O tumulto começou na pequena cidade de San Antonio de los Baños, trinta quilómetros a sul da capital Havana, e o mundo testemunhou-o através de um meio pouco habitual quando o assunto é a oposição ao regime de Cuba: as redes sociais.
Num vídeo publicado no Facebook, milhares de pessoas marchavam pelas ruas enquanto gritavam os seus desesperos: “Os nossos filhos estão a morrer de fome!” Noutro, difundido no Twitter, é possível ver uma multidão a virar um carro da polícia. “Não temos medo!”, gritaram os manifestantes que enchiam uma avenida, num outro vídeo partilhado na internet. “Liberdade”, pediu-se. “Abaixo os Castros”, ouviu-se nas ruas de Cuba.
A revolta contra o regime comunista que lidera Cuba há mais de meio século eclodiu no domingo e rapidamente se difundiu a todo o país, surpreendendo observadores políticos por todo o mundo e deixando a comunidade internacional particularmente atenta aos protestos inéditos — os maiores das últimas décadas — num país conhecido por reprimir duramente a dissidência política.
O que resultará desta revolta? É incerto, sobretudo atendendo ao contexto particular das manifestações sem precedentes: por um lado, acontecem num país que viu a sua principal fonte de receita, o turismo, devastada pela pandemia e pelos embargos de Trump; por outro lado, surgem num momento inédito da história de Cuba em que já não há nenhum Castro no poder. Além disso, na raiz dos protestos está a miséria do povo cubano, agora a braços com uma pandemia que não tem abrandado nas últimas semanas, mais do que a orientação política do regime. E há um ingrediente-chave em tudo isto: ao contrário do que aconteceu nas últimas décadas, estes protestos acontecem numa Cuba que, finalmente, tem acesso à internet.
“São os falhanços da revolução”, admite ao Observador, a partir de Londres, o professor universitário e analista político Christopher Sabatini, investigador especializado em política latino-americana no think-tank Chatham House. “Estas pessoas estão a exigir muitas coisas que a revolução lhes prometeu: comida, gasolina, serviços sociais melhores, cuidados de saúde.”
Com milhares de cubanos na rua, o Presidente do país, Miguel Díaz-Canel — o primeiro Presidente cubano nascido depois da revolução e o sucessor da dinastia Castro à frente do país —, apressou-se a reagir com palavras duras e mantendo a retórica clássica, apelando aos fiéis do regime que combatessem os manifestantes: “A ordem de combate está dada, os revolucionários às ruas!” Díaz-Canel seguiu também para as ruas de San Antonio de los Baños, onde acusou manifestantes assalariados de semearem a confusão em nome do imperialismo norte-americano.
A partir de Washington, o Presidente dos EUA, Joe Biden, garantiu estar “ao lado do povo cubano e do seu clamor pela liberdade e pela libertação das trágicas garras da pandemia e das décadas de repressão e sofrimento económico a que foi sujeito pelo regime autoritário de Cuba”. O líder norte-americano pediu ao regime cubano que “ouça” o povo — mas, para já, não parece ser esse o caminho escolhido por Díaz-Canel, que já veio acusar os EUA de quererem semear a desunião e provocar uma mudança de regime em Cuba através de uma estratégia de “asfixia económica”.
“O que torna esta revolta interessante é que ela é primordialmente social e económica”, analisa Christopher Sabatini. “Nos últimos trinta anos tem havido protestos relativos aos direitos humanos, sobre a política e sobre a repressão. Mas esta em particular está mais relacionada com as dificuldades quotidianas que os cubanos estão a experimentar. É diferente, nesse sentido. Torna-a mais popular.”
