“Foi preciso ser ministro para ser recebido por si. Foi só por isso que aceitei o cargo”. Com um sorriso e palmadinhas calorosas nas costas foi assim que Fernando Negrão, ministro da Justiça desde dia 30 de outubro, se dirigiu ao diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ), mal saiu do BMW preto que o conduziu do Terreiro do Paço às novíssimas (e amplas) instalações da PJ, na Gomes Freire. Negrão foi diretor da PJ entre 1995 e 1999. Entrou mais tarde na política, estreou-se como ministro no Governo de Pedro Santana Lopes (com a pasta da Segurança Social), foi deputado e aceitou agora o convite de Pedro Passos Coelho para ser ministro da Justiça, talvez o ministro que ficará com o recorde de menos dias no cargo. O Governo caiu no Parlamento no dia 11 de novembro e o Presidente da República ainda não anunciou ao país se tenciona manter este Governo em gestão ou nomear outro primeiro-ministro.
Na terça-feira, dia 17, exatamente uma semana depois de o Governo ter caído, Negrão faz uma visita oficial à PJ. É também a primeira vez que entra naquelas instalações, inauguradas por Passos Coelho, com a presença da sua antecessora Paula Teixeira da Cruz e do então presidente da Câmara de Lisboa e hoje secretário-geral do PS, António Costa, há dois anos. São 12 andares funcionais, vigiados por 350 câmaras, que terminam com um heliporto que nunca foi usado e que tem uma das melhores vistas da cidade de Lisboa. É por aí que começa a visita depois de uma breve reunião no gabinete de Almeida Rodrigues, que herdou o mobiliário clássico da anterior sede e que contrasta com as linhas modernas do edifício.
Ao longo da visita, o ministro cruza-se com vários funcionários que ainda se recordam dele de há 19 anos. “O sr. ministro podia fazer a visita sozinho”, diz-lhe Almeida Rodrigues enquanto assiste aos cumprimentos, ora na Unidade Anti-Terrorista ora na Unidade de Combate à Corrupção, e à habitual troca de galhardetes nestes momentos sobre quem parece mais novo ou está mais magro. “É sempre bom ter um amigo no terrorismo”, saúda Negrão a Luís Neves, chefe da Unidade Anti-Terrorismo. Tem saudades desse tempo? “Nunca tenho saudades do que está para trás, mas foi um bom tempo e gostei muito”, diz ao Observador o ministro, de 65 anos. A saída da PJ foi abrupta depois de um escândalo sobre fugas de informação para a imprensa a propósito do caso da Universidade Moderna.
“Isto é tudo muito clean”, admira-se o ministro ao mirar as paredes brancas e vazias e os longos corredores retos. Alguns gabinetes têm controlos biométricos à entrada, o laboratório de investigação espraia-se por 10 mil metros quadrados (“Agora é que é mesmo CSI”), numa das cadeiras de tiro (a de 25 metros) vários agentes praticam o tiro ao alvo com uma pistola Glock 19 com cartuchos de 15 tiros. “É a carreira de tiro mais moderna do mundo. Só na Singapura há uma igual e é num centro comercial”, explica Almeida Henriques, que era diretor da PJ em Coimbra quando Negrão foi diretor da PJ. Viria a ascender a diretor nacional em 2008, tornando-se o primeiro investigador de carreira a ocupar o cargo acabando com a tradição dos magistrados.
No piso -2, na sala de situação (onde não é permitida a recolha de imagens) está a ser acompanhada e dirigida desde as 9h do dia anterior uma operação de tráfico de seres humanos na região de Odemira, Alentejo. Envolve cerca de 200 funcionários da PJ, 12 tradutores. Já dura há mais de 24 horas. “Ninguém quer ir para casa. É a adrenalina”, explica a coordenadora da operação, que se mantém em contacto com os homens e mulheres no terreno através de quatro frequências distintas de rádio. “Os políticos também gostam de adrenalina. Precisam de momentos como esses, de crise política, senão ficam mortiços”, responde-lhe o ministro, para demonstrar empatia.
A visita à PJ – a segunda visita institucional enquanto ministro, a primeira foi ao Centro de Estudos Judiciários – foi só funcional. Não se abordou em pormenor a questão do terrorismo, que a PJ também investiga. Os atentados terroristas em Paris ainda eram bem recentes. Nessa noite de sexta-feira, Negrão manteve-se em contacto com o Ministério da Administração Interna e o gabinete da secretária geral do Sistema de Segurança Interna. Dias depois teria lugar a reunião dos ministros de Justiça e Administração Interna da União Europeia, em Bruxelas.
