Quando, em novembro de 1892, Eça de Queiroz publicou na Gazeta de Notícias um artigo irónico e astuto sobre a moda francesa de colocar os cadáveres dos “grandes homens” no “Panthéon”, o escritor não poderia imaginar que um século depois estaria, ele próprio, no centro de uma disputa entre os seus 22 descendentes sobre esse mesmo tema: de um lado, os que tiveram a ideia e defendem a sua ida para o Panteão; do outro, os que não querem que os seus restos mortais saiam de Santa Cruz do Douro, em Tormes, onde estão desde 1989, depois de terem já viajado duas vezes — primeiro, em 1900, de Paris, onde morreu, para Lisboa (cemitério do Alto de S. João) e depois, em 1989, de Lisboa para Santa Cruz do Douro. A acontecer, a trasladação prevista para dia 27 de Setembro, será a terceira viagem das ossadas do escritor.
Esta disputa é, simultaneamente, familiar e política, com autarcas, ex-autarcas e ministros a posicionarem-se do lado de uns e de outros. O ex-presidente da Junta de Freguesia de Santa Cruz do Douro, do PSD, está contra — em Baião já correu inclusivamente uma petição com cerca de 400 assinaturas que se opõem a esta homenagem. Do outro lado está a Fundação Eça de Queiroz, dirigida pelo escritor Afonso Reis Cabral, e o atual presidente da Junta de Freguesia da localidade, eleito pelo PS. Com eles está ainda José Luís Carneiro, ex-autarca de Baião e atual ministro da Administração Interna, que participou ativamente nesta decisão do Estado português de atribuir honras de Panteão ao grande romancista do século XIX.
Quanto aos familiares: há 13 herdeiros a favor da trasladação e seis contra. Segundo a lei, só os bisnetos podem ter a palavra no que concerne à mudança dos restos mortais do escritor. São estes seis herdeiros que se opõem que, depois de enviarem cartas de protesto ao presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, e ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disseram ao Observador que vão avançar com uma providência cautelar que tente travar o levantamento das ossadas. José Maria Eça de Queiroz, o bisneto mais velho, defende que “as honras de Panteão se façam sem os restos mortais, usando apenas uma placa ou uma estátua”, como recentemente aconteceu com o diplomata Aristides de Sousa Mendes.
Como esclarece ao Observador o advogado Pedro Proença, especialista em direito civil, “uma vez que os familiares vão avançar com uma providência cautelar, o juiz pode querer saber o que é que o próprio Eça deixou escrito e tomar isso em consideração, pois é uma argumento forte”. O texto que aborda de forma óbvia o tema intitula-se “Os Grandes Homens de França” e, nele, o escritor deixa claro que considera os “panteões” uma coisa que serve para o Estado, pois será sempre humanamente impossível decidir o que é “um grande homem”. Ainda no mesmo ensaio, que nasceu da decisão do governo francês de colocar o escritor Vítor Hugo no “Panthéon”, Eça questiona a “deificação” dos escritores e concluí que ela só é necessária para ser “visível e compreensível pelas inteligências simples”.
Questionado sobre este artigo, escrito pelo seu trisavô, Afonso Reis Cabral, de quem partiu a iniciativa de trasladação para o Panteão, recusa que o texto seja relevante para a decisão. E explica porquê: “A principal crítica de Eça aos critérios que os franceses usaram para agraciar os seus ‘grandes homens’ com honras de Panteão Nacional é a proximidade temporal. Critica que as escolhas se tenham cingido apenas ao século XIX e poucos anos depois da morte. O mesmo debate se fez em Portugal. E questiona também os critérios usados para ‘deificar’ determinadas figuras. Em último caso, como diz Eça, o único merecedor da aura panteónica seria Victor Hugo, ‘Deus único das nossas letras’. Não havendo proximidade temporal (passaram-se 123 anos), nem muito menos dúvidas sobre a qualidade literariamente ‘deífica’ do próprio Eça nas nossas letras, em nada se pode tirar do texto que o próprio se opusesse à ideia. Não só existe em relação a Eça de Queiroz o ‘entusiasmo de multidão’ que assinala a propósito de Victor Hugo, como dele não se necessita o quod est demonstrandum.”
