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Foi preciso esperar quase seis anos e ouvir muitas negas (pelo menos cinco) — do Banco de Portugal, mas também dos tribunais — para a autoavaliação à atuação do Banco de Portugal no caso BES chegar ao Parlamento, em fevereiro deste ano. Mas ainda assim com o selo de confidencial. Aquele que ficou conhecido como o “relatório secreto” de João Costa Pinto (o ex-presidente da comissão de auditoria do Banco de Portugal liderou uma equipa constituída por cinco membros, por si escolhidos, e apoiada pela Boston Consulting Group), era um segredo bem guardado até dentro do próprio supervisor. Não foi discutido internamente, nem distribuído logo pelos principais responsáveis. O Observador teve agora acesso ao documento na íntegra.
A comissão de inquérito parlamentar à gestão do Novo Banco vai pedir ao Supremo Tribunal de Justiça autorização para levantar o sigilo de supervisão ao documento mais famoso da banca portuguesa. E ainda que os deputados reproduzam já, sem grandes reservas, excertos do documento nas audições realizadas — foi o que aconteceu e de forma abundante na audição ao seu principal autor — a resistência do Banco de Portugal de Carlos Costa em permitir o acesso ao documento terá tido o efeito contrário ao pretendido. O segredo só deu força à tese do falhanço do supervisor bancário no acompanhamento do Banco Espírito Santo e na intervenção para remover o “banqueiro mais poderoso” de Portugal.
Isso mesmo alertou João Costa Pinto, para quem o relatório já deveria ter sido tornado público há muito tempo. Como não foi, “acaba por ser mitificado. Acabamos por começar a ver lá coisas que nem estão lá. Mas não é a Bíblia, nem Testamento. É a opinião da comissão”. Por outro lado, disse no Parlamento, “se o Banco de Portugal não reconhecer que errou, nada vai mudar”.
Mariana Mortágua — o Bloco tem sido o partido mais insistente a pedir o documento — e depois de o ler o relatório Costa Pinto — defendeu a sua divulgação pública, considerando que não há razões para que não possa ser conhecido.
O documento mais pedido nos inquéritos à banca
A primeira nega ao Parlamento aconteceu em maio de 2015, logo a seguir à conclusão da comissão parlamentar de inquérito à gestão do Banco e do Grupo Espírito Santo. O documento não estava na extensa lista de pedidos feita durante os trabalhos, porque a sua conclusão coincidiu com o fim dos trabalhos, mas a iniciativa tinha sido referida por Carlos Costa nas suas (duas) audições. Já depois de conhecido o relatório final, o governador recusou pela primeira vez perante o Parlamento revelar o documento, invocando ser um assunto interno e protegido pelo sigilo bancário.
Carlos Costa vai manter secreta a auto-avaliação sobre actuação na crise do GES
A mesma resposta foi dada um mês depois, mas com uma longa fundamentação jurídica, em resposta a um requerimento apresentado pelo PS, então subscrito por Pedro Nuno Santos, o coordenador do partido na comissão de inquérito. Neste parecer era assinalado que o “Banco de Portugal não é politicamente responsável perante a Assembleia da República”.
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Semanas antes, o Banco de Portugal tinha apenas divulgado as recomendações produzidas no documento, cuja coordenação foi liderada por João Costa Pinto.
Auditoria. Banco de Portugal deve ser mais rápido e não recear conflitos
Mas o tema da avaliação interna não larga o governador, que semanas depois volta ao Parlamento para uma audição que é um exame à sua atuação no cargo, após ser conhecida a decisão do Governo de Passos Coelho de o reconduzir num segundo mandato, a escassos meses das eleições legislativas e contra a toda a esquerda.
Governador do Banco de Portugal vai a exame. Passará nestas perguntas?
Nesta audição, Pedro Nuno Santos – o deputado socialista que coordenou os trabalhos da comissão de inquérito ao BES – perguntou se a decisão de não publicar a auditoria interna tinha como objetivo proteger o governador, porque esta poderia fornecer munições para uma não recondução no cargo. “Se não era para revelar porque anunciou no Parlamento? Em que medida a proteção dos clientes, dos bancos e do sistema financeiro fica em causa com a revelação do documento?”, questionou Pedro Nuno Santos.
