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Samuel Johnson: o génio por cumprir

Dr. Johnson, criador de dicionários, génio observador que tudo via com profundidade, foi ensaísta de superiores capacidades. Uma nova coleção da E-Primatur marca o regresso do astuto pensador.

Todos conhecemos alguém assim. Gente brilhante, de quem sabemos que virão, ou poderiam vir, grandes obras, conversadores que acrescentam sempre perspetivas sábias ou originais sobre vários assuntos, mais rápidos, mais espertos, mais cultos, que todos os outros. Todos nós, em suma, conhecemos um, ou dois, ou vários, génios. Génios destes, não consagrados, mas em quem admiramos o espírito vivo, capaz de se bater com os grandes da história da humanidade.

A ideia de que muitos destes espíritos morrem sem deixar testemunho perene do seu brilhantismo é atrozmente inquietante. Quantas grandes obras críticas, quantos monumentos filosóficos, se não perderam graças à simples indolência do espírito que se contentou em fruí-las na sua própria cabeça, dando apenas uns vislumbres dessa extraordinária vida interior aos que o rodeavam? A literatura produziu alguns retratos destes homens, embora retratos baços, que poucas vezes atingem a verdadeira dimensão desta personalidade. Vemos paródias a estas consagrações de génios não consubstanciados, como no Pacheco das Cartas de Fradique Mendes, ou desejos deste génio, convicções de uma grandeza futura, como no Lucien das Ilusões Perdidas; mas estes casos partem do princípio de que o tal brilhantismo não é verdadeiro e de que, na verdade, a idolatria social a estes homens é a idolatria devotada aos bezerros de ouro.

Ora, o fenómeno verdadeiramente interessante não são os falsos génios; são aqueles génios que se perdem, que por alguma razão, ou porque não nascem com ambição à altura da cabeça e se contentam com gloríolas privadas, ou porque na verdade têm um temperamento demasiado disperso para se dedicarem com afinco a uma obra séria, ou porque a rapidez da inteligência os lança numa espécie de aborrecimento geral, em que tudo parece demasiado simples ou insignificante para ser tratado; destas figuras, só uma nos surge como um tratamento literário condigno, graças ao miraculoso tratamento de um discípulo igualmente genial e com uma invulgar modéstia literária, capaz de perceber que, sem uma recolha aturada dos seus ditos, o génio do seu mestre nunca seria verdadeiramente compreendido.

A capa de "Ensaios Sobre a Virtude e a Felicidade", de Samuel Johnson (edição da E-Primatur)

Essa figura é Samuel Johnson (1709-1784), um homem que deve boa parte da sua posteridade ao seu biógrafo, John Boswell, também ele um caso fascinante de um tipo muito próprio de génio literário, um génio discreto e quase involuntário, em muitos casos a roçar o impercetível, porque se trata de um génio inteiramente submisso, o génio do editor posto em palavras próprias, que consiste em perceber o que é nos outros realmente importante.

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Não nos enganemos: a reputação de Samuel Johnson não se deve inteiramente a Boswell; o Dr. Johnson foi um dos eruditos mais estimados do seu tempo, um purista da língua reconhecido por todos os académicos, um classicista admirado e um dos escritores mais lidos do século XVIII. A sua caminhada da pequena cidade de Litchfield até ao estrelato, a pertinácia que fez dele um dos primeiros escritores profissionais da modernidade, desdobrado em artigos e ensaios essenciais para a popularização da imprensa, o seu dicionário, tudo isso é impressionante e contribuiu para a sua fama. No entanto, contribuiu essencialmente para a sua fama em vida. O admirável na Vida de Samuel Johnson, de Boswell, é a compreensão que este tem de que aquilo que fez a fama do seu mestre em vida se está, de algum modo, a perder e que, no entanto, há outro lado no Dr. Johnson que faz dele uma figura imortal.

Johnson ficou, antes de mais, conhecido pelo seu dicionário. É um trabalho insano, e que aliás não condiz com a reputação semi-indolente que lhe ficou de uma certa interpretação da vida de Boswell. O que Johnson fez, sozinho, foi uma empreitada semelhante à que a Academia Francesa demorou, em conjunto, meio século a fazer. Um dicionário criado a partir do zero, um dicionário prínceps, por assim dizer, tem qualquer coisa de semelhante ao empreendimento quimérico de contar tudo o que existe; imagine-se o que é, a partir do nada, contar toda a linguagem. É claro que este trabalho impressionante – e o de Samuel Johnson é feito com todo o rigor que só um batalhão de linguistas conseguiria – bastaria para impulsionar a reputação de Johnson; no entanto, criaria uma reputação que encontramos em cientistas, matemáticos, físicos, e não em homens de letras.

