percepções e Realidades, que publicou em 2006.
Santana questiona “formação moral” e “escrúpulos” de Sampaio
A versão de Jorge Sampaio já provocou três reações a Pedro Santana Lopes esta semana, que ao fim de 13 anos continua a não compreender a decisão do então Presidente da República. Primeiro, na SIC-N, desafiou o ex-Presidente para um debate televisivo e disse que o socialista tinha um “peso na consciência”. Depois, num artigo no Jornal de Negócios, questionou os “escrúpulos” e a “boa formação moral” de Jorge Sampaio, embora sem o nomear: “O problema é que a liberdade de expressão, quando as pessoas não têm escrúpulos nem boa formação moral, leva-as a construir a sua própria verdade e tornam-se também peritas em tentar recriar a história”. A seguir, disse numa entrevista à Renascença que o objetivo da dissolução era “abrir caminho a Cavaco” para Belém. E prometeu escrever um livro para responder à versão da biografia de Sampaio.
O antigo líder do PSD reagia ao depoimento mais sincero — quase um desabafo — que Jorge Sampaio fez até hoje sobre a dissolução. Nunca o socialista tinha sido tão sincero como agora na biografia:
“Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva — mas não foi uma decisão ad hominem. Ninguém gosta de dissolver um Parlamento e eu tomei essa decisão em pouco mais de 48 horas. Hoje faria o mesmo, porque era preciso. Entendo perfeitamente a reação de Santana, porque ninguém gosta de ver dissolvida a Assembleia onde está em maioria, mas a verdade é que a maioria absoluta estava a desconjuntar-se”, disse Jorge Sampaio a José Pedro Castanheira.
O ex-Presidente reconhece, porém, que, no discurso que fez a anunciar a dissolução do Parlamento, poderia ter-se justificado melhor a decisão. “Na minha comunicação aos país, posso ter explicado mal as razões pelas quais dissolvi, mas era preciso dar a voz ao povo”. Sampaio mantém-se convicto de que foi a melhor decisão, até porque o resultado eleitoral lhe deu razão — “dois terços dos portugueses votaram contra o Santana”, afirmou ao biógrafo.
Mas regressemos àquela tarde fatídica de domingo. E aos factos vistos na perspetiva de Santana e Sampaio.
A informação era urgente e grave. Henrique Chaves, o ministro-adjunto, tinha apresentado a demissão através de um comunicado entregue na Lusa em mão pelo seu próprio filho. Os termos eram inéditos, violentos, insólitos: “Não concebo a vida política e o exercício de cargos públicos sem uma relação de lealdade entre as pessoas”. Entre outras notas violentas, acusava Santana Lopes de “grave inversão dos valores de lealdade e de verdade”.
Em Vila Pouca, Santana Lopes procurou “não deixar transparecer nenhum sentimento”, escreveu no livro em que conta a sua versão e interpretação dos factos relativos ao seu breve Governo. Em Lisboa, Jorge Sampaio entrava “num processo de reflexão sobre as condições de governabilidade”, contou João Bonifácio Serra, então Chefe da Casa Civil, ao biógrafo do Presidente. Perante aquele acontecimento, que se sucedera a outros eventos ao longo das semanas anteriores, o Chefe de Estado pediu para o primeiro-ministro ser convocado para uma reunião no dia seguinte de manhã, em Belém. A crise acelerava.
Uma semana antes, todavia…
Todo o caminho percorrido até àquela convocatória tinha sido turbulento. Havia acontecimentos anteriores, aqueles meses de Governo tinham sido cheios de episódios e originalidades. Na sexta-feira anterior, a 19 de novembro, Jorge Sampaio tinha convidado Pedro Santana Lopes para um jantar no Palácio de Belém. Estavam a sós. Noutra sala, a chefe de gabinete de Santana jantava com o Chefe da Casa Civil. Os dois homens tiravam notas das reuniões nos seus cadernos, como tinham combinado desde o início da relação em julho, quando Santana substituiu Durão Barroso, que foi para presidente da Comissão Europeia, sem lugar a eleições (o que motivou a demissão de Ferro Rodrigues do PS e abriu caminho a José Sócrates). Aliás, é em parte com base nessas notas de Jorge Sampaio que José Pedro Castanheira descreve várias reuniões do Presidente ao longo das 1023 páginas do segundo volume da biografia do Presidente.
