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“A Farfetch não vai comentar.” Há cinco dias que a empresa criada e liderada por José Neves adotou a política de não comentar as notícias sobre a sua continuidade em bolsa. E as perguntas sobre se a companhia vai fazer algum comunicado ao regulador do mercado de capitais dos EUA sobre as razões que a levaram a adiar a divulgação de resultados ou mesmo sobre se existe alguma data prevista para prestar contas – uma obrigação enquanto empresa cotada – têm recebido sempre a mesma resposta: sem comentários.

Há cinco dias que a Farfetch está em silêncio, desde que, na passada terça à noite, o inglês Telegraph avançou que José Neves estaria a estudar a hipótese de retirar a empresa da bolsa de valores de Nova Iorque. A notícia pode não ter tido comentários da Farfetch, mas motivou um comunicado da Richemont, a empresa suíça dona da Cartier e da Montblanc, com quem a companhia luso-britânica tenta fechar um negócio desde agosto de 2022. Se a notícia indicava que a empresa até contaria com o apoio de alguns investidores de peso, como a Alibaba e a Richemont, para essa operação de retirada de bolsa, a empresa suíça puxou o tapete e lembrou aos acionistas que “não tem obrigações financeiras para com a Farfetch”, afirmando que não “prevê a concessão de empréstimos ou investimentos” à empresa.

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Garantiu ainda estar a acompanhar “cuidadosamente a situação” e que estava a “rever as suas opções” no que diz respeito ao negócio que poderá passar para as mãos da Farfetch a participação da Richemont de 47,5% no capital da Yoox Net-a-Porter. A aquisição deverá ser paga em até 58,5 milhões de ações da empresa de José Neves. O Observador enviou questões à Richemont sobre se houve algum desenvolvimento nesta situação, perguntas até agora sem resposta.

Sem informação vinda da plataforma de moda de luxo com ADN português, meios especializados como o Business of Fashion avançam que a insolvência “não estará fora de questão” e que a empresa está a tentar explorar as opções possíveis para se manter à tona de água – incluindo estar à procura de “um cavaleiro branco [que vai ao auxílio da empresa] para escapar ao colapso” ou a explorar a venda de alguns negócios que tem na sua alçada, nomeadamente a New Guards Group.

Não é apenas a Farfetch que se mantém em silêncio. A SEC (polícia da bolsa dos Estados Unidos da América) não tem respondido ao Observador sobre esta falta de informação de uma empresa cotada, que tem obrigações de comunicação ao mercado.

Posição financeira divulgada em agosto revelou fragilidade da empresa

A plataforma de comércio eletrónico de luxo fundada por José Neves em 2007 precisou de vários anos para dar lucro. A primeira vez em que a Farfetch alcançou um resultado operacional positivo foi no quarto trimestre de 2020 (ainda que o resultado líquido tenha sido de perdas também neste trimestre), um feito que já só foi conhecido em fevereiro de 2021. A pandemia e os confinamentos beneficiaram o negócio da Farfetch, tal como aconteceu com várias retalhistas no segmento eletrónico, mas já há alguns trimestres que a situação se inverteu.

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A última vez que a companhia de José Neves divulgou contas foi em agosto, quando revelou um resultado operacional (EBITDA ajustado) de 30,57 milhões negativos e prejuízo de 281,3 milhões de dólares no segundo trimestre do ano. Estas são as contas mais recentes disponíveis – a companhia adiou a divulgação dos resultados do terceiro trimestre, que estavam marcados para 29 de novembro, sem apresentar justificações. E, ao contrário do habitual, até pretendia revelar as contas antes da abertura do mercado.

Por agora, sem anúncio da uma data para divulgação dos dados mais recentes, os analistas tentam antecipar cenários a partir das contas conhecidas em agosto. Até ao fim de junho, a Farfetch apresentou receitas de 572,1 milhões de dólares, menos quase 13% do que um ano antes. O que no segundo trimestre de 2022 era um lucro após impostos de 67,7 milhões de dólares passou a prejuízo de 281,3 milhões um ano depois.

