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Se lhe apresentassem um projeto científico como original, bem fundamentado e que contribuísse para o avanço da ciência, é razoável que assumisse que esse projeto mereceria uma boa nota e que, muito provavelmente, teria um impacto importante na sociedade. No mínimo, teria nota para passar. Mas não foi isso que entenderam os avaliadores – uma vez, e outra, e outra. Entre os avaliadores que chumbaram estes projetos estão aqueles que disseram a um investigador que usar mosca-da-fruta na experiência não era boa ideia. Ok, mas quem é que falou em mosca-da-fruta? O projeto propunha usar ratos de laboratório.
Os avaliadores que chumbaram estes projetos de investigação e que os deixaram sem financiamento são os primeiros a merecer o chumbo dos investigadores – logo seguidos da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Se lhes custou avaliar quase 4.600 candidaturas, algumas com mais de 100 páginas e 250 linhas de despesas para justificar, também custou aos investigadores submetê-las em inglês e depois ler coisas como: dois mil euros por ano para “papers” (artigo científico, em inglês) não é uma despesa elegível porque é muito dinheiro em papel e toners. O lapso perdoava-se se o processo tivesse sido rápido, mas oito meses para fazer a avaliação e mais três para comunicar os resultados deveria ter dado tempo suficiente para se detetarem tais erros. Todos eles.
Justifica-se assim – e com muitas outras coisas que lhe contaremos de seguida – o nível de insatisfação dos investigadores com o último concurso de financiamento a projetos de investigação e desenvolvimento científico. Isto apesar de nunca, como agora, ter havido tanto dinheiro atribuído ou uma taxa tão grande de candidaturas aprovadas e financiadas. E este é só mais um motivo a somar ao descontentamento generalizado dos investigadores, como ficou claro no Manifesto Ciência Portugal 2018, lançado no dia 21 de maio deste ano e que conta já com mais de cinco mil signatários.
Já esta terça-feira, os investigadores deixaram bem claro a António Costa que estavam de luto, vestiram de negro, vaiaram o primeiro-ministro e viraram-lhe as costas enquanto discursava. Repetiram os protestos a Marcelo na quarta. No encontro Ciência 2018, os investigadores e bolseiros com contratos precários reclamavam a falta de regularização da sua situação profissional, que já devia ter sido concluída ao abrigo do PREVPAP (Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública) e apuparam o ministro.
Muitas das queixas contra as candidaturas aos projetos de investigação repetem-se, outras são tão insólitas que são únicas. O Observador foi ouvir algumas destas histórias, ciente que muitas outras ficaram por contar.
Fase 1: candidatura
“Bateu o recorde da burocracia”
Os projetos de investigação financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) costumavam ser submetidos no site da fundação, numa plataforma criada para o efeito. Mas as candidaturas que se iniciaram a 24 de fevereiro de 2017 tiveram de ser submetidas através do Balcão 2020, na Plataforma de Acesso Simplificado. “Foi um processo de candidatura bastante diferente do tradicional”, diz Hugo Miranda, investigador no Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC), da Universidade Nova de Lisboa. Uma descrição bastante mais suave do que a de outros investigadores. “Era um formulário de uma complexidade incrível”, afirma Joana Sá, investigadora no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC). “Bateu o recorde da burocracia. Já vi candidaturas complicadas, mas esta bateu qualquer outra”, reforça César Mendes, investigador no CEDOC.
Paulo Ferrão, presidente da FCT, sente-se “um bocadinho injustiçado” porque toda a carga burocrática foi atribuída à agência que preside. “Não. Toda a burocracia que derivou dos projetos derivou do facto da submissão ter que ser feita no Portugal2020 e, portanto, isso é uma burocracia tremenda.” Na audição na Comissão de Educação e Ciência, Paulo Ferrão disse que a FCT tinha “cada vez menos relevância” nos processos de financiamento. “Qualquer projeto de financiamento que tenha fundos estruturais, a FCT é um em sete [organismos públicos com papel no processo].”
Com uma série de campos novos para preencher, a maior parte deles não relacionados com o projeto científico, os investigadores viram-se obrigados a gastar muito mais tempo a completar a candidatura. “A parte científica demorou mais ou menos duas semanas a preparar”, diz Joana Sá. “Mas a parte burocrática deu muito mais trabalho às instituições e obrigou a muito trabalho individual de cada pessoa. Gastámos quase o dobro do tempo.” No caso desta investigadora foi tempo desperdiçado, porque o projeto não foi financiado.
Simplificar as compras na Ciência
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As unidades de investigação com financiamento público estavam obrigadas às mesmas regras de contratação e aquisição de material impostas à restante função pública. Isso implicava processos morosos na aquisição de equipamentos e reagentes, que levavam a atrasos nos projetos e à perda de competitividade em termos internacionais.
O Conselho de Ministros aprovou, na passada semana, um decreto-lei que “estabelece as regras aplicáveis à simplificação de processos aquisitivos de bens e serviços e de princípios concursais e de gestão financeira necessários à prossecução de atividades de investigação e desenvolvimento”.
“Fui contratado para fazer ciência, mas passo a maior parte do tempo a tratar de burocracias”, diz César Mendes, referindo-se não só ao processo de candidatura, mas também ao processo de compra de material e reagentes. “Isto é incompatível com a competitividade científica.” Florence Janody, que tem contrato ao abrigo do programa Investigador FCT (para estabelecimento de líderes científicos), concorda. “A FCT está a pagar-me para eu passar um tempo estúpido a submeter candidaturas. Ando a perder tempo sem fazer investigação. É ridículo.”
