Há casais que são assim: em público, parece que se entendem às mil maravilhas. Seguem juntos pela rua de mão dada, exatamente à mesma velocidade e sem um passo descoordenado. Pelo meio, sorriem e trocam carícias à frente de todos. Cada um sabe que é diferente do outro, mas concordam sempre no essencial e não se deixam atrapalhar no acessório.
Depois, há os casais que parece que são assim. Mas, entre portas as coisas mudam: está cada um para o seu lado, mal falam um com o outro e, das vezes em que chegam a fazê-lo, corre mal. As diferenças entre os dois são grandes. Não há vontade de atravessar pontes.
A relação entre os dois principais partidos independentistas da Catalunha já esteve na primeira fase, mas, neste momento, está mais do que instalada na segunda — e com sérios riscos de passar a uma terceira. Isto é, a separação.
Quem é o “traidor”?
É cada vez mais tenso o ambiente entre os dois principais partidos independentistas da Catalunha: por um lado, a coligação Juntos Pela Catalunha (JPC, liderada por Carles Puigdemont a partir da Bélgica, com a ajuda do presidente regional da Catalunha, Quim Torra, a partir de Barcelona); e, por outro, a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC, liderada por Oriol Junqueras a partir da prisão, além de Marta Rovira, auto-exilada na Suíça).
Em causa não está a independência da Catalunha, que ambos defendem, mas antes a maneira de chegar até ela — traduzido para o mundo das relações amorosas, é uma espécie de “não é o que tu dizes, mas a forma como o dizes”.
“As diferenças entre os dois são de fundo, além de que são mais estratégicas do que táticas. Ou seja, dizem mais respeito ao longo prazo do que ao curto prazo”, diz ao Observador o politólogo catalão Mario Ríos Fernández, membro do Centro de Estudo de Opinião da Catalunha.
“A ERC está a seguir uma via pragmática, de negociação e diálogo, sem nunca renunciar ao objetivo final, que é a independência”, refere aquele politólogo, sobre o partido de Oriol Junqueras. “Depois, há o JPC, que é uma amálgama de vários partidos e setores que não agem de forma unitária mas onde, neste momento, quem domina é a figura de Carles Puigdemont e de Torra, questão a favor de uma via da insurreição e, no mínimo, forçar alguma desobediência.”
Oriol Bartomeus, politólogo da Universidade de Barcelona e autor do livro “El terratrèmol silenciós” (Ed. Eumo, sem edição portuguesa), resume o conflito entre os dois partidos a uma fase: “No fundo, querem todos acusar o outro de ser um traidor”.
Têm sido várias as trocas de galhardetes entre um lado e o outro nos últimos meses.
Da parte do JPC voaram críticas à ERC por fazer pactos com o Partido Socialista da Catalunha (PSC, filial do PSOE na região) para governar em cidades como Barcelona — Quim Torra disse que eram “pactos anti-natura”, apesar de o JPC também se ter juntado ao PSC noutras localidades de menor dimensão.
O devastador incêndio no Ebro deste verão também foi causa para um novo desentendimento, com o JPC a cair em cima de um artigo do conselheiro da Administração Interna, Miquel Buch, por este ter escrito um texto de balanço dos incêndios onde não havia quaisquer críticas ao governo central pela falta de meios que alguns reclamavam. “Incompreensível, porque seria de supor que os parceiros de governo têm de ser solidários”, atirou o líder da bancada parlamentar do JPC, Albert Batet, homem próximo de Carles Puigdemont.
Numa entrevista à Catalunya Ràdio em agosto, Oriol Junqueras perguntou exasperado: “O que é que se passa agora que, de repente, toda a gente quer abater a ERC?”. A isso, acrescentou uma farpa para o JPC, dizendo que “não é preciso agir de forma estridente nem gritar para se dizer que se é independentista”.