Entre abril e junho, as despesas gerais e administrativas recuaram 7,3 milhões de dólares, passando de 185,7 para 178,4 milhões, mas ainda assim continuaram a pesar no negócio. O total de despesas, que inclui gastos com tecnologia, pagamentos ligados a ações e outros custos, passou de 435,3 milhões de dólares no segundo trimestre de 2022 para 456,4 milhões de dólares no mesmo período deste ano – um aumento de 4,8%. A Farfetch explicou que, no fim do trimestre, tinha começado a implementar “iniciativas de redução de custos”, mencionando a “redução no total de trabalhadores”, mas sem especificar a dimensão do corte.

A liquidez da empresa no fim de junho, entre dinheiro e equivalentes, era de 453,8 milhões de dólares, de acordo com o relatório e contas da companhia. “Durante os seis meses terminados a 30 de junho de 2023, o dinheiro e equivalentes diminuiu 287,2 milhões em comparação com a diminuição de 788,1 milhões” durante o primeiro semestre do ano anterior. A empresa explicou que “esta diminuição na saída do fluxo de caixa foi impulsionada primariamente pelas iniciativas de redução de custos”, enumerando questões como “uma redução geral da atividade de investimento”. A Farfetch tem um passivo de 2,8 mil milhões de dólares, sendo 969 milhões de dólares de curto prazo.

A Farfetch transmitiu ao mercado que acreditava que, com a situação de liquidez e as receitas geradas, assim como “acordos de empréstimos”, estava numa posição que “seria suficiente para ir ao encontro das necessidades de dinheiro antecipadas para pelo menos os próximos 12 meses”. No entanto, também notou que “quaisquer projeções de necessidades monetárias e fluxo de caixa estão sujeitas a uma incerteza inerente”.

Porém, alguns analistas questionavam a liquidez da empresa. “É debatível – a partir da nossa análise – que a Farfetch tenha liquidez suficiente para chegar até ao fim do ano (…)”, citou o Business of Fashion, em outubro, a partir de uma nota de ‘research’, Luca Solca, analista da Bernstein.

Esta não foi a primeira vez que o analista falou sobre as contas da Farfetch. Noutra nota, também em outubro, o analista especializado no mercado de luxo reconhecia que “marketplaces como a Farfetch podem disponibilizar distribuição a marcas mais fracas mas – para conseguirem fazê-lo de forma lucrativa – têm de ter custos muito baixos”, citou o WWD. Porém, Solca considerou que a empresa de José Neves “estava a perseguir demasiadas prioridades” e que tentava seguir “em demasiadas direções”. O resultado? Mais custos, notou. “Acredito que a Farfetch está madura para uma reestruturação muito material, se é para sobreviver”, rematou o analista, um mês antes da notícia do Telegraph.

José Neves tem “super-poder” de voto. Ainda tem cartas na manga?

Os vários analistas que acompanham a Farfetch notam que a companhia está numa situação que torna “difícil analisar o valor” real. Tom Nikic, analista da Wedbush, fez um comentário na quarta-feira onde abordou a possível retirada de bolsa. Entre “demasiadas bolas no ar”, referindo-se às questões pendentes (onde foi incluído o negócio com a Richemont), e “as dificuldades de ser uma empresa cotada”, o analista não se mostrou “surpreendido se o senhor Neves realmente quiser tirar a empresa do holofote dos mercados”. Na altura, Nikic mostrou-se expectante para perceber como estava a Farfetch a partir dos resultados que estavam previstos ser divulgados – algo que não aconteceu.

Na análise, falou ainda no “super-poder” de voto que o fundador da empresa tem na mão – José Neves controla 75% dos direitos de voto da empresa, ainda que só tenha 15% das ações.

Noutro comentário, desta vez partilhado com o Business of Fashion, o mesmo analista notou que a possibilidade de saída da bolsa de Nova Iorque, onde a Farfetch entrou em setembro de 2018, poderá ser uma oportunidade para “José Neves dizer ‘bem, se não sou uma empresa cotada, posso fazer todas as iniciativas que quero”. E, mais uma vez, foram salientados os direitos de voto do empresário português. “Não pode ser encostado a um canto (…)”.

As ações da Farfetch têm vindo a desvalorizar em bolsa, principalmente no último ano. Em setembro de 2018, quando se estreou em Nova Iorque com uma oferta pública inicial (IPO), um título da Farfetch custava 20 dólares. Na sexta-feira passada, fechou nos 1,28 dólares.