A 30 de maio de 2017 encerrava o período de candidaturas (13 dias depois do que estava inicialmente previsto). O documento final da candidatura de Joana Sá tinha cerca de 100 páginas. “Tive de justificar mais de 250 linhas de gastos, um a um, e com detalhe.” O formulário e as tabelas eram tantos e tão complexos que muitos investigadores tiveram dificuldades em preenchê-los, especialmente nas instituições onde não existiam gabinetes de gestão de projetos que os pudessem auxiliar.
Para dificultar ainda mais o preenchimento do extenso formulário, muitos campos não avisavam que estavam mal preenchidos. António Jacinto, coordenador do CEDOC, explica que, nas candidaturas anteriores, os pequenos erros eram detetados e as pessoas não conseguiam avançar no processo de candidatura antes de os corrigirem — à semelhança do que acontece com a entrega da declaração de IRS — ou só lhes era pedida correção no momento da assinatura do contrato (para aqueles que tinham financiamento).
Um dos erros mais comuns, a julgar pelo relato dos investigadores, acontecia no campo dedicado à contratação de um pós-doutorado (pós-doc). Era condição obrigatória que a contratação fosse, no mínimo, de 30 meses. E os investigadores sabiam disso. Mas foi um pormenor que lhes escapou na altura do preenchimento. César Mendes enganou-se por um mês, Joana Sá por duas semanas. Um lapso que não foi avisado pelo sistema, nem pelas pessoas responsáveis por analisar se todos os documentos necessários foram entregues. Um lapso que não foi corrigido e que tornou esta e outras candidaturas não elegíveis – embora a FCT não tenha divulgado quantas. O resultado é que a candidatura não seguiu para avaliação científica e os investigadores só ficaram a saber disso um ano depois.
“Este tipo de erro não justifica que o projeto não tivesse sido avaliado”, responde revoltado Vasco Barreto, que por engano colocou 27 meses. “Se o interface informático estivesse bem rodado, teria certamente a capacidade de avisar o investigador para que corrigisse o lapso antes de submeter o projeto”, acrescenta o investigador do CEDOC. Bem rodado ou não, não era suposto que os investigadores fossem sujeitos a esta situação. Em anos anteriores, depois da verificação da documentação, que ditava a admissibilidade ou não da candidatura, os investigadores podiam reclamar da decisão. E só depois é que se iniciava o período de avaliação científica.
O presidente da FCT confirmou, em audição na Comissão de Educação e Ciência, que este era o procedimento: que havia ligar a uma “audiência prévia da admissibilidade da candidatura, onde os candidatos são ouvidos” e só depois a candidatura seguia para avaliação. Depois do anúncio dos resultados haveria lugar a uma outra audiência prévia. Mas A FCT, em resposta ao Observador, disse que “este concurso previa que a fase de audiência prévia só se iniciava depois de comunicados os resultados, independentemente do motivo de não financiamento”.
“Foi um processo perverso. Muito mais complicado que processos anteriores e com uma exigência muito maior nas questões de elegibilidade”, criticou António Jacinto.
Outra das exigências que os investigadores não compreendem é a quantidade de informação que tinham de dar sobre as instituições. Pior, a quantidade de vezes que tinham de repetir a mesma informação. “Cada grupo individual tinha de carregar na plataforma os estatutos do instituto [IGC] e as contas da Fundação Calouste Gulbenkian”, diz Diogo Castro, investigador no Instituto Gulbenkian de Ciência. “Isto nunca tinha sido pedido.” Cada candidatura tinha de introduzir os dados da instituição principal e os relatórios de contas das instituições parceiras. Dados que foram repetidos vezes sem conta, quando podiam estar automaticamente integrados numa base de dados da plataforma, que os investigadores pudessem associar com uma seleção simples.
Os deputados presentes na audição na Comissão de Educação e Ciência também questionaram o presidente da FCT sobre a repetição da informação. “Estamos a trabalhar para que a FCT possa ter um repositório único de informação que já sirva a tudo. O que se passa hoje é que não temos nem sistemas informáticos, nem capacidade de os promover”, respondeu Paulo Ferrão.
“A plataforma [do Balcão 2020] é obsoleta e não está desenhada para grupos de investigação científica”, diz Diogo Castro, que tem muitas críticas a fazer ao processo apesar de ter conseguido financiamento para o seu projeto. Na plataforma anterior, os grupos de investigação eram incentivados a ter parcerias com entidades estrangeiras, agora esse campo nem existia, acrescenta o investigador. “Tivemos de arranjar maneira de explicar isto num texto. A plataforma estava provavelmente desenhada para empresas.”
O presidente FCT concorda: “É, de facto, desadequado — não tenho medo nenhum de dizer isto — ao contexto de projeto científico, mas teve de ser aberto lá. Que culpa tem a FCT?”. Ao mesmo tempo que tentava diminuir a responsabilidade da FCT neste processo, durante a audição na Comissão de Educação e Ciência, Paulo Ferrão tentava não criticar demasiado a plataforma que acolheu as candidaturas. “Não posso dizer mal do Portugal2020. Aquilo foi desenhado para um contexto que não é este. Aquilo é desenhado para um contexto que é de grandes projetos, que tem componentes regionais, que tem muitas empresas.”