“Nesse sentido, é semelhante a um protesto que aconteceu em 1994, no fim da União Soviética — foi o chamado ‘Período Especial’ —, quando a economia de Cuba contraiu fortemente por causa da perda dos subsídios soviéticos”, compara o analista. “No ano passado, a economia cubana contraiu 11%. Essencialmente, isto aconteceu por causa da Covid-19 e, em parte, por causa das políticas de embargo da administração Trump ao turismo. Mesmo sem elas, Cuba teria sido afetada por causa do turismo. O país depende do turismo para uma grande parte da sua moeda, e isso foi reduzido por causa da Covid-19. Os turistas europeus, do Canadá e da América Latina, obviamente, não estão a ir para Cuba. Em segundo lugar, a verdade é que a economia cubana é incrivelmente ineficiente, com a produção controlada pelo Estado. O que antes era um sistema de duas moedas entre uma moeda local e uma moeda convertível foi unificado no ano passado, e isso criou inflação para a importação de bens. Por isso, há uma grande mistura de contração económica, reformas económicas, políticas norte-americanas e a pandemia.”
“Há filas tremendamente longas para entrar em supermercados”, relatou ao The New York Times a antropóloga Katrin Hansing, que tem vivido e investigado na capital cubana, Havana. “O mesmo pode ser dito para os medicamentos. Não há nada: não há penicilina, não há antibióticos, não há aspirinas. Não há nada”, acrescentou. “É a situação económica básica que está a levar as pessoas à rua e a erguer as vozes. Mas também há uma perda de medo, e a partir do momento em que essa barreira é quebrada e cada vez mais pessoas começam a ver um número significativo de pessoas que perderam o medo, mais pessoas vão ser encorajadas.”
Brian Latell, um antigo analista da CIA especializado na situação de Cuba, concorda com a análise da antropóloga. “[Um] aspeto notável é a falta de medo”, disse Latell ao The Wall Street Journal: “Havia cubanos a marchar em todos os lugares, novos e velhos, negros e brancos.”
Os protestos iniciados no domingo — e cujas ondas de choque ainda se fazem sentir nesta segunda-feira — são já históricos num país que vive sob um regime comunista desde que em 1959 o movimento revolucionário liderado por Fidel Castro e Che Guevara depôs o ditador Fulgencio Batista e inaugurou a longa era do castrismo. O patrocínio da União Soviética ao novo estado comunista deu origem à crise dos mísseis de Cuba (espoletada quando o regime soviético deslocou mísseis para a pequena ilha das Caraíbas), que representou um dos momentos mais tensos do período da Guerra Fria e abriu a porta ao duradouro embargo comercial imposto pelos Estados Unidos sobre o pequeno país.
Fidel Castro manter-se-ia como líder cubano durante quase cinquenta anos. Só em 2006, a necessidade de uma cirurgia urgente ao cólon o obrigou a passar, temporariamente, o poder ao irmão, Raúl Castro. O líder cubano não recuperou totalmente, mas manteve-se, mesmo na sombra, como a peça-chave na gestão dos destinos do país comunista. Em 2008, Fidel Castro abdicou formalmente do cargo de Presidente de Cuba. Quatro dias depois, sem surpresas, o irmão, Raúl Castro, foi unanimemente nomeado Presidente pela Assembleia Nacional. No discurso inaugural, vincou que o comandante da revolução cubana é “único” e que continuaria a consultar o irmão antes de tomar decisões importantes para o país: “Fidel é Fidel.”
Miguel Díaz-Canel. Quem é o “Richard Gere cubano” que sucede aos Castros?
Em 2011, Fidel Castro abandonou formalmente a liderança do Partido Comunista, numa altura em que Cuba começava a caminhar para alguma liberalização: por exemplo, os cubanos passaram a poder vender e comprar as suas casas e propriedades (em vez de apenas poderem passá-las aos seus filhos), embora Raúl Castro tenha alertado que a concentração de propriedades não seria permitida; e ao mesmo tempo o congresso partidário determinou que os lugares políticos de topo passariam a estar limitados a dois mandatos de cinco anos. Fidel Castro morreu em 2016.