Johnson era capaz de apreender as particularidades da preguiça ou da capacidade de viver à custa dos outros; o seu temperamento não é relacional, não se preocupa em unir o mundo, mas sim em separá-lo, para que em cada coisa vejamos o que há de próprio: é um analítico, não um sintético.

Ou seja, a reputação dos Newton, dos Keplers, é essencialmente uma reputação histórica, e o destino da sua produção é tornar-se obsoleta: os trabalhos científicos, como um dicionário, são permanentemente corrigidos, de tal modo que ninguém lê hoje um tratado de Galileu sem ser por interesse histórico. Para uma compreensão da Astronomia há obviamente obras que, por muito que tenham Galileu como o seu chão, estão mais atualizadas. Do mesmo modo, é óbvio que todos os dicionários contemporâneos são mais completos, mais incisivos, do que os de Johnson. A reputação do dicionário pode cinzelar-lhe a estátua de museu, mas nunca lhe daria a eternidade própria dos grandes homens de letras, a eternidade viva, de quem pode sempre entrar de novo nas grandes discussões do mundo. Do mesmo modo, as suas paródias de Juvenal, como o seu poema sobre Londres, as traduções de tantos autores clássicos e renascentistas, como a admirável tradução de Poliziano, fazem parte de um mundo e de um tipo de educação que mesmo no tempo de Johnson já começa a desaparecer.

Gibbon, contemporâneo de Johnson, é ao mesmo tempo a grandeza e o declínio desse mundo. O seu conhecimento enciclopédico do mundo antigo, consagrado no mais perfeito e moderno inglês, de algum modo torna obsoletos aqueles poetas de escola, capazes de composições latinas de grande correção e que granjearam fama num mundo das letras em que o latim tinha grande peso. É difícil perceber a reputação coeva de Erasmo, por exemplo, de Castilho, ou de Samuel Johnson, sem esta consciência de que houve um tempo em que o domínio das línguas antigas podia fazer reputações literárias por haver um grau de conhecimento rudimentar destas línguas suficientemente amplo, entre a população instruída, para que a capacidade de versejar no idioma do Lácio fosse suficientemente admirada.

Isto levava também, contudo, a que a tradução fosse encarada de um modo diferente, que também não nos permite usufruir completamente das traduções de Samuel Johnson. Isto é, a tradução tal como a concebia Johnson – sobretudo a tradução de poesia, visto que este também traduziu, por necessidade de dinheiro, muitas obras históricas, em que não parece ter empenhado tanto do seu estilo – não era exatamente um exercício de divulgação como parece ser hoje em dia. A obra traduzida parece-se mais com um modelo de onde surgirá uma prova de capacidade autoral da parte de quem a traduz. O que temos, assim, é que uma grande parte da obra que consagrou Johnson é um híbrido que não satisfaz o leitor contemporâneo, que torce o nariz à tradução infiel e à falta de originalidade literária de uma tradução. Nem a encara como uma verdadeira obra, nem como uma tradução adequada.

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Samuel Johnson entre escritores e intelectuais (gravura do século XVIII): um brilhante conversador, de tal maneira que em parte essa capacidade ofuscou de alguma maneira o escritor

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A biografia que Boswell faz do Dr. Johnson é habitualmente saudada pela reprodução das conversas do mestre, que nos trazem de facto opiniões desconcertantes e inteligentes, que fazem sobressair o génio “contemporâneo” de Johnson. Boswell percebeu o tempo que vinha à sua frente, e conseguiu firmar a reputação de Johnson como um homem de letras do tempo que viria. No entanto, também a forma como consegue explicar o tempo que passou, e o modo como Johnson brilhou nesse tempo, têm uma importância que não pode ser exagerada. Não há testemunho mais completo do ambiente literário inglês do século XVIII, das preocupações dos universitários, do mundo editorial, da popularização da imprensa, do que o trabalho de Boswell.