Em Percepções e Realidades, Santana descreve com base nas “notas importantes” que tirou nessa tarde, que Presidente e primeiro-ministro conversaram sobre o recente Congresso do PSD em Barcelos, abordaram a coligação com o CDS que tremeu nesse fim-de-semana, assim como as consequências do caso Marcelo Rebelo de Sousa e da sua saída da TVI — um dos processos que mais tinham desgastado o Governo no mês anterior.
Nada nas notas de Sampaio refere qualquer conversa sobre ministros, escreve José Pedro Castanheira. Mas os rascunhos de Santana não só mencionam ministros, como revelam que Sampaio sugere uma remodelação. O primeiro-ministro falara ao Presidente de uma pequena mudança nos secretários-de Estado, por causa da saída de Domingos Jerónimo da Presidência do Conselho de Ministros para secretário-geral dos Serviços de Informações da República Portuguesa. Segundo Santana Lopes, Jorge Sampaio vai mais acima na hierarquia:
“Expôs-me, mais uma vez, a ideia de que o ministro Rui Gomes da Silva estava desgastado [tinha feito as declarações que levaram à saída de Marcelo da TVI] e era preciso dar alguma satisfação à contestação que havia, era importante fazer equilíbrio. Eu teria de dar um sinal nesse sentido. Na prática, quase sugeriu a substituição do ministro, sem o dizer diretamente”, escreveu Santana.
Esta informação também consta da biografia de Sampaio, mas a fonte é o próprio livro de Pedro Santana Lopes. Onde as duas versões coincidem é que Sampaio comunicou ao primeiro-ministro que ia vetar o diploma da chamada “central de comunicação” do Governo, o que fez passados poucos dias. Sobre Rui Gomes da Silva, um dos seus melhores amigos, Santana Lopes disse que a substituição estava “fora de questão”. Mas admitia “resguardá-lo um pouco mais”, retirando-o dos Assuntos Parlamentares. A ideia era passá-lo a ministro-adjunto, cargo que era ocupado por Henrique Chaves — outro dos melhores amigos de Santana — que ficaria apenas com as pastas do Desporto, Juventude e Reabilitação. Nuno Morais Sarmento passava a acumular, assim, a Presidência do Conselho de Ministros com a pasta dos Assuntos Parlamentares.
A meio da semana seguinte, deu-se a tomada de posse. Num primeiro contacto por parte de Santana, Chaves aceitara a perda das funções como ministro-adjunto, mas depois diria a Santana que não estava para “tanta despromoção”. E recusava tomar posse. Discutiram ao telefone. Quando o primeiro-ministro respondeu que se ele não aceitasse o Governo poderia cair, Chaves responderia: “Quero lá saber que caia o Governo!” Mas acabaria por aceitar. Jorge Sampaio não fazia ideia da fragilidade da nova configuração governativa. A remodelação ministerial havia de consumar-se com uma cerimónia no dia 24 de novembro no Palácio de Belém, mas a tomada de posse dos secretários de Estado passaria para sábado, por razões de agenda. Por outras razões de agenda, voltaria a ser adiada para segunda-feira (com mais peripécias pelo meio, como as notícias de que Santana adiara a posse porque tinha um casamento, o que não fazia sentido porque eram a horas diferentes).
Nesse sábado, dia 27 de novembro, Cavaco Silva publica no Expresso o texto “A Lei de Gresham”, onde escreve, sem mencionar o nome de Santana Lopes, que a boa moeda na política tem de expulsar a má moeda, para não acontecer como na economia e nos mercados — em que a má moeda prejudica a boa moeda. Era mais uma punhalada no Governo PSD/CDS, mas vinda diretamente do seu lado da barricada.
Apesar de o país político estar a ferver há semanas, Sampaio aproveitava o domingo para ir ao cinema. Apesar de tudo, Santana achava que em Vila Pouca teve “a maior receção popular” que alguma vez tinha visto um primeiro-ministro ter. Apesar de procurar manter o sangue-frio, o primeiro-ministro faria naquele cine-teatro o célebre discurso da “incubadora”, um Governo acabado de nascer que recebe pontapés de toda a gente. Apesar de cansado, nessa noite ainda havia de ir a uma discoteca ao aniversário de um amigo — Luís Horta e Costa —, o que não ajudaria à sua imagem pública e causaria mais uma onda noticiosa sobre a vida pública e privada do primeiro-ministro. Enquanto regressava de Trás-os-Montes para Lisboa combinou com Sampaio pelo telefone uma audiência às 9h em Belém. A maioria estava por um fio.