“Estou tranquilo quanto ao conteúdo da auditoria”, respondeu Carlos Costa, que insistiu na tese do sigilo de supervisão para não entregar o documento. Nas comissões de inquérito seguintes ao setor bancário, à Caixa e ao Banif, o relatório interno à atuação do Banco de Portugal no caso BES voltou a ser pedido. Em ambos os casos o Banco de Portugal voltou a negar o acesso.
Em maio de 2016, uma notícia do Jornal de Negócios levantou um pouco do véu ao que até então escondia o documento, revelando que as críticas à atuação do Banco de Portugal no caso BES recuavam ao tempo de Vítor Constâncio. A intervenção da deputada do CDS Cecília Meireles na audição recente a João Costa Pinto assim o confirmou: “A exposição ao Grupo Espírito Santo é a história de um desastre à espera de acontecer”. Desde o ano de 2000 que a exposição ao ramo não financeiro estava sistematicamente acima do limite prudencial dos grandes riscos. Em 2002, eram 970 milhões de euros.
Outra das questões apontadas era a existência de informação sobre o Grupo Espírito Santo e as operações em Angola do BES, que não terão sido utilizadas pelo Banco de Portugal no seu trabalho de supervisão ao banco.
A pressão socialista para afastar Carlos Costa
O primeiro ano do governo de António Costa foi especialmente difícil para Carlos Costa, com as relações entre o Executivo socialista e o governador a atingirem o ponto mais baixo de sempre, com pedidos de demissão no Parlamento e ataques públicos dos socialistas ao governador. O pretexto era a resolução do Banif, decidida nos primeiros dias da governação socialista.
Mário Centeno, que já tinha capital de queixa pessoal contra Carlos Costa (por alegadamente ter cedido a pressões do PSD/CDS para não lhe dar o cargo de diretor do departamento de economia do Banco de Portugal), não perdoou a manobra (que sabemos hoje ter sido uma segunda recapitalização do banco devido às deficiências da resolução de 2014), que lhe custou caro a gerir numa altura em que os mercados desconfiavam dos socialistas.
A verdadeira origem do mal estar era a gestão do balanço do Novo Banco e a transferência de dois mil milhões de euros de dívida sénior detida por grandes fundos internacionais para o ‘banco mau’.
Segundo os estatutos do Banco Central Europeu, o governador pode ser substituído se “deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave”. E apesar do segredo, mesmo os maiores críticos de Costa sabiam que o relatório Costa Pinto não dava poder de fogo suficiente para afastar Carlos Costa. O governador só sairia pelo próprio pé e não o fez.
Enquanto Portugal especulava sobre o que estava na auditoria interna que Carlos Costa escondia, um relatório de peritos independentes para o Fundo Monetário Internacional fez um balanço muito negativo quanto à forma como o Banco de Portugal, a quem foi dada autonomia, geriu a banca durante a assistência internacional. O caso BES foi um dos temas analisados, com os peritos a constatarem que, apesar das fragilidade dos bancos, os banqueiros gozavam de um elevado estatuto social em Portugal.
Em 2017, e na sequência de uma série de reportagens emitidas pela SIC, o “Assalto ao Castelo”, e nas quais foram reveladas notas internas do Banco de Portugal que defendiam o afastamento de Ricardo Salgado mais cedo do que foi feito — o escrutínio sobre o governador voltou a subir de tom. Numa audição que se prolongou pela noite fora, Carlos Costa chegou a desafiar os deputados a irem ao Banco de Portugal consultar os documentos técnicos de acompanhamento ao BES, mas que estariam sempre protegidos por sigilo bancário.
Centeno governador também diz não, mas….
Poucos metros separam o Terreiro do Paço, onde está o Ministério das Finanças, e a sede do Banco de Portugal, mas maior será a distância entre Mário Centeno e Carlos Costa, ainda que as duas nomeações tenham sido rodeadas de polémica política. Três dias depois da chegada do novo inquilino à rua do Comércio, o Bloco de Esquerda voltou à carga para pedir ao governador Centeno o que o governador Costa recusou sempre entregar: a auditoria à atuação no caso BES. E com um bom argumento: o Governo do qual Centeno foi ministro tinha pedido acesso à auditoria e também ouvido ‘não’.