Em 2004, Negrão aceitou ser ministro da Segurança Social. Esteve quatro meses em plenas funções no cargo até o então Presidente ter dissolvido a Assembleia da República. Agora, esteve 12 dias até o seu Executivo ter caído com uma moção de rejeição do programa de Governo. É azar? “Sinto que somos nós e as nossas circunstâncias. As minhas circunstâncias são estas”. Usa uma frase que o próprio Santana gosta de repetir. Sabe a pouco? “É verdade que sim. Principalmente, é a frustração de querer fazer coisas e estar impedido”. Conversando com Fernando Negrão, nota-se bem que esta é a sua área e que a pasta da Justiça é um sonho mais acalentado.
O gabinete que agora ocupa e que pertencera a Paula Teixeira da Cruz está como ela o deixou no dia 29 de outubro. A pesada mesa de madeira escura que serve de secretária não foi movida um centímetro, na parede a tapeçaria com a inscrição “Valorização, pelo pensamento e pelo braço” continua a emoldurar a sala com vista para a estátua de D. José I e o rio Tejo, as duas estantes com portas de vidro estão vazias e ninguém se deu ao trabalho de as compor com novos livros. Em cima da mesa, não se avistam objetos pessoais. Nem uma moldura com uma fotografia, um estojo de canetas, uma prenda que foi guardada. O ministro achou que não valia a pena dar um toque pessoal ao gabinete? “Não é isso. Não costumo trazer coisas de casa para o escritório. Também não tinha no gabinete da Assembleia da República”, desculpa-se.
Em cima da secretária, contudo, está um documento muito especial. Para além dos (obrigatórios) jornais e computador, um conjunto de folhas A4 agrafadas que são uma espécie de Bíblia sobre os atos que um Governo em gestão pode praticar. Na verdade, são dois documentos. Um foi feito pelos serviços jurídicos da Presidência do Conselho de Ministros e outro pelos serviços do próprio Ministério da Justiça. “São coincidentes, o que é bom”, explica Fernando Negrão, fazendo questão de esclarecer que os documentos foram feitos face à queda do Governo no Parlamento no dia 11 e não por estarem já a prever que Cavaco opte por manter este Governo em gestão até poder haver eleições antecipadas, lá para junho do próximo ano.
Negrão chega ao gabinete por volta das 8h30. António Delicado, o chefe de gabinete, é uma das primeiras pessoas com que fala para preparar o dia. Mas o que é que o novo ministro tem feito? Tratar de processos urgentes relacionadas com expropriações feitas pelo Estado, “dar um sinal de que o mapa judiciário é para avançar”, avaliação do estado do Citius (“que ainda tem algumas fragilidades”), receber queixas dos reclusos (que não se inibem por causa de governos de gestão) ou sobre condições de segurança dos tribunais. Há ainda os pedidos de concessão de nacionalidade, que não páram de chegar, bem como os pedidos de portugueses condenados no estrangeiro que querem vir cumprir pena em Portugal. Agora, iniciativa legislativa não há. Temas que ficaram em aberto como a revisão dos estatutos das magistraturas – e que tanta polémica causaram – estão em suspenso.
“A minha primeira preocupação foi ver se havia alguma coisa para pôr a andar. Mas a dra. Paula Teixeira da Cruz deixou tudo muito organizado. Deixou-me os dossiês com os assuntos pendentes, fundamentalmente coisas a nível financeiro, verbas que têm que ser desbloqueadas periodicamente pela ministra das Finanças”.
Naquele dia, a manhã arranca com uma reunião com o secretário-geral do ministério. “Há 19 anos, foi ali que tomei posse como diretor nacional da PJ”, diz o ministro quando conversa com o Observador no gabinete que já foi ocupado por outros antecessores de direita como Celeste Cardona ou José Pedro Aguiar-Branco, apontando para a sala de reuniões contígua ao seu gabinete e onde dentro de momentos se vai reunir com Carlos Sousa Mendes. Teresa Anjinho, a secretária de Estado, aparece também para a reunião. Estreou-se em funções de Governo no dia 30 de outubro (ao contrário de Negrão, é a primeira vez que foi convidada para um cargo governativo) e foi designada pela quota do CDS. Consta que Paula Teixeira da Cruz, enquanto esteve no ministério, se opôs sempre a que o partido mais pequeno da coligação entrasse no Ministério da Justiça – os dois secretários de Estado que teve eram independentes e escolhidos por si.
Teresa Anjinho, ex-deputada de 40 anos, está grávida. Curiosamente, é a terceira governante de Passos que exerce funções grávida e são todas do CDS. As outras foram a ministra da Agricultura, Assunção Cristas, e a sub-secretária de Estado do, Vânia Dias da Silva.