O mistério desvendado da noite de segunda para terça
O primeiro-ministro e o Presidente da República reúnem-se às 9h30 de segunda-feira. Versão de Santana Lopes: “Jorge Sampaio pergunta logo de entrada: ‘O que me diz sobre tudo isto?’ O Chefe de Estado manifesta-se surpreendido pelo teor das acusações de um ministro [Henrique Chaves] sobre quem ‘havia a ideia de que fazia parte do núcleo duro’”. E garante-lhe “três vezes que não vai dissolver”. Santana escreveu:
“Sampaio disse que não estava em causa a continuação do Governo. E que também não devia haver uma grande remodelação, porque isso ia aumentar a instabilidade. (…) Quarta-feira venha cá outra vez. Está fora de questão dissolver agora, o que não impede uma avaliação daqui a uns meses.”
O primeiro-ministro sai do Palácio de Belém convicto de que vai continuar no cargo. “O Presidente disse três vezes”, revelou no livro de 2006: “Não está em causa o Governo. Não venha cá como o engenheiro Guterres que vinha a correr, mal caía um ministro, trazia-me logo outro. As pessoas compreendem que um primeiro-ministro precise de tempo.”
Versão de Sampaio. O primeiro-ministro pensa que pode “remodelar mais a fundo ou apenas substituir o ministro”. Caso vá mais longe, quer substituir José Luís Arnaut no Ministério do Ambiente e das Cidades. Sampaio anota no seu caderno a resposta que dá às dúvidas de Santana Lopes: “Acho que devia ir pela substituição simples” e que ele próprio, Santana, “tem de ser a solução e não parte do problema”. Esta frase consta dos dois cadernos. Ficam de se encontrar dois dias depois, na quarta-feira. Mas, a pedido de Santana, a chefe de gabinete de São Bento liga a Belém a pedir para a reunião ser logo no dia seguinte, terça-feira, às 19h30. Não havia razões para prolongar a agonia por mais dias. Quanto mais depressa houvesse ministro, mais depressa passava a crise.
Nessa tarde, o primeiro-ministro almoça em São Bento com alguns ministros: Morais Sarmento, Gomes da Silva, Paulo Portas, Luís Nobre Guedes e Álvaro Barreto. A partir daqui, Santana Lopes está no escuro. Indagará sempre o que aconteceu nas 24 horas seguintes para Jorge Sampaio ter mudado de opinião. José Pedro Castanheira conta o que aconteceu ao longo desse dia e dessa noite e explica como o Presidente tomou consciência de que “estava farto do Santana” e que era preciso ir para eleições.
As horas decisivas para a mudança de opinião de Sampaio
A seguir à reunião com Pedro Santana Lopes, o Presidente reúne a sua equipa. Quer ouvir opiniões, como faz de vez em quando. Os assessores vão falando à vez. Segundo a biografia, Fernando Marques da Costa, assessor político, diz que não há espaço para mais “episódios burlescos”, mas o caso Chaves não chegava para a dissolução. Nuno Brederode dos Santos e José Manuel dos Santos discordam de Marques da Costa. Para o primeiro, Pedro Santana Lopes é “errático, irresponsável e imoral”, com zero de sentido de Estado. O Governo “desmoronou-se”, argumenta o segundo. Elisabete Caramelo, assessora de comunicação, coloca o próprio Sampaio dentro da equação, uma vez que deu posse a Santana contra a opinião de toda a sua base de apoio: “O descrédito do Governo está a cair em cima do Presidente”. O advogado Manuel Magalhães e Silva é incisivo: “É agora evidente o que não era em julho”. O primeiro-ministro não presta.
Terminado o encontro — enquanto o primeiro-ministro almoça com os ministros — o Presidente partilha a mesa com João Bonifácio Serra, Salgado de Matos e Magalhães e Silva. O último, que até tinha defendido a posse de Santana no verão, está determinado: “É preciso cortar com a degradação”. No almoço, “rebonina” todos os acontecimentos das últimas semanas. São os “episódios” a que fará alusão no seu discurso a anunciar a dissolução, mas que nunca enumera nem concretiza. Sampaio reconhecerá esse erro ao seu biógrafo, que elenca esses episódios no livro.