E se o Samuel Johnson conversador ofuscou de alguma maneira o escritor – e até, como vemos na recente coleção dos seus ensaios editada pela E-Primatur, de uma maneira algo injusta – a verdade é que o livro de Johnson também dá outra dimensão aos ensaios do mestre e os valoriza de uma maneira invulgar.

Os ensaios de Johnson, maioritariamente escritos nos periódicos que animou, como o The Idler ou o The Rambler, têm uma feição estranha para quem esteja pouco habituado às gazetas setecentistas. Dificilmente, hoje, poderíamos encará-los como artigos de jornal. São ensaios morais, filosóficos, afastados da atualidade, com a abrangência e a sprezzatura que encontraríamos numa espécie de Montaigne hiperativo. Johnson não tem propriamente uma filosofia, é mais um daqueles autores cujo pensamento lembra a névoa com que Eliot caracterizava as ideias de Montaigne, visto que nascem mais de uma observação inteligente mas dispersa, e não de um encadeamento filosófico.

Johnson tem um tipo de génio observador que lhe permite ver tudo com profundidade, mas uma profundidade individual, capaz de apreender as particularidades da preguiça ou da capacidade de viver à custa dos outros; o seu temperamento não é relacional, não se preocupa em unir o mundo, mas sim em separá-lo, para que em cada coisa vejamos o que há de próprio: é um analítico, não um sintético.

Nunca se dedicou verdadeiramente a coisa nenhuma, sofria de uma maldição própria das maiores inteligência, que tantas vezes percebem de tudo mais do que todos os outros demasiado depressa para poderem dedicar a alguma coisa verdadeira atenção.

Isto faz, assim, do seu pensamento, um pensamento sobre o qual é praticamente impossível dizer alguma coisa geral. Não há pensamento geral em Johnson, pelo que a única coisa que é possível fazer acerca dos seus ensaios é aprofundar cada um. Johnson não tem a ponderação de Montaigne, pelo que as suas apreciações, apesar de argutas e incisivas, são relativamente rápidas, próprias de quem percebeu imediatamente tudo e se contenta com dar a pista para as implicações daquilo que pensou. É, assim, possível partir de Johnson para falar sobre o modo como encaramos a morte ou sobre a vaidade, mas sempre de um modo particular.

Tudo isto torna difícil dar a perceber, fora do texto, o interesse de Johnson. Qualquer coisa que se diga sobre os seus ensaios parece curta, incompleta e arbitrária, porque se limita a escolher um entre tantos assuntos que assumem para ele igual importância e que estão tão pouco relacionados.

Ora, é aí que, mais uma vez, a biografia de Boswell se revela útil. O modo como Boswell nos dá um raio-x da personalidade de Johnson permite encarar os ensaios de outra forma. Por muito que Johnson tenha escrito, como o volume da E-Primatur o prova, uma quantidade insana de páginas muito trabalhadas, com um estilo admirável (e, de resto, aqui também numa difícil e excelente, pelo ritmo que conserva, tradução) e com uma enorme agilidade de pensamento, Boswell consegue dar-nos a perceber uma indolência mais profunda em Samuel Johnson; Boswell dá ideia de que tudo isto, para ele, era fácil, e de algum modo um adiamento do seu verdadeiro génio. Johnson nunca se dedicou verdadeiramente a coisa nenhuma, sofria de uma maldição própria das maiores inteligência, que tantas vezes percebem de tudo mais do que todos os outros demasiado depressa para poderem dedicar a alguma coisa verdadeira atenção.

Nesse sentido, os ensaios que Johnson dedica à preguiça, ao protelamento das obrigações, os ensaios sobre a consciência de uma morte que virá mas que nem assim é capaz de nos lançar para os nossos maiores desejos, adquirem uma dimensão nova e mais verdadeira, com aquela desarmante sinceridade disfarçada dos melhores auto-retratos. Johnson escreve sobre tudo; mas graças a Boswell conseguimos perceber que muitas vezes escreve sobre si próprio, e é nessas alturas que os seus ensaios, mesmo conservando uma leveza que lhes é dada por um dos estilos mais límpidos da língua inglesa, ganham uma feição subterrânea mais cáustica e mais assustadora, fazendo deles mais do que aquilo que parecem – mesmo quando, de resto, já pareciam extraordinários.

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