A semana foi agitada para a empresa. Numa primeira fase, os investidores pareciam ter visto com bons olhos a notícia do Telegraph, levando as ações a subir 11%, no pré-mercado. No entanto, após o comunicado da Richemont, as ações desvalorizaram e terminaram o dia com uma queda de 53,74%, nos 0,97 dólares. Nesse dia, foi atingido um mínimo histórico de 0,92 dólares, bem longe do máximo de 73,75 dólares alcançado a 16 de fevereiro de 2021.

Fontes mencionam a possível venda da New Guards Group, que em 2019 custou 675 milhões

Duas das fontes ouvidas pelo Business of Fashion revelaram que uma das hipóteses para a Farfetch conseguir reduzir custos poderá passar pela venda de áreas de negócio, mais concretamente da New Guards Group (NGG). Em 2019, a empresa de José Neves adquiriu por 675 milhões de dólares o operador que controla marcas como a Off-White, criada por Virgil Abloh, e a Palm Angels.

Na altura, já foi uma aposta significativa para a plataforma de moda de luxo. De uma assentada, a 9 de agosto de 2019, a Farfetch anunciou essa aquisição, os resultados financeiros e ainda a saída do, então, diretor de operações, Andrew Robb. O resultado? Uma queda de 44,49% das ações, fechando nos 10,13 dólares.

As fontes ouvidas pelo Business of Fashion notam que, embora a NGG tenha sido em tempos uma unidade de negócio rentável, a exposição que tem aos consumidores norte-americanos, que sentem os efeitos da subida da inflação e estão mais controlados com gastos, está a penalizar o negócio. As vendas recuaram 40% no segundo trimestre. “Tudo isto faz a NGG um ativo menos atrativo”, rematou o site especializado.

O negócio com a Richemont fica tremido com esta situação?

Em agosto de 2022, foi anunciado um acordo entre três partes – a Richemont (dona da Cartier e da Montblanc), a Farfetch e a Symphony Global, um dos veículos de investimento do magnata Mohamed Alabbar – para fazer mudanças no grupo Yoox Net-a-Porter, um portal de moda de luxo. Mais de um ano depois, o negócio não está fechado e, com a situação recente na Farfetch, geram-se dúvidas sobre a sua continuidade.

A história da Richemont com a entidade que controla a Net-a-Porter já vai longa. Em 2010, a companhia suíça entrou no capital e, em 2018, decidiu avançar para o controlo maioritário. Porém, a plataforma tem pesado no negócio da Richemont e, no ano passado, a empresa decidiu reduzir a participação. No acordo, a Farfetch ficaria com 47,5% do grupo, com a empresa de José Neves a entregar até 58,5 milhões de ações suas à dona da Cartier como pagamento. O acordo previa que esse total representasse “entre ​10 e 11% do capital diluído de ações da empresa e 12 a 13% do capital emitido”, segundo o anúncio de 2022, numa altura em que cada ação estava a valer cerca de 12 dólares (ou seja as quase 60 milhões de ações valiam 700 milhões de dólares — a capitalização total atual está nos 450 milhões de dólares).

Havia ainda uma alínea em que, no quinto aniversário da conclusão do negócio, a Richemont receberia 250 milhões de dólares, pagos em ações da Farfetch. A Symphony, de Alabbar, ficaria com 3,2% da Yoox Net-a-Porter. No negócio, ficou ainda inscrita a obrigatoriedade de as marcas do grupo de luxo suíço adotarem as soluções tecnológicas da Farfetch.

Farfetch fica com 47,5% na empresa de comércio eletrónico Yoox Net-A-Porter. Richemont aumenta posição na Farfetch

Os analistas notam a questão complicada do negócio. “Parece ser um problema”, reconheceu Tom Nikic, da Wedbush. “Ou a Richemont aceita um pagamento em ativos que têm um valor drasticamente mais baixo ou a Farfetch tem de aceitar uma mudança aos termos do negócio”. Aos olhos deste analista, num cenário de a empresa de José Neves sair de bolsa, “isso poderá ser uma forma de assentar o negócio num compromisso que funciona para as duas partes”.