O fim da era Castro e o advento da internet em Cuba
Só em 2018, 59 anos depois da revolução, chegaria ao fim a era dos Castros à frente de Cuba — embora a transição de apelidos não tenha significado propriamente uma mudança de regime político. Miguel Díaz-Canel, anterior vice-presidente do país, sucedeu a Raúl Castro em 2018 e tornou-se no primeiro Presidente cubano nascido depois da revolução. Em abril de 2021, Raúl Castro deixou também a liderança do Partido Comunista, cedendo-a a Díaz-Canel, oficializando o fim da era Castro. Ainda assim, Díaz-Canel manteve uma palavra no topo da sua lista de prioridades políticas desde o início: continuidade.
Durante décadas, e em grande parte devido ao bloqueio comercial norte-americano, Cuba manteve-se consideravelmente atrás do resto do mundo no que diz respeito à inovação tecnológica. Porém, o rigoroso controlo exercido pelo regime cubano sobre a produção económica e sobre as tecnologias contribuíram decisivamente para o atraso do país. Os irmãos Castro sempre olharam para a internet, a rede global com origem americana, com grande desconfiança — e sempre a tentaram controlar.
Até 2018, os cubanos dependiam da utilização de hotspots públicos ou de estabelecimentos com Wi-Fi para poderem aceder à internet — uma vez que o uso da rede de internet móvel 3G sempre esteve limitado aos serviços do Estado, aos jornalistas dos meios públicos e a alguns empresários ligados a firmas multinacionais. Para a esmagadora maioria da população, o acesso à internet era uma miragem ou um luxo raro. Raúl Castro temia a transformação da internet numa rede de “canais subversivos” patrocinados pelos EUA, lembra a AFP, que descreveu os cubanos como “um dos povos menos conectados do planeta”.
A mudança chegou a Cuba precisamente em 2018, com o novo Presidente. Miguel Díaz-Canel, um utilizador ativo da rede social Twitter, mudou desde o início os hábitos do conselho de estado — e a política cubana ganhou expressão nas redes sociais. Foi só em 2018, já sob os auspícios de Díaz-Canel, defensor da “informatização da sociedade”, que o 3G chegou ao país. Rapidamente, Díaz-Canel desiludiu-se, ao perceber que o acesso à internet e às redes sociais se tornou no principal palco da oposição política e deu voz a um descontentamento que, durante décadas, não tivera meio para se expressar.
Na opinião de Christopher Sabatini, não há dúvidas de que a internet “está a alimentar os protestos”.
“Estamos a ver isso: vídeos de manifestantes nas ruas; fotografias, vídeo, áudios da polícia a assediar os manifestantes. Isso tem sido partilhado por todo o país. Não é algo apenas na capital. Antigamente, teríamos de pegar no telefone, ligar e contar. Agora, de repente, a internet está a disseminar estas imagens de um modo muito poderoso, que cria uma comunicação horizontal que não existia antes”, diz o académico, acrescentando que a internet não só está a aumentar a visibilidade dos protestos como está a servir para chamar ainda mais manifestantes à rua.
Com o livre acesso à internet a alimentar ainda mais os protestos em Cuba, o país começa a dar-se conta de que o ideal dos Castros está longe de ser unanimemente partilhado pelos cubanos — e o Presidente será obrigado a agir.
Uma das primeiras ações do regime foi, sem surpresas, limitar o acesso à internet. “É preciso fazer mil malabarismos para nos conectarmos”, escreveu no Twitter o jornalista cubano Abraham Jiménez, que é um conhecido ativista anti-comunista. “O regime não quer que informemos e está a cortar o sinal, o único que temos no país.” O mesmo jornalista partilhou, pouco depois, informação do observatório NetBlocks, que monitoriza as perturbações na rede de internet a nível global, que dá conta de que várias plataformas de comunicação, incluindo o Facebook, o WhatsApp, o Telegram e o Instagram estão a ser cortadas pela ETECSA, a operadora estatal de telecomunicações de Cuba.