Já o deputado do PS Pedro Delgado Alves, responsável pelo grupo de trabalho que, no Parlamento, prepara as logísticas desta cerimónia, quando inquirido sobre se leu o que Eça escreveu, esclareceu que “o grupo de trabalho apenas é responsável por executar a deliberação da Assembleia, tomada por unanimidade em janeiro de 2021 e que determinou a trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão. Tem apenas por missão organizar a cerimónia (logística, cerimonial, contactos com o panteão, alinhamento, convidados, eventos culturais conexos, etc.), não podendo reverter decisões já tomadas por quem é competente para o efeito, neste caso, a Assembleia da República reunida em sessão plenária”. Também questionado sobre este caso, o ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, não comentou.
Quem não se coibiu de falar frontalmente e fez o caso explodir nas redes sociais foi o académico e ensaísta Eugénio Lisboa, ele próprio membro do Círculo Eça de Queiroz, instituição que desde o primeiro momento se opôs à ideia do Panteão. Sobre as linhas e as entrelinhas do que Eça deixou escrito, o académico e crítico defende que, no texto sobre o Panteão francês, o escritor mostra claramente que vê o Panteão como uma coisa “balofa e enfatuada e ele, que sempre foi adepto das coisas simples e nunca andou atrás de narizes de cera estaria, não tenho dúvidas, totalmente contra esta pompa que lhe preparam. Mas pode olhar-se também para o romance A Cidade e as Serras, onde se pode ver o todo o encantamento dele com este lugar [Tormes, Santa Cruz do Douro]. E mais: neste livro ele não faz uma oposição entre a cidade e o campo, o urbano e o rural, mas sim uma comparação entre a cidade e a serra. O importante para ele era a altura, o ar limpo, as vistas alargadas. Quando os amigos o visitavam em Paris ele levava-os sempre à parte mais elevada da cidade. É preciso perceber, lendo a sua obra, como ele sempre foi afeiçoado pelas coisas simples. Uma simplicidade que se reflete até na forma como ele inovou a linguagem usando-a sempre de forma simples, ao contrário de Camilo, ele nunca inventou um neologismo. A sua obra e a sua novidade fez-se sempre com meios simples. O mundo de Eça de Queiroz é um mundo do uso astuto de meios pobres. Julgo que fica bem claro o local onde Eça achava que os mortos deviam ficar: na natureza livre e não num recinto fechado. Por isso, com legitimidade ou sem legitimidade legal, retirar os seus ossos da [sua] serra e levá-los para o Panteão é muito, muito mau”.
Também Maria Filomena Mónica, socióloga e biógrafa do escritor realista, numa coluna de opinião na revista do Correio da Manhã, pronunciou-se sobre esta questão, num artigo onde lembra todas as voltas que o cadáver de Eça de Queiroz já deu, desde a sua morte em Paris, em 1900. A autora procura demonstrar que, se fosse vivo, o romancista ficaria, no mínimo “indiferente” a esta homenagem e que melhor seria que o governo patrocinasse uma edição crítica das obras do escritor.
Opinião diferente tem Carlos Reis, professor na Universidade de Coimbra, que defende tratar-se de, “com dignidade e com intuito simbólico, homenagear um grande escritor, a partir de uma iniciativa legítima e similar à que contemplou outros escritores. Por exemplo, Camões, Garrett, Alexandre Herculano, Guerra Junqueiro, Aquilino Ribeiro, Fernando Pessoa ou Sophia de Mello Breyner Andresen. Nestes casos e em particular nos mais recentes (Pessoa e Sophia), não me recordo de ter havido qualquer contestação à panteonização de figuras destacadas da nossa literatura. Fica Eça de Queiroz diminuído por ir para o Panteão? Obviamente que não.”
Eça no Panteão: uma homenagem ou um desrespeito?
Tudo começou há dois anos quando Afonso Reis Cabral, romancista premiado e presidente da Fundação Eça de Queiroz, propôs o trisavô para receber honras de Panteão. A proposta partia da Fundação, do próprio Afonso e do seu ramo da família, os Cabral, do então autarca de Baião e hoje ministro José Luís Carneiro, e do atual presidente da Junta de Freguesia de Santa Cruz do Douro. A ideia rapidamente chegou ao parlamento e foi aceite por todos os partidos políticos. Da extrema direita à extrema esquerda, ninguém se fez rogado.