Fase 2: Avaliação
28% das candidaturas foram consideradas não elegíveis
Pelos relatos dos investigadores, houve uma boa parte das candidaturas que foi “eliminada na secretaria”, mas não se sabe quantas porque a FCT não divulgou esses resultados. Ou melhor, divulgou quantas candidaturas tinham sido consideradas não elegíveis, mas havia mais um motivo (ou dois) que poderia ter colocado as candidaturas nesta condição. A avaliação da candidatura tinha em conta dois critérios: o critério A, relacionado com o mérito científico, e o critério B, relacionado com o impacto – uma exigência dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI) que financiaram parte dos projetos. Os projetos, para serem considerados elegíveis tinham de ter, no mínimo, 3 pontos em 5 para cada um destes critérios. “Este mínimo de 3 pontos nunca tinha existido”, refere Paulo Pereira, antigo vice-presidente da FCT. “Se fosse só para o critério científico até se compreendia”, considera António Jacinto. “Assim, parece uma forma de poder dizer que houve uma percentagem alta de financiamento porque os não elegíveis não entraram nas contas.”
Hugo Miranda esforçou-se por ter boa nota no critério B. Gastou várias semanas para conseguir alinhar o projeto com a Estratégia de Inovação Regional para a Especialização Inteligente (RIS3), com a Estratégia de Investigação e Inovação para uma Especialização Inteligente (EI&I) e com os desafios societais previstos no Horizonte 2020 (Programa-Quadro Comunitário de Investigação & Inovação). Para isso, teve de alinhar o seu projeto na área da Saúde com algumas das linhas de ação prioritária: Turismo e Hospitalidade, Mobilidade e Transportes, Meios Criativos e Indústrias Culturais, só para dar alguns exemplos. O esforço compensou e passou neste critério com boa nota, mas mesmo assim ficou pelo caminho (já lá vamos).
De onde veio o dinheiro para os projetos?
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Aquando a abertura das candidaturas em 2017, a FCT previa que 58 milhões de euros viessem dos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, 32,1 milhões de euros do Orçamento de Estado e 20 milhões de euros da dotação orçamental da FCT, num total de 110,1 milhões de euros.
Um ano depois, quando saíram os resultados, a FCT anunciou a atribuição de quase 375 milhões de euros. O site da fundação não apresenta nenhum esclarecimento para a origem deste montante.
FCT
Como grande parte do dinheiro vem dos fundos estruturais, a FCT tem de apresentar uma justificação dos gastos e dos impactos à União Europeia. “A FCT deveria ser a beneficiária direta dos fundos estruturais e apresentar à União Europeia que projetos estavam alinhado com a RIS3 ou não”, afirma PP. “Assim, o ónus está do lado das instituições que têm de justificar, individualmente, se estão alinhadas com estes critérios ou não”, lamenta. “O problema é que os fundos estruturais não foram feitos para financiar ciência, foram feitos para construir estradas e pontes. As regras são demasiado complexas e fazem com que seja difícil para os investigadores gastarem o dinheiro que lhes foi atribuído.”
Helena Vieira, investigadora no CEDOC, sugere é que seja a FCT a “justificar a globalidade dos projetos financiados de uma forma macro”, em vez de obrigar cada projeto a apresentar por si uma justificação. É que, para projetos de investigação básica – como a que vai ao pormenor do que se passa no interior das células –, o impacto não decorre da aplicação imediata do conhecimento, mas esse conhecimento pode ser usado em futuros projetos de investigação aplicada. Estes projetos de investigação aplicada ou translacional são os que podem ter um impacto mais direto — ou, pelo menos, mais próximo — na sociedade.
Os candidatos nas áreas das ciências sociais e humanidades têm uma queixa semelhante: “a necessidade de justificar o impacto público dos projetos à luz de critérios que dificilmente podem ser aplicados nestas áreas, sobretudo no que se refere à ‘estratégia de investigação inteligente’ [EI&I] e às prioridades temáticas das CCDR [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional]”, diz José Luís Cardoso, diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
O facto de perderem mais tempo com burocracias e justificações de impacto do que com a parte científica deixou os investigadores aborrecidos, mas a revolta está na falta de qualidade da avaliação, com argumentações que não parecem referir-se ao projeto em causa, com candidaturas eliminadas com base em projeções ou com painéis de avaliadores questionáveis.
Quando os argumentos nada têm a ver com o projeto
“Acho que o meu projeto não foi lido”
Voltamos à história de Hugo Miranda. Mesmo depois do esforço para integrar as prioridades regionais e ter conseguido uma boa nota, o projeto do investigador não foi proposto para financiamento por razões que na opinião do próprio “desrespeitam a capacidade científica”. A nota na avaliação científica foi 2 em 5. E isto apesar de os avaliadores terem começado por dizer que a área que se propunha investigar – diabetes na doença de Parkinson – era de extrema importância.
“O argumento mais forte que ditava a não aprovação era que, na opinião do avaliador, não fazia sentido usar mosca-da-fruta como modelo animal para esta doença”, conta. Hugo Miranda não concorda com a opinião do avaliador, mas até podia aceitá-la, o problema é que em sítio nenhum do projeto o investigador se propunha usar a mosca-da-fruta como modelo. Mais, na proposta, o investigador apresentava um esquema ilustrado para as quatro tarefas que se propunha desenvolver e nele constavam: seres humanos, para uma tarefa de ensaios pré-clínicos com sangue de doentes; ratos, para os validar como modelo animal na doença de Parkinson e nos objetivos do projeto; e linhas celulares, com o objetivo de usar as células para testar um leque alargado de drogas e escolher quais as melhores para usar nas experiências com os ratos.