Um dos argumentos de Santana Lopes para questionar a decisão de Sampaio era exatamente esse. Afinal, que “episódios” eram esses? “Quando um chefe de Estado faz o discurso de dissolução justificando-o com episódios… Que episódios? Ao tomar uma atitude drástica, o PR deve apresentar uma causa da maior gravidade — e isso nunca conseguiu fazer”, escreveu o ex-primeiro-ministro nas suas memórias.
Os episódios eram múltiplos e valiam pelo conjunto. Tudo começou na tomada de posse, com o discurso falhado, mal lido e mal preparado, e com as mudanças nas pastas dos secretários de Estado à última hora. A seguir, foi o atraso na colocação dos professores, os problemas com as taxas moderadoras na saúde, a polémica do barco do aborto, contra o qual o ministro da Defesa mandou avançar uma corveta “sem informar o Presidente”, o que o levou a “pedir explicações ao primeiro-ministro”. Depois, a saída de Marcelo da TVI, o veto à central de comunicação, a demissão de José Rodrigues dos Santos da direção de informação da RTP, por causa da ingerência na colocação de correspondentes, as demissões na cúpula da PSP e as suspeitas da ilegalidade de uma casa de Nobre Guedes na Arrábida.
Mais: quando se deu a transformação do Instituto de Estradas de Portugal em Estradas de Portugal EPE, o Presidente enviou um documento com questões ao primeiro-ministro por duas vias: uma para o gabinete de São Bento e outra entregue em mão pelo próprio Sampaio. O Governo nunca respondeu, na versão da biografia, porque “Santana diz que perdeu (!)” o documento.
Ao fim da tarde dessa segunda-feira, Jorge Sampaio participaria na assembleia-geral da COTEC, “com a nata dos empresários portugueses”. Aqueles que há quatro meses apelavam ao Presidente para nomear Santana para manter a estabilidade, achavam agora “que não era possível continuar com este governo”. Quando entrou no carro com o Presidente, Laplaine Guimarães, outro assessor, comentava: “Até estes estão fartos do Santana”, revela Castanheira.
Às 22h, Santana Lopes telefona ao madeirense Miguel Sousa e convida-o para o lugar de Henrique Chaves. Uma hora depois, Santana recebe um telefonema aflito da sua assessora política, Inês Dentinho. Diz-lhe ter notícias de Belém de que Sampaio tinha decidido dissolver. “Lembro-me que até me indispus com ela, reafirmando que o PR me garantira, por três vezes: não dissolvia”, descreveu Santana no seu livro. “Disse que o ministro já estava escolhido e Belém informada”. Mas Inês Dentinho insistia: o Presidente tinha alterado a decisão nessa noite, depois de ter falado com alguns empresários “da área política do Governo”.
No entanto, é só quando chega a casa que Sampaio acaba por formar uma decisão definitiva. Volta a chamar o seu amigo Magalhães e Silva e conversa longamente com ele. Chega a uma conclusão: “Não há outra saída senão eleições”. Sampaio pensa ouvir Vítor Constâncio, governador do Banco de Portugal, mas hesita porque já passa da meia-noite. Magalhães e Silva argumenta: “O Jorge Sampaio não vai incomodar o Vítor Constâncio, mas o Presidente da República tem todo o direito de telefonar ao Governador do Banco de Portugal a qualquer hora do dia”. Magalhães e Silva, que conta o episódio a José Pedro Castanheiro na biografia, ouve a conversa: “O Constâncio não se mostrou nada preocupado, disse que até talvez fosse melhor continuar a viver dos duodécimos”.
Sampaio despede-se de Magalhães e Silva e diz que vai pensar. Às sete da manhã, segundo o biógrafo, telefona ao amigo: “É para te dizer que vou chamar o primeiro-ministro a Belém”. Ia convocar eleições.