Constituiu-se um grupo de trabalho para agilizar as logísticas e, entre avanços e recuos no calendário, seria eventualmente avançada uma data: 27 de setembro. O deputado Pedro Delgado Alves, do grupo parlamentar do PS, esclareceu que “a proposta da Fundação materializou-se num projeto de resolução subscrito por vários deputados com vista à concessão de honras do Panteão Nacional, discutido em plenário a 14 de janeiro de 2021 e que foi aprovado por unanimidade pela Assembleia da República em 15 de janeiro de 2021. Posteriormente, a 5 de fevereiro de 2021, a correspondente Resolução da Assembleia da República, n.º 55/2021, seria publicada em Diário da República. Por força das circunstâncias (as dificuldades colocadas pela pandemia e a dissolução da Assembleia da República em finais de 2021), o Grupo de Trabalho só iniciou a sua atividade em 2022, já na atual Legislatura”.
Porém, alegam os herdeiros que se opõem à trasladação, “ninguém se mostrou sequer preocupado em verificar a legalidade do gesto. Ora é essa mesma legalidade que vem agora ser questionada por parte de seis bisnetos de Eça que já escreveram duas cartas ao Presidente da Assembleia da República, a última das quais dia 14 de agosto, na qual alegam: “É do conhecimento público que Eça de Queiroz foi sepultado em Lisboa e só posteriormente, por iniciativa da Instituidora da Fundação Eça de Queiroz, foi trasladado para Santa Cruz do Douro (Tormes), onde ainda se encontram depositados os seus restos mortais. Restos mortais que, legalmente, são pertença dos seus herdeiros (os das classes mais imediatas, vide artigos 2134.º a 2138.º do C.C.), que no caso serão os bisnetos ainda vivos (…) A presente missiva é, assim, apoiada por representantes da maioria de 3 das estirpes que subsistem e integram herdeiros de Eça de Queiroz.”
“Porque nenhum dos herdeiros, das classes mais-imediatas, de Eça de Queiroz foi previamente consultado, como deveria ter sucedido, entendemos que o processo que culminou na resolução da A.R N.º 55/2021 se encontra inquinado (…). Ou seja, segundo esta lei, só os herdeiros legítimos podem autorizar ou não a mexida nos restos mortais. Ora tanto a AR como os partidos com assento parlamentar e o grupo de trabalho levaram em conta duas entidades sem poder legal para decidir: o trineto Afonso Reis Cabral e a instituição que dirige, a Fundação Eça de Queiroz”, defendem ainda os seis bisnetos.
A resposta de Santos Silva, a que o Observador teve acesso, não se fez demorar e nela é reafirmada a intenção de fazer mesmo a trasladação dos restos mortais do escritor no dia 27 de setembro. José Maria Eça de Queiroz, o bisneto mais velho e o mais ativo nesta tentativa de evitar a retirada do cadáver do jazigo de Tormes, depois de carta de apelo a Marcelo de Rebelo de Sousa, afirma que vai avançar com “uma providência cautelar para travar o processo. Este bisneto recusou em 1989, em conjunto com as tias ainda vivas, a proposta de Mário Soares de colocar o escritor no Panteão. Foi também um dos que lutou para retirar Eça do seu primeiro túmulo, no jazigo dos Resendes, no cemitério do Alto de São João, em Lisboa, e levá-lo para a Tormes, em Santa Cruz do Douro, onde, segundo reza a lenda familiar, o escritor e a mulher teriam desejado repousar. Note-se que Eça, que morreu repentinamente em Paris, no ano de 1900, nunca deixou qualquer disposição legal sobre o seu sepultamento.
Instado pelo Observador a pronunciar-se sobre esta querela, o ministro José Luís Carneiro disse “não querer neste momento comentar o caso”. Já Afonso Reis Cabral enviou ao Observador uma declaração onde pode ler-se: “A iniciativa que levou às Honras de Panteão Nacional atribuídas em Janeiro de 2021 a Eça de Queiroz, que vemos como a homenagem de um país em peso através da Assembleia da República, partiu da própria Fundação Eça de Queiroz. Sendo nós a instituição que tudo tem feito pela memória do escritor no país e um pouco por todo o mundo, vemos a homenagem como justa, límpida e evidente. Fizemo-lo com o apoio expresso e continuado da autarquia, e o voto de congratulação da Assembleia Municipal (…) A carta que se segue, conta com a adesão da larga maioria dos bisnetos, para desfazer qualquer equívoco quanto à posição da família, acrescentando que a Fundação Eça de Queiroz é a proprietária do jazigo onde os restos mortais de Eça de Queiroz estão depositados desde 1989 (…).”