Outro dos argumentos apresentados pelos avaliadores é que o projeto estava baseado sobretudo em linhas celulares. Como referido essa era apenas uma das tarefas para fazer a seleção das drogas anti-diabéticas. “Esta tarefa não poderia ser realizada em ratos, porque iria requerer um número extremamente elevado de animais, violando assim os principais princípios éticos associados ao uso destes modelos.” À luz destes dois argumentos tão desenquadrados Hugo Miranda só pode tirar uma conclusão: “Acho que o meu projeto não foi lido. Não consigo considerar esta avaliação como válida.”
Margarida Amaral, investigadora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), também poderia dizer que dizer que o seu projeto não foi lido ou, pelo menos, não foi bem lido. Embora tenha recebido financiamento para o projeto, um dos comentários dos avaliadores dizia que: “Não tinha ninguém na equipa com experiência em química-física”. Realmente não tinha, mas também não tinha proposto nenhuma tarefa nessa área, conta a investigadora.
Quando os argumentos não fazem sentido
“Não faz sentido que um projeto muito bom não tenha impacto”
Se ainda está recordado, uma nota abaixo de 3, em qualquer um dos critérios, tornava a candidatura não elegível. Foi o que aconteceu com Florence Janody, investigadora no Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), que teve uma boa nota na avaliação científica (4,52), mas uma nota fraca no critério B relativo ao impacto. “Não faz sentido que um projeto muito bom não tenha impacto. Não tem lógica.” A justificação é que “não tinha aspetos translacionais suficientes”. A investigadora lembra que era claramente um projeto de investigação básica na área dos mecanismos de desenvolvimento do cancro. “Sem investigação básica não há inovação. Este é conhecimento para fazer translacional mais tarde”, diz. “Falta pensar a longo prazo.”
O “impacto societal limitado” foi também uma das críticas ao projeto de um investigador da Universidade de Lisboa que preferiu não ser identificado (para facilitar vamos chamar-lhe Luís Santos). “Claro. Como é que se pode esperar que um projeto de investigação a três anos possa produzir novos medicamentos para a prevenção ou tratamento de uma doença?” O investigador lembra que estes projetos têm, no máximo, um financiamento de 240 mil euros, que não se pode comparar com o nível de investimento feito pelas farmacêuticas.
Mas os problemas com a avaliação foram muito maiores do que este desfasamento com a realidade. Este investigador denuncia “erros factuais na avaliação das propostas e nos currículos e um desajuste entre o conteúdo da fundamentação e a nota”. Para começar, os avaliadores consideraram que “o projeto era original e ia contribuir para o conhecimento da doença”. Depois avançaram para a primeira e principal crítica: a proposta não é sustentada por resultados preliminares. “Contei pelo menos 10 referências expressas a resultados”, diz o investigador. “Os elementos desta equipa já colaboram há vários anos e reuniram um elevado conjunto de publicações com resultados preliminares.”
Na argumentação que enviou à FCT a pedir a revisão da sua candidatura, o investigador questiona o desajuste entre os comentários feitos pelos avaliadores e as notas atribuídas em cada um dos itens. O comentário dizia que “os work packages [tarefas] estavam bem pensados e que refletiam o estado da arte”, mas teve 3,5 pontos em 5. Sobre a razoabilidade do orçamento, os avaliadores referiram que “estava extremamente detalhado e que os custos estavam equilibrados”. A nota foi 4 pontos em 5. “Se traduz adequação completa porquê só 4?”, questiona o investigador.
Quando o mérito da equipa é questionado
“Como é que a equipa é adequada se é composta por incompetentes?”
A reclamação apresentada pelo investigador da Universidade de Lisboa à FCT, a que o Observador teve acesso, contempla ainda outro tipo de queixas. Os comentários ao mérito da equipa deixaram-no completamente incrédulo (para dizer o mínimo). “O investigador principal tem um ‘poor publication record’ [registo de publicações fraco] e o co-investigador principal tem um registo decente, mas não excecional.” Luís Santos, o investigador principal, conta que tem 47 anos e 107 artigos científicos em revistas internacionais com revisão por pares, enquanto o co-investigador principal, um pós-doc sénior do seu laboratório, tem 12 artigos científicos publicados. O investigador acrescenta ainda que as suas publicações já lhe valeram 2.800 citações (nas referências bibliográficas de outros artigos científicos) e que tem um índice H de 30 (ou seja, tem 30 artigos que foram citados, pelo menos, 30 vezes). “De maneira nenhuma isto é um ‘poor publication record’.”
E os comentários continuaram. “Começam por dizer que ter uma equipa multidisciplinar e multinacional é favorável”, conta o investigador. “Depois dizem que propomos um plano de publicações ambicioso e que não é realista. Isto é um erro grosseiro de análise.” O investigador explica porquê. Nos três anos de projeto, a equipa composta por um vasto consórcio internacional propôs-se publicar 10 artigos científicos em revistas científicas, dois artigos de revisão e dois capítulos de revisão. Isto para o investigador faz sentido, só o seu grupo de investigação publicou nos últimos três anos 14 artigos. Luís Santos volta à argumentação inicial: “Há um desajuste entre o texto da avaliação e a nota atribuída. Como é que a equipa é adequada se é composta por incompetentes?”