O dia da queda de Pedro Santana Lopes
É manhã de terça-feira, dia 30 de novembro. O primeiro-ministro está ansioso. Inês Dentinho volta a insistir no que lhe disse uma “fonte” de Belém: “Ontem à tarde as coisas estavam calmas, hoje já não estão”. Santana pergunta várias vezes à sua chefe de gabinete, Ana Costa Almeida, se já falaram de Belém a confirmar o pedido de antecipação da reunião que era para ser quarta-feira. Às 10h30 ainda não lhe tinham dito nada. Entretanto, ia recebendo telefonemas de outras pessoas bem informadas a repetir a tese da dissolução.
O chefe do Governo só começa a receber telefonemas de Belém no seu telemóvel à hora do almoço. Não atende porque está com o primeiro-ministro de Cabo Verde, José Maria das Neves. Fala com Jorge Sampaio às 14h45, que lhe pede para estar em Belém às 18h.
“Disse que a conversa da véspera não tinha sido tão profunda quanto pretendia e que queria continuá-la, antes de se centrar nos nossos nomes. Foi o que Jorge Sampaio me disse ao telefone”, escreveu Santana Lopes.
Ao fim da tarde, Jorge Sampaio e Pedro Santana Lopes têm a conversa definitiva.
Versão de Santana. Tinha havido uma reavaliação de que “a possibilidade de indicar um novo ministro ou um secretário de Estado era politicamente coxa”. O Presidente “agradeceu a forma elevada” como tinham tratado de todas as matérias e disse que, apesar de cair o Parlamento, o Governo mantinha-se em funções e o Orçamento do Estado devia ser aprovado.
Versão de Sampaio. O Presidente comunica que vai convocar eleições e Santana riposta lembrando que na véspera lhe tinha dito uma coisa diferente e até já tinha ali o nome de Miguel Sousa, substituto de Henrique Chaves. O primeiro-ministro alega que os dois partidos da maioria continuam “coesos e firmes” e que “não há argumentos de base institucional que justifiquem a dissolução. Jorge Sampaio explica-se assim ao biógrafo:
“Decidi rapidamente: isto não ia a parte nenhuma, era preciso uma nova legitimidade democrática. Ao contrário do que acontecera em julho, achei que devia ser dada uma nova oportunidade à maioria, reconheci que era preciso uma rutura. A maioria estava a desfazer-se e era altamente discutível que tivesse legitimidade política. Tanto mais que o primeiro-ministro não tinha sido eleito. Tomei a decisão praticamente de um dia para o outro, mas já a vinha a congeminar há uns tempos. Sei que foi uma surpresa para muita gente, a começar pelo próprio Santana, mas não podia dizer a ninguém”.
Outra vez Santana Lopes: “Estava ali a ouvir o Presidente da República a dizer que ia dissolver a Assembleia da República, por razões que ele próprio não podia saber bem quais eram. Na véspera tinha-me dito o contrário”. Mas o primeiro-ministro não tenta demover o Chefe de Estado: “Seria uma falta de respeito”, escreve. “Tratar-se-ia de uma atitude indecorosa”. E acrescenta: “Não concebo um Estado a funcionar com o primeiro-ministro a convencer o Presidente para não dissolver o parlamento. Há coisas que não se pedem”. Mas nem valeria a pena.
Santana desafia Sampaio para debate televisivo sobre crise política de 2004
No seu livro, Santana concluiria que “não se tratou de uma conspiração. Nada disso. Mas sim de uma convergência de interesses”. Dos interesses de Cavaco Silva — para chegar à Presidência dali a ano e meio —, de Jorge Sampaio e de Marcelo Rebelo de Sousa. Na sua biografia, Sampaio declara: “Ainda hoje há quem pense que foi tudo uma artimanha, uma dissolução cínica e conspirativa. Mas quem é que hoje em dia , em política, faz previsões a seis meses? E custou-me todas as críticas que se conhecem e uma amizade que durou anos a compor [com Ferro Rodrigues]… Claro que nunca convencerei algumas pessoas. O Miguel Sousa Tavares, continuará a dizer que foi tudo arquitetado, mas não foi. Isso é completamente mentira! Foi uma situação concreta em cada momento — e a última foi uma situação de ruptura.”
Já derrotado, ao sair da audiência derradeira com Sampaio, Pedro Santana Lopes declarou aos jornalistas: “Vou voltar aqui a este Palácio de Belém como primeiro-ministro, porque vou ganhar as eleições”. O resto da história é conhecido.