BES. Governador Centeno recusou dar ao Parlamento o que Governo de Centeno pediu
Mas o governador Centeno manteve a recusa ao Parlamento, ainda que abrindo uma porta. Lembrando que a instituição está vinculada ao cumprimento do quadro legal que rege a sua atividade, designadamente o respeito pelo dever legal de segredo profissional” e que “a violação do referido dever de segredo implica responsabilidade criminal”, acrescentou que aguarda […] “decisão judicial que aprecie e decida acerca da eventual quebra do dever legal de segredo”. E se o for “decidida essa quebra do dever legal de segredo, o Banco de Portugal colaborará, de imediato, com o Tribunal, ficando, nos exatos termos dessa decisão judicial, autorizado a disponibilizar, desde logo, esse documento ao Tribunal”.
Em janeiro deste ano, e com mais um inquérito parlamentar à banca em curso (o do Novo Banco), o documento chegou finalmente aos deputados, mas mesmo assim marcado com o selo do segredo profissional. Os deputados querem divulgar a auditoria, para além de a usarem livremente na condução dos trabalhos públicos, mas o Tribunal da Relação considerou desnecessário levantar o segredo de supervisão do relatório num processo de insolvência do BES em que a defesa de Ricardo Salgado também reclamava o acesso ao famoso relatório Costa Pinto.
Relatório secreto até dentro do Banco de Portugal
Em 2019, o autor da auditoria secreta ouvido pela comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, foi questionado sobre quem conhecia a versão final e respondeu: “Os membros da comissão e a pessoa que o pediu, o governador”. E aos restantes membros do Conselho de Administração do BdP? “Não, tanto quanto é do meu conhecimento, não”.
As audições recentes feitas a antigos administradores do Banco de Portugal confirmaram que nem os visados tiveram logo acesso ao documento. Pedro Duarte Neves, que teve o pelouro da supervisão bancária até 2014, revelou que as conclusões do relatório Costa Pinto foram comunicadas por João Costa Pinto numa reunião informal entre o governador aos membros do conselho de administração. Esta versão que também foi dada pelo ex-administrador e presidente do Fundo de Resolução, José Berberán Ramalho, a quem não foi dado o relatório.
Pedro Duarte Neves revelou aos deputados que só teve acesso a uma cópia do documento em março de 2016 (quase um ano depois de ter ficado concluído o relatório final, com data de abril de 2015). O que terá conseguido porque o pediu expressamente, uma vez que a sua intervenção à frente do departamento de supervisão nos anos que antecederam a queda do BES era especialmente visada nesta avaliação.
No entanto, o documento não terá sido distribuído a todos os administradores, nem foi objeto de contraditório por parte dos serviços do banco. Luís Costa Ferreira, responsável pela supervisão do BES entre 2013 e 2014, defendeu que as conclusões poderiam ter sido outras se tivesse havido esse contraditório. Na sua audição, Costa Ferreira contrariou algumas das qualificações que constam da auditoria, considerando que a ação Banco de Portugal foi “enérgica e assertiva”.
O autor do mais famoso documento voltou ao Parlamento numa audição focada na autoavaliação à atuação do Banco de Portugal. E nesta audição Costa Pinto confessou ter ficado convencido que a auditoria pedida por Carlos Costa, e que classificou como uma “decisão corajosa”, seria objeto de discussão interna. “Foi para isso que ele foi produzido”. E porque não foi? “Sinceramente não consigo encontrar uma explicação para o destino que foi dado”. Só quem o pediu, o governador, é que pode explicar. E Carlos Costa ainda não foi ouvido.
A audição ao ex-governador chegou a estar agendada, mas foi cancelada. Costa invocou a pandemia e o facto de pertencer a um grupo de risco (como também o veio a fazer o ex-presidente da CMVM, Carlos Tavares) para ser ouvido por vídeoconferência, mas os deputados não abdicam de uma audição presencial.