Quando a avaliação se baseia nas publicações e teses
“Não faz sentido tornar um projeto não elegível com base em previsões”
O número de artigos e publicações científicas era um dos itens avaliados no critério B, assim como o número de teses de doutoramento e mestrado. Mas estes números são apenas estimativas, estão dependentes da evolução dos projetos. O problema é que uma má avaliação nestes campos pode fazer com que a nota do critério B seja inferior a 3 e os projetos sejam considerados não elegíveis para financiamento. “Não faz sentido tornar um projeto não elegível com base em previsões”, diz Helena Vieira, indignada com a situação. “Recebo financiamento da FCT desde 1999 e é a primeira vez que vou fazer uma reclamação.”
Helena Vieira candidatou-se com um projeto na área das Neurociências: a identificação de marcadores de AVC (acidente vascular cerebral) para ajudar no diagnóstico e prognóstico do doente. Na parte da avaliação científica conseguiu uma boa avaliação — 4,09 em 5 –, mas não vai receber financiamento porque na parte do impacto não ultrapassou os 3 (ficou com 2,65). Para os três anos do projeto a investigadora propunha publicar 10 artigos científicos em revistas internacionais, quatro em revistas nacionais e dois capítulos de livros. Nada que fugisse do razoável visto que nos últimos três anos a investigadora tinha publicado 15 artigos e o co-autor do projeto tinha publicado 24. Mas o resultado da avaliação é que “a estimativa era muito alta”. Helena Vieira justifica que a parte clínica pode ter muitas publicações, ainda que tenham um fator de impacto baixo.
Do lado do número de teses recebeu uma resposta inversa. Propôs 11 teses, entre doutoramentos e mestrados. Explica que isto não querer dizer que se iniciem e terminem todas nesses três anos, mas mesmo assim acha que exagerou. O júri não achou o mesmo. Considerou que eram poucas teses tendo em conta que existiam vários doutorados na equipa. “Orientadores somos só dois, os outros doutorados na equipa são para tarefas específicas”, explica Helena Vieira. Ou seja, os outros doutorados não podem orientar alunos nas suas teses e duas pessoas com 11 teses para orientar já é uma missão desafiante.
Na avaliação de Florence Janody, a proposta de um doutoramento e dois mestrados também foi considerado insuficiente. “Para mim foi honesto”, diz a investigadora. “Não é possível ter mais estudantes. Quando temos muitos estudantes não é possível que todos eles publiquem como primeiro autor.” A publicação de um ou mais artigos como primeiro autor é uma exigência comum para a conclusão do doutoramento. Sem contar com a importância que tem para o currículo do investigador.
“No instituto tivemos um caso de um projeto que propunha integrar um aluno de doutoramento e dois de mestrado e teve uma classificação baixa (3), outro que só propunha um doutoramento e teve a classificação máxima nesse item (5)”, conta Margarida Amaral. Os critérios de avaliação são arbitrários acusou Hugo Miranda. “Propus mais teses e tive pior nota que outros que propuseram menos teses”, conta o investigador.
Nas submissões das propostas umas pessoas foram mais conservadoras que outras, mas não se pode dizer que, entre estas, umas tenham sido mais prejudicadas do que outras porque a avaliação pareceu, aos investigadores, completamente arbitrária. Margarida Amaral conta que um investigador do Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (na FCUL), publicou em 12 anos 15 artigos científicos. Apesar de não acreditar que consiga publicar agora cinco artigos em três anos foi isso que apresentou na proposta. E foi bem avaliada. Outro colega que propôs dois artigos científicos em três anos teve pior nota porque foi considerado pouco, mas, para a investigadora, era uma proposta razoável.
Florence Janody tem uma situação semelhante: propôs-se publicar dois artigos em revistas muito boas, em três anos de projeto. “Para mim já é muito. Para conseguir publicar na Cell [uma revista científica conceituada] são precisos cinco anos de trabalho e várias pessoas envolvidas”, explica. “Outros colegas conseguiram ter nota melhor com a mesma produtividade. Depende da pessoa que fez a avaliação. Parece ser uma questão de sorte.” O critério B foi avaliado por regiões diferentes, por técnicos diferentes, que fizeram avaliações diferentes, tornando os projetos não elegíveis quase de forma aleatória, acusa António Jacinto.
A FCT disse ao Observador que três dos quatro itens do critério B eram “avaliados pelo painel de peritos da respetiva área cientifica”: potencial de valorização do conhecimento (B2), o efeito de adicionalidade do projeto (B3) e o contributo para a concretização dos resultados fixados (B4). E que só o impacto estratégico do projeto (B1), quando aplicável à candidatura, é que era avaliado pelos Programas Operacionais (inserção na RIS3) e pela FCT (resposta aos desafios societais)”.
“O processo de avaliação é sempre complexo”, admite Paulo Pereira. Mas, neste caso, foi agravada pela “introdução de componentes incompreensíveis, medidas com recurso a métricas que não eram compreendidas pelos investigadores”, acrescenta. Nem pelos próprios avaliadores. A “adicionalidade” é um conceito medido nos fundos estruturais, mas que não faz sentido quando aplicado à ciência e faz ainda menos sentido quando é mal traduzido, mal definido e mal compreendido, acusa um grupo de investigadores num artigo de opinião no Observador. “A ‘adicionalidade’ definida pela Comissão Europeia assenta no princípio de que a ‘contribuição financeira dos fundos estruturais não deve implicar uma diminuição das despesas estruturais nacionais nas regiões em questão’. Ora, para a FCT este efeito é avaliado, pasme-se, pelo número de teses que os investigadores estimam vir a produzir em cada um dos seus projetos”, escrevem os autores do artigo de opinião.