E, no meio de tudo isto, os dois partidos digladiaram-se sobre a possibilidade, ou não, de permitirem uma investidura de Pedro Sánchez, cuja via menos difícil para chegar ao poder depois das eleições de 28 de abril teria de passar com pelo menos a abstenção da ERC e do JPC. Embora os dois tenham acabado por dar um “não” ao governo de Pedro Sánchez, o caminho para lá chegarem foi muito diferente. Da parte do JPC nunca houve verdadeira disponibilidade para fazê-lo. Já da ERC, a discussão era possível — postura marcada pelo momento em que, numa saída precária da prisão para poder ser investido, Oriol Junqueras se dirigiu ao lugar de Pedro Sánchez e lhe disse “temos de falar”.
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O cansaço de quem achava que ia ser independente já “amanhã”
Com ou sem intenção de falar com Madrid, adotando uma postura mais dialogante ou, pelo contrário, de ruptura, o certo é que o independentismo catalão tarda a apresentar os resultados que chegou a descrever no famoso documento intitulado “El full de ruta cap a la independència” (“O roteiro até à independência”, em português), assinado pela coligação Juntos Pelo Sim, que reuniu a ERC e o PDeCAT, de Carles Puigdemont. Publicado em 2017, ainda antes do referendo independentista, aquele documento dava todos os passos programados para chegar ao destino final, a independência. Mais do que uma promessa, era uma certeza.
Oriol Bartomeus fala numa “desorientação estratégica do independentismo”, referindo que depois das eleições regionais de dezembro de 2017 (convocadas pelo governo de Mariano Rajoy, após dissolver o parlamento catalão na sequência da declaração unilateral de independência do final de outubro daquele ano) não tornou a haver acordo possível entre independentistas. “Depois das eleições de dezembro de 2017, não souberam dar os passos necessários para evitar o seu outono”, diz aquele politólogo.
E isso, acrescenta Oriol Bartomeus, resultou na desmotivação do eleitorado independentista. Prova disso é que o apoio à independência da Catalunha chegou ao valor mais baixo dos últimos dois anos, segundo a sondagem de julho do Centro de Estudos de Opinião (CEO), da Catalunha. Em julho, foram 44% os que disseram estar a favor da independência — uma queda dos 48,4% de março deste ano. O reverso da medalha está na subida dos que estão contra a independência, que, de março para julho, foram de 44,1% para 48,3%.
Esta quebra notou-se em particular na Diada, ocasião em que, a cada 11 de setembro desde 2012, se organizam as maiores manifestações independentistas da Catalunha. De acordo com as contas da Guardia Urbana, este ano manifestaram-se 600 mil pessoas — um número considerável em todo o caso, mas apenas um terço dos 1,8 milhões de manifestantes que acudiram às ruas no 11 de setembro de 2014.
“Há claramente um enorme cansaço no mundo independentista, que existe por causa da falta de resultados. São já muitos anos a sair à rua para protestar e depois… onde estão os resultados?”, atira Oriol Bartomeus. “Há pessoas que se sentem enganadas e por isso deixaram de ir. Há quem diga: ‘Escuta, a mim disseram-me que amanhã éramos independentes e afinal ainda aqui estamos. Afinal o que é que se passa?’”.
O independentismo catalão teve esta segunda-feira, 14 de outubro, uma nova prova de fogo: a leitura da sentença dos políticos que estiveram por trás do referendo de 1 de outubro. Quase dois anos depois da ida às urnas que os tribunais declararam ilegal e que o Governo central em nada reconheceu, as condenações foram dos nove aos 13 anos de prisão, além de três ex-governantes. A pena mais pesada foi para o ex-vice-presiente do governo regional e ainda presidente da ERC, Oriol Junqueras, condenado a 13 anos atrás das grades pelos crimes de sedição e desvio de fundos públicos.
A história do catalanismo, que viria a resultar no independentismo catalão, é feita de traumas — e, mais do que isso, alimenta-se e une-se em torno deles.
Não será de estranhar que um independentista catalão refira no mesmo discurso o trauma de 1714 (em que a Catalunha, então parte do Reino de Aragão, caiu para as tropas espanholas e passou assim a integrar Espanha), o trauma da Guerra Civil (com a Catalunha a ser um dos pontos de maior violência, por ter sido também do que mais resistiu às tropas nacionalistas), os vários traumas do franquismo e, já em democracia, o trauma das cargas policiais do referendo de 1 de outubro de 2017.