Hay que hacer mil malabares para estar conectado. El régimen no quiere que informemos y está cortando la señal, la única que tenemos en el país. #SOSCuba
— Abraham Jiménez Enoa (@JimenezEnoa) July 12, 2021
A promessa já feita por Díaz-Canel de levar os fiéis ao combate deixa antever, na opinião de Christopher Sabatini, que a resposta será a repressão. “É muito importante que Díaz-Canel tenha dito especificamente que vai haver uma resposta revolucionária. Por outras palavras, e isto é a minha linguagem: ‘Não se metam comigo, vou fazer o mesmo que os Castros fizeram. Vou reprimir-vos. Não sou assim tão diferente. Continuamos sob a revolução.’”, diz o investigador. “Não pode mostrar fraqueza. Se o faz agora, vai perder uma grande parte da sua base de apoio.”
Ainda assim, há vários fatores a ter em conta por parte do regime cubano, adverte Sabatini. “É uma decisão que os governos autocráticos e os líderes autocráticos têm sempre de tomar: o custo, as potenciais repercussões da repressão são maiores do que o custo de a deixar continuar?”, questiona o analista. “Penso que ele vai reprimir. Está ameaçado, tem de mostrar que é forte. Será que isto vai provocar uma reação ainda maior? Os próximos dias vão dizer muito sobre isto.”
Apesar de o apelido do Presidente não ter espoletado os protestos, a verdade é que o facto de não estar um Castro no poder criou uma oportunidade inédita para os cubanos reclamarem aquilo que a revolução lhes prometeu.
“Os protestos de 1994, que foram semelhantes no carácter e no espectro, foram em larga medida baseados na capital. E era muito mais fácil para o governo reprimi-los, porque estavam na capital. Estes são muito mais difusos; as ferramentas de comunicação estão muito mais disponíveis; e, claro, há um Presidente diferente, que as pessoas esperam que possa significar algum tipo de mudança, que não tem a credibilidade da revolução”, diz Christopher Sabatini. “Não significa que vá ser mais bem-sucedido que movimentos do passado.”
“Não creio que vamos ver — bom, veremos — uma mudança substancial no regime. Mas o contexto é muito diferente”, acrescenta o analista, assumindo-se surpreendido pelo momento dos protestos, mas sublinhando que, em algum momento, poderia ser expectável que eles acontecessem. “Nós, os cientistas sociais e os observadores políticos, nunca sabemos qual vai ser a causa próxima. Podemos seguir os elementos de potenciais protestos sociais e descontentamentos, mas nunca sabemos qual vai ser a faísca que leva as pessoas às ruas e as mantém lá. Para ser honesto, estou surpreendido. Mas penso que poderíamos prever que ia acontecer em algum momento: a economia de Cuba contraiu em 11% no ano passado.”
O protesto de domingo, em que milhares de cubanos saíram à rua para protestar contra o regime, denunciando a pobreza, a falta de comida e de medicamentos no país, ficará sem dúvida para a história de Cuba. Se os primeiros dias ficarão inevitavelmente marcados pelos confrontos entre manifestantes anti-regime e os fiéis castristas, a peculiaridade dos protestos atuais vai causar ondas de choque nos próximos anos, acredita Christopher Sabatini.
“O que é muito revelador é ver os vídeos dos protestos. São, na grande maioria, afrodescendentes. Apesar dos ganhos da revolução, estas pessoas representam os estratos mais baixos da economia, para quem a revolução, talvez no mito, mas muito frequentemente na prática, significou verdadeiras melhorias nas suas vidas. Pelo menos, imediatamente depois da revolução”, diz o analista. “Isto é um fermento verdadeiramente popular. Não é possível responder a estas exigências rapidamente. Não é possível criar crescimento económico do nada. Não é possível recriar o turismo. Não é possível sequer distribuir a vacina tão rapidamente. Isto é o início de algo que vai ferver no longo prazo.”