“O que parece é que não houve uniformização de critérios”, acrescenta Margarida Amaral. “O critério B deve ter sido analisado pelos funcionários do Compete 2020. Não devem estar muito a par do que é a ciência. Não devem ter tido formação de avaliação de projetos científicos.” A investigadora tem razões para pensar assim. No orçamento proposto, uma das rubricas era para a publicação de artigos científicos (“papers”, em inglês). Dois mil euros por ano pediu a investigadora. E até foi conservadora porque publicar em algumas revistas científicas custa mais do que isso. Apesar de a candidatura ter sido feita em inglês, a resposta chegou-lhe em português: a despesa não era elegível porque dois mil euros em papel e toners era muito dinheiro.
Quando se questiona o desempenho dos avaliadores
“Não vejo trabalho de painel”
Muitos investigadores questionam-se como é que é possível ter um nível de qualidade tão baixa nas avaliações? Para Paulo Pereira, antigo vice-presidente da FCT, é claro que falhou o controlo de qualidade por parte da FCT. No mandato que teve na instituição, entre 2012 e 2015, foi criado um gabinete de avaliação, como “existe em todas as agências de financiamento” científico, conta. Este gabinete ajudava na seleção dos avaliadores e acompanhava o processo de avaliação, garantindo a harmonização entre a argumentação e a nota. Mas a nova direção — que muda sempre que muda a cor do Governo — extinguiu o gabinete. “Foi difícil de criar, mas depois da formação de todos os envolvidos estava a funcionar bem”, diz. “É inconcebível que não exista um gabinete deste tipo. É transformar a FCT numa instituição acéfala.”
Mas o problema pode estar um pouco mais a montante, no painel de avaliadores. Alguns investigadores criticam que não conheciam ninguém no painel, o que é estranho quando se supõe que o painel seja constituído por investigadores de excelência na área. Luís Santos aponta outro problema, a possibilidade de ter sido o chefe do painel a escolher os outros elementos, enviesando o trabalho ainda antes de este ter início. “Não sei como é que os painéis foram formados. Há casos de um painel com mais ingleses e outro com mais gregos, as nacionalidades dos chefes de painel.” A FCT respondeu ao Observador que a “seleção dos membros a integrar cada painel de avaliação é efetuada pela FCT tendo em conta as áreas científicas que integram cada um dos painéis”.
Mas pior do que a constituição do painel, é este não ter funcionado como tal. “Cada projeto devia ter um revisor principal e um secundário e não sei se foi assim”, diz o investigador. “Tenho convicções fortíssimas que fui avaliado por uma só pessoa. Não vejo trabalho de painel.” Hugo Miranda concorda. No seu caso tem argumentos começados na primeira pessoa: “in my view” (na minha opinião) ou “I found” (achei). “Pode haver uma primeira avaliação [feita por uma ou duas pessoas], mas depois tem de haver uma reunião para [se chegar a acordo e] não saírem disparates”, diz Margarida Amaral. “Se tivesse sido um processo rápido, podia justificar-se, mas não foi. Foi mais de um ano.”
Fase 3: comunicação dos resultados
Esperar um ano para saber que não se teve financiamento
O período de candidaturas encerrou no dia 30 de maio de 2017. Os resultados começaram a ser conhecidos a 9 de fevereiro de 2018. Como se não bastasse a espera de quase um ano para deixar os investigadores ansiosos, a divulgação a conta gotas só veio agravar a situação. No final de maio ainda havia candidatos que não sabiam o resultado da sua proposta. “Mesmo quando anunciaram o fim do processo, havia pessoas que ainda não tinham recebido a comunicação do resultado”, diz Joana Sá. “Não se sabia que lotes iam saindo, se por área científica, por instituição ou por região”, conta Hugo Miranda. “E isto provocou uma enorme ansiedade. Foi altamente desgastante.” Joana Sá reforça: “Dentro da mesma instituição houve pessoas que souberam em abril e outras em maio.”
Depois, houve casos de comunicação confusa, como aconteceu com Leonor Saúde, investigadora no Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa. O primeiro email, via Compete 2020, chegou no dia 14 de maio, às 15h42, avisando que se encontrava “disponível para consulta [no Balcão 2020] a proposta de decisão referente ao projeto”, mas no email não fazia referência à decisão propriamente dita. Mais tarde, às 16h25, recebeu um email da FCT a informar que a proposta tinha sido considerada de não elegibilidade aos Fundos Europeus Estruturais e de Investimento. Mas no mesmo email indicava que “a candidatura supra identificada foi proposta para financiamento”. “Afinal tive financiamento ou não?”, pensou a investigadora. “Não preciso de saber de onde veio o dinheiro, preciso de saber se tive financiamento ou não.”
Em resposta ao Observador, a FCT explicou que foi o “significativo reforço da dotação do
concurso, que tornou o processo administrativo particularmente moroso e exigente”. Ou seja, o financiamento e consequente comunicação dos resultados aconteceu por fases – três, como explica a agência. Primeiro foram os programas operacionais a dizer que projetos podiam financiar. Depois, dos que estavam acima da linha de corte (que funciona como uma média de entrada na universidade), quais se enquadravam no âmbito do Compete. Por fim, a FCT financiou os projetos que se encontravam acima da linha de corte, mas que ainda não tinham sido financiados por outros fundos. Admitindo os problemas verificados com comunicação dos resultados, o presidente da FCT, durante a audição na Comissão de Educação e Ciência, descartou responsabilidades da agência neste assunto.