A condenação dos políticos envolvidos na elaboração do referendo (sobre os quais Espanha se divide entre chamá-los de “presos políticos” ou “políticos presos”) tem todo os ingredientes para ser mais um, e enorme, trauma no independentismo catalão.
Mas será um novo trauma aquilo de que precisa o independentismo para se voltar a unir?
É mesmo para aí que aponta Quim Torra, num artigo de opinião publicado no Vila Web a 6 de outubro. “A sentença dos nossos companheiros e companheiras, julgados por terem colocado urnas há dois anos, pode marcar um ciclo de mudança”, prevê o presidente do governo regional da Catalunha. “Pode abrir uma nova etapa na qual voltaremos a tomar a iniciativa, na qual a repressão não nos deixe acurralados e politicamente à defesa. Uma nova etapa em que podemos regressar à dinâmica da confiança que tivemos nos melhores momentos deste processo emancipador. Uma nova etapa em que a generosidade e o sentido de país voltam a estar à frente dos interesses dos partidos e das batalhas hegemónicas.”
Mas os sinais são equívocos. Embora os partidos tenham tentado passar uma imagem de união nas últimas semanas (estiveram lado a lado nas manifestações do 1 de outubro, aniversário do segundo referendo), não resultou dali nenhuma posição estratégica e conjunta. Do lado dos JPC, o slogan em ordem é “ho tornarem a fer”, catalão para “voltaremos a fazê-lo”. Do lado da ERC, não há qualquer compromisso com aquela promessa.
“Depois da sentença, terá de haver essa união inicial para, basicamente, convencer as movimentações de rua. Caso contrário não têm êxito”, diz Mario Ríos Fernández. “Mas, quando passarem uns dias, cada um voltará à sua via original.”
Também Oriol Bartomeus acredita que, numa fase inicial, o independentismo catalão voltará a fazer as pazes — além dos JPC e da ERC, poderá também haver uma bandeira branca da Coligação Unitária Popular (CUP, independentista de extrema-esquerda), com o empurrão de associações como a Òmnium Cultural e ANC. “Terá de haver uma reação unitária por parte de todos eles perante uma sentença”, diz aquele politólogo.
Porém, num caminho que tem mais contornos de ultramaratona do que de sprint, o politólogo Oriol Bartomeu alerta para que o momento de união do independentismo catalão pode não passar de fugaz. Tudo isto porque, por maior que seja o trauma de uma sentença condenatória, os dois principais partidos do independentismo continuarão desavindos quanto à melhor maneira de chegar à meta. “Sobre isto, eles não se entendem”, sublinha.
Prova disso é que, mesmo perante uma união com doses generosas de encenação, os dois principais partidos catalães não se entendem quanto ao passo seguinte à sentença.
Da parte da ERC, em alta nas sondagens, o caminho a seguir é a convocatória de eleições antecipadas para o parlamento regional da Catalunha. Em agosto, quando questionado sobre o que devia acontecer depois de ser conhecida a sentença, Oriol Junqueras disse numa entrevista que “convocar eleições é uma opção que nunca se pode descartar”. A partir daí, essa passou a ser a linha da ERC.
No JPC, a vontade de umas novas eleições é nula. Quim Torra escreveu que uma ida antecipada às urnas poderia “desbaratar o sonho” independentista. “A qualidade dos nossos sonhos de hoje determinará a qualidade de vida que terão os nossos filhos e os nossos netos”, disse. Por isso, sublinhou: “Agora não é altura de pensar nas eleições que possam vir”.
Fraturado, cansado e sem um rumo definido, o independentismo catalão está certamente longe do seu fim — mas tampouco atravessa o seu melhor momento. Quando a via conciliatória promete tantos frutos como a mais desafiadora — isto é, nenhuns, à medida que o bloco de partidos constitucionalistas se une de pedra e cal em Madrid —, Oriol Bartomeus garante: “A tensão vai subir”. E, nessas alturas, diz a experiência que “quem sai por cima são os radicais”.
Essa é uma das duas certezas que este politólogo retém dos anos passados. E que leva à segunda, a “lei física do procès”, como lhe chama: “Tudo o que pode melhorar piora”.