O almoço nesse dia é com Elina Fraga, bastonária da Ordem dos Advogados, que teve várias guerras com Paula Teixeira da Cruz. No final do mandato, o diálogo institucional já não existia. Negrão marcou um almoço para ter uma conversa mais informal. O sítio? Um restaurante com uma vista deslumbrante do rio Tejo, o circo como vizinho e nada mais nada menos do que propriedade do próprio Ministério da Justiça: o restaurante do Chapitô, na colina do castelo de S. Jorge.
“A última vez que aqui estive foi quando convidei a dra. Manuela Ferreira Leite para mandatária da minha candidatura à Câmara de Lisboa [em 2007]”, recorda, contando que o contrato de arrendamento das instalações do MJ é todos os anos religiosamente renovado com o Chapitô. “Estamos a desfrutar de um sol magnífico”, é a primeira coisa que Elina Fraga diz ao ministro, que chega atrasado ao almoço.
As reivindicações, mesmo assim, ficaram feitas: necessidade de reatar relações com o Ministério da Justiça uma vez que deixaram de sair, melhoria do mapa judiciário.
Terça-feira, dia 17, foi um dia em que aconteceu tudo. Assistiu a duas operações na PJ (tráfico de seres humanos e corrupção em cartas de condução) e quando chegou ao ministério soube de acusação a Miguel Macedo. “Foi um grande ministro da Administração Interna. Ainda estamos numa fase intermédia do processo e por isso aguardamos o resultado”, diz. Estava numa reunião com o diretor-geral de Administração da Justiça, Pedro Gonçalves, quando a notícia foi divulgada.
Quando tomou posse sabia que estava tudo em aberto. “Já havia sinais de que era possível. Por isso, não fiquei muito surpreendido”. Só percebeu o que se estava a desenhar dias depois das eleições legislativas de 4 de outubro. “Não foi na noite eleitoral que percebi. Todos os portugueses deitaram-se descansados nessa noite julgando que o próximo primeiro-ministro seria Pedro Passos Coelho. Com o passar dos dias começámos a perceber que essa regra não iria ser cumprida”, conta, recordando do exato momento em que soaram as campainhas na sua cabeça. “Foram umas declarações de António Costa numa entrevista a uma rádio em que, apesar de não o dizer claramente, diz que seria preciso procurar uma maioria que só é possível de ser encontrada à esquerda e que era preciso acabar com um bloqueio de 40 anos”. Agora, diz estar preparado para regressar em breve ao seu lugar de deputado.
No dia da aprovação da moção de rejeição do programa de Governo no Parlamento, Negrão esteve sentado ao lado dos colegas ministros cerca de sete horas no Parlamento. Foram outras tantas sete horas em silêncio enquanto Passos e os deputados travavam a discussão. Sentado junto a novos ministros como Helena Mano, a nova ministra da Educação, Negrão estava mais perto do lado esquerdo do hemiciclo, mais perto de Catarina Martins e Jerónimo de Sousa do que dos deputados que apoiavam o seu Governo. “É um esforço democrático saber ouvir e estar calado”, recorda, explicando que o que observou do lugar onde estava foi “uma grande contenção do grupo parlamentar do PCP” que contratava com “um grande entusiasmo do BE” e as “filas empolgadas do PS”. “Mas foi realmente um ambiente tenso. O Parlamento está dividido ao meio”.
Até há pouco tempo, tinha estado do outro lado, na bancada do PSD onde se destacou como presidente da comissão de inquérito ao caso BES e onde acabou por, no final, receber elogios do PS pela forma como conduziu os trabalhos. Negrão é juiz com licença suspensa e era deputado desde 2002 (com o interregno da passagem pelo Governo de Santana). “Sinto falta do diálogo com os colegas de bancada e com os outros deputados”, reconhece.
Negrão sabe que vai estar pouco tempo à frente do Ministério da Justiça e sabe também o que gostaria de fazer se tivesse tempo para isso. “Gostava de abrir a justiça à sociedade. Pôr as magistraturas a falar com os parceiros sociais, com as universidades”, revelou.
“Os tribunais deviam estar mais abertos, explicar as suas sentenças. O segredo de Estado é exceção e não a norma”, explica, reconhecendo que “há resistências dos próprios juízes e que nem a renovação geracional veio mudar a atitude”. E, sim, inclui nisto que está a dizer casos mediáticos como o que envolve o ex-primeiro-ministro, José Sócrates.
Despede-se do Observador pelas 19h, antes de uma última reunião com a secretária de Estado da Justiça. “Isto de estar em gestão também dá trabalho”, comenta, dando o mote para a despedida.