A espera foi longa, mas quem teve acesso a financiamento pode respirar de alívio. No entanto, a espera foi igualmente longa para quem viu o seu projeto chumbado na parte científica ou na parte do impacto. Essa espera longa foi a mesma para quem não passou sequer o processo de secretaria, como os investigadores que se enganaram a preencher os 30 meses da contratação de um pós-doc e não tiveram oportunidade de corrigir a situação a tempo de ver a sua candidatura seguir para avaliação científica. “Costuma haver sempre lugar a uma audiência prévia, com o direito de se pronunciarem antes de se seguir com o processo de avaliação”, diz Paulo Pereira. Mas, neste concurso, parece que não foi assim. O presidente da FCT diz que esta audiência prévia devia ter acontecido, a resposta da agência ao Observador diz que não.
A candidatura de Rita Fior, investigadora na Fundação Champalimaud, não ficou retida na secretaria, mas a investigadora também foi prejudicada por não ter sido avisada de um erro nos documentos que enviou. Os avaliadores não conseguiram abrir um ficheiro que continha dados preliminares e apontaram a falta desses dados como a maior fraqueza do projeto. A investigadora garante que não sabia que o ficheiro tinha problemas ou que os avaliadores não tinham conseguido ter acesso a eles, nunca foi contactada para resolver a situação e só descobriu o que tinha acontecido um ano depois, quando recebeu o resultado da avaliação – neste caso, não elegível. “Esta é uma proposta muito interessante de implementação de um modelo de estudo original para investigar a eficácia da quimioterapia em doentes com cancro. O programa é de elevado mérito científico e tem um potencial translacional evidente no que diz respeito ao tratamento personalizado do cancro. A equipa publicou a sua primeira experiência na PNAS [Proceedings fo the National Academy os Sciences], uma revista científica de alto impacto”, escreveram os avaliadores. “Porém, não havia acesso, na aplicação, ao ficheiro com os dados preliminares, relevantes para suportar a credibilidade do programa proposto.”
Quem não ficou satisfeito com o resultado da avaliação ou tem queixas a fazer sobre a classificação de não elegibilidade pode apresentar uma reclamação. Os investigadores não financiados contactos pelo Observador vão fazê-lo, mas a opinião é transversal: é muito pouco provável que os projetos reavaliados sejam financiados, é uma coisa que não costuma acontecer. “A expectativa era que essa margem de reavaliação existisse. No mínimo, é preciso avaliar as reclamações e tirar daí elações”, diz Paulo Pereira. A FCT, em resposta ao Observador, garante que “todas as candidaturas consideradas elegíveis em sede de audiência prévia que obtiverem também avaliação de mérito acima da linha de corte serão financiadas”.
Rita Fior, na Fundação Champalimaud, e Joana Sá, no Instituto Gulbenkian de Ciência, têm a sorte de estar ligadas a duas fundações privadas que lhes garantem algum apoio mesmo na ausência de financiamento, mas nem todos as instituições conseguem manter em funcionamento os laboratórios dos seus investigadores. “O impacto maior [da falta de financiamento] será nos investigadores mais jovens ou que vieram do estrangeiro e que tiveram aqui a primeira oportunidade de se candidatarem a um financiamento. Estes grupos correm o risco de desaparecer, especialmente se estiverem em instituições com menos dinheiro”, diz António Jacinto. Não é o seu caso, visto que teve dois projetos financiados entre os oito que submeteu, mas “há dois ou três grupos na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa que estão em risco de desaparecer”, alerta o coordenador do CEDOC. “Vamos fazer o que pudermos para os manter, mas em termos de competitividade com outros grupos da mesma área vão estar em desvantagem.”
Mesmo os projetos financiados já estão em desvantagem. A proposta foi apresentada no início do ano passado, a primeira tranche do dinheiro atribuído pode só chegar depois de setembro. Até os projetos que eram mais inovadores na altura podem ter perdido a atualidade neste ano e meio que passou. Para quem não teve financiamento o problema é ainda maior. Em 2018 não haverá nenhum concurso para financiamento de projetos e em 2019 também é pouco provável que aconteça – pelo menos é assim que os investigadores interpretam as palavras do ministro da Ciência. “Se não houver concurso em 2019, [os grupos que não tiveram financiamento] podem só vir a ter dinheiro em 2021 e nessa altura não vão ter projetos mais fortes o que têm agora”, comenta António Jacinto.
Apesar de o ministro da Ciência ter anunciado que haveria abertura de concursos a cada dois anos, Paulo Ferrão diz que: “Se não sei qual é o meu orçamento para o ano, dificilmente consigo comprometer-me com certos níveis de financiamento. O mesmo dirão os programas operacionais”. O presidente da FCT volta a referi como a agência tem pouco nos processos e tomadas de decisão. “Há todo um conjunto de contexto de que a FCT faz parte, mas não controla, nem comanda.”