Sobre o facto de os seus familiares ponderarem avançar para os tribunais, Cabral afirma: “Não comento intenções”. Por seu turno, José Maria afirma que “os que assinam a declaração de autorização não são todos bisnetos, e que só estes podem opinar. Ora nós em momento nenhum fomos consultados pelo Afonso Reis Cabral, um bom rapaz até ter arranjado uma amante exigente: a fama”.
Mas, a efetivar-se a providência cautelar ela pode impedir a trasladação no dia 27 de setembro, como pretendem os seis bisnetos? Segundo o advogado Pedro Proença, consultado pelo Observador, não é claro que assim seja: “Este meio judicial que serve para prevenir a lesão iminente, irreversível ou dificilmente reversível de um direito ou de um interesse juridicamente protegido inserido na esfera jurídica de determinada pessoa, física ou jurídica, é um meio judicial mais expedito tendo em vista acautelar ou satisfazer interesses carecidos de tutela ou proteção urgente, que não podem, por isso, aguardar pelo normal desenrolar e desfecho de uma ação principal”. Ora, tendo em conta que “a trasladação está já agendada para o dia 27 de setembro, estará “justificado o justo receio de lesão desse direito”. No entanto, Proença lembra que “não só a decisão a proferir em sede de providência cautelar está igualmente dependente de prova de que a pretensão tem um mínimo de viabilidade de proceder na ação principal que correrá em paralelo, como pode apenas atrasar a trasladação, caso nessa ação principal o tribunal julgue improcedente a pretensão dos familiares que se opõem à mesma. Tendo em conta a proximidade da trasladação, a utilidade da providência cautelar pode, porém, ficar condicionada à decretação da suspensão da mesma antes de ser dado o contraditório à parte contrária, o que dependerá sempre de decisão judicial.”
O bisneto José Maria Eça de Queiroz reitera ainda que tudo isto “é ilegal” e que a Fundação, criada por uma das suas tias, não tem qualquer poder sobre as ossadas do escritor e que tudo isto “é um problema político, mas também um problema de família”: “Afonso nunca contactou os familiares e herdeiros para ouvir a sua opinião, além de que bastaria conhecer o que escreveu Eça de Queiroz para saber o que ele pensava do Panteão e que só isso devia ser suficiente para por de lado essa ideia. Aqui, em Tormes é onde as pessoas vêm visitar o seu túmulo. O que é que ele vai fazer para o Panteão, escuro e frio? Receber turistas que nunca saberão quem ele é mas agitam bandeirinhas coloridas? Não nos opomos à atribuição de honras de Panteão a Eça de Queiroz. Opomo-nos à retirada daqui dos seus restos mortais. Querem dar-lhe honras de Panteão? Façam uma estátua, uma lápide.”
Ainda assim o professor Carlos Reis vem contestar estas leituras de Eça considerando-as “simplistas” e “salazaristas: “O alegado encanto queirosiano pelas serras carece de contextualização, porque nem tudo (longe disso) nesse romance admirável que é A Cidade e as Serras é celebração da simplicidade da Natureza e das qualidades da vida campestre. Esse tipo de leitura simplista tem a marca ideológica do salazarismo e ignora que os textos de Eça não podem ser lidos como expressão linear de uma vontade com efeitos póstumos. Quem afirma, como parece fazer uma minoria dos herdeiros, que Eça quereria estar sepultado em Tormes (como sabem?) deveria ler ou reler Eça com mais atenção e com menos preconceito.”
Sobre esta querela familiar, o socialista Pedro Delgado Alves é peremptório: “Em julho deste ano, quando foi divulgada a data da cerimónia no Panteão, foi remetida ao Presidente da Assembleia (e partilhada com o Grupo de Trabalho) a posição de seis dos bisnetos ainda vivos de Eça de Queiroz. Respeitando naturalmente a posição dos signatários da carta, o Grupo de Trabalho está igualmente ciente de que ela não é a posição maioritária entre os familiares. Na sequência, aliás, dessa comunicação de oposição, 13 dos demais bisnetos reiteraram, também por escrito, a sua posição de adesão e apoio à homenagem nacional através da trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. Tendo em conta que os bisnetos são 22, trata-se da maioria.”