Os investigadores pedem concursos anuais para o financiamento dos projetos
O ministro da Ciência anuncia que será a cada dois anos
Antes de 2017, o último concurso tinha sido aberto no final de 2014. O próximo não se sabe quando vai acontecer. E os investigadores que não têm outras fontes de financiamento não sabem com o que podem contar. “O Governo põe ênfase em diminuir a precariedade na investigação, mas esta imprevisibilidade ameaça aumentar essa precariedade”, refere António Jacinto.
Esta falta de regularidade na abertura dos concursos é uma das mais fortes críticas que os investigadores – mesmo os investigadores séniores e com projetos financiados – apontam à FCT e ao ministro da Ciência. No Manifesto Ciência Portugal, lançado a 21 de maio de 2018, os signatários pedem “ao Governo e à Assembleia da República que reconheçam urgentemente a necessidade de traçar um rumo de médio e longo prazo para a Ciência em Portugal”. Há pelo menos três eixos que consideraram fundamentais: “um financiamento consistente e transparente, com pelo menos um concurso anual de projetos para todas as áreas científicas; um ‘simplex’ para a ciência, simplificando plataformas, formulários, regulamentos e limitando estrangulamentos burocráticos; uma política de contratação regular e coordenada, baseada no mérito e respeitando investigadores e instituições”.
O Conselho Ministros do passado dia 28 de junho apresentou uma série de medidas que parecem ir de encontro às recomendações dos signatários do Manifesto: um simplex para a ciência – “Mais ciência, menos burocracia” –, com um novo ; que as bolsas de doutoramento e os concursos de emprego científico passam a ser atribuídas todos os anos; os concursos de emprego científico institucional e de projetos de investigação passam a ser de dois em dois anos. Isto vale enquanto o Partido Socialista estiver no Governo. Quando outra força política ocupar o lugar, pode destituir a direção da FCT e alterar as medidas agora propostas. Esse é outro dos pedidos feitos pelos investigadores: que a FCT não esteja tão dependente da tutela, que tenha mais autonomia.
Apesar das medidas anunciadas, as recomendações dos signatários do manifesto iam mais longe. “A estratégia para a ciência deve ser clara e transparente e os concursos devem ter avisos prévios e estar abertos por períodos suficientemente longos para permitir preparação e a possibilidade de planeamento racional das atividades. A calendarização e o conhecimento prévio dos orçamentos disponíveis para cada concurso são essenciais para os investigadores dirigirem as suas candidaturas para os momentos em que são mais competitivos, reduzindo também assim o volume de candidaturas por concurso.” Só neste concurso foram submetidas 4.593 candidaturas.
O orçamento inicial anunciado pela FCT eram 110,1 milhões de euros – um valor, grosso modo, aproximado dos concursos de anos anteriores. Mas no final do processo, a FCT anunciou que afinal seriam investidos 375 milhões de euros, a maior dotação de sempre para este tipo de concursos. “A credibilidade de um sistema de financiamento avalia-se não pelo dinheiro posto, mas pela qualidade dos projetos de investigação, da avaliação e da seriação dos candidatos”, diz Luís Santos. E, pelo que vimos, os investigadores duvidam da qualidade da avaliação, duvidam que os projetos financiados – pelo menos parte deles – fossem os projetos de maior qualidade científica. “Para distribuírem este dinheiro todo têm de dar dinheiro a projetos que, de outra forma, não seriam financiados”, afirma Joana Sá.
Os investigadores não se deixam ofuscar com o financiamento atribuído e lembram que há três anos que não abriam concursos e que podem passar mais três sem que voltei a ser abertos. “Para a comunidade científica é incomparavelmente melhor ter três concursos, um por ano, do que tudo no mesmo ano”, afirma Joana Sá. “Se fossem atribuídos 100 milhões de euros por ano isso corresponderia a 0,2% do PIB [Produto Interno Bruto] no Orçamento de Estado. O resto podia ser complementado com os fundos estruturais das regiões”, acrescenta a investigadora. “Usar os fundos estruturais para diminuir as disparidades faz sentido, o que não faz sentido é que a ciência dependa destes fundos. O objetivo deveria ser complementar o investimento nacional na ciência, não substituí-lo.”
Adenda (8 de julho, 00:25), com resposta da FCT:
Numa resposta que chegou ao Observador já depois da publicação do artigo, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia garante “o próximo concurso de projetos em todos os domínios científicos está previsto para 2019”, confirmando o que foi decidido em Conselho de Ministros: um concurso a cada dois anos.
A agência esclarece ainda que o “concurso de projetos, não é um concurso da FCT, mas sim de sete entidades” e que por isso se verificou: por um lado, que “a audiência prévia da admissibilidade e a audiência prévia da avaliação decorreram em simultâneo”; e, por outro lado, que mesmo que os resultados pudessem ter sido anunciados todos ao mesmo tempo, teriam de ser sempre feitos por entidades diferentes, ou seja, cada das sete entidades.
A FCT assegura ainda que a “avaliação é feita de acordo com as melhores práticas internacionais” e isso inclui que “todas as candidaturas admitidas sejam avaliadas por dois avaliadores e, quando necessário, com recurso a peritos externos aos painéis de avaliação”. Além disso, todos os painéis têm um coordenador e devem reunir-se para uma “avaliação presencial conjunta para que não haja discrepâncias na avaliação e para coordenar todo o trabalho desenvolvido”.
Corrigido dia 7 de julho às 21h20: Um investigador do Instituto de Biossistemas e Ciências Integrativas (e não Margarida Amaral) publicou 15 artigos em 12 anos.