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Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

Símbolos de identidade regional e armas de extinção em massa. Que histórias contam estes 380 chapéus e leques?

Até 2 de outubro, dividida entre Lisboa e São João da Madeira, a exposição “Do Chapéu e do Leque: Função e Simbolismo” recua no tempo e exibe mais de dois séculos de produção chapeleira.

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O acessório pode ter caído em desuso, pelo menos no que diz respeito à sua presença no quotidiano, mas historicamente é um dos mais ricos e informativos elementos do guarda-roupa. Basta olhar para o século XX e ver como o chapéu foi sofrendo alterações ao sabor de guerras e retomas económicas, de ousadias criativas e de um novo entendimento da natureza e da finitude das matérias-primas. Além, é claro, de ser um espelho da diversidade cultural que habita o planeta.

A partir deste fim de semana e até dia 2 de outubro, a exposição “Do Chapéu e do Leque: Função e Simbolismo” recua no tempo e exibe mais de dois séculos de produção chapeleira e não só. O leque, outro acessório praticamente erradicado das atuais rotinas, é também alvo de reflexão. Ambos foram, simultaneamente, obras de enorme mestria técnica, mas também símbolos de poder e estatuto social. No total, cerca de 380 peças são expostas em três núcleos — o Museu Nacional do Traje (MNT) e a Loja Lisboa Capital Verde Europeia 2020, ambos em Lisboa, e o Museu da Chapelaria, em São João da Madeira.

Criação da chapeleira holandesa Marianne Jongkind

Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

“É muito interessante ver que, tanto no leque como no chapéu, pela forma, materiais usados, pela decoração e até mesmo pela profusão dos vários modelos, conseguimos perceber o contexto social e político vivido nas diferentes épocas”, começa assinalar Joana Galhano, diretora do Museu da Chapelaria e comissária da exposição.

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É a “observar o chapéu” (o objeto estrela desta exposição) e a “retirar história dele” que a historiadora abre caminho por entre os diferentes objetos que compõem o núcleo instalado no Palácio do Monteiro-Mor, na capital. É aqui que se concentra o maior número de peças, provenientes do acervo do museu lisboeta, mas também da coleção depositada em São João da Madeira, localidade cuja história se funde com a da chapelaria industrial portuguesa, e ainda alguns exemplares cedidos por um colecionador.

“Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, começamos a ver materiais que não eram propriamente frequentes nos chapéus, como o celofane ou até mesmo o papel de jornal. Há uma escassez muito grande de matérias-primas e isso provoca uma evolução nas formas e faz nascer uma paleta de cores completamente extravagante”, resume.

Leques produzidos nos anos 1920 (à esquerda) e entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX

Imagem cedida pelo Museu Nacional do Traje

Aqui, praticamente todo o museu de reorientou para dar ênfase a ambos os artefactos. Os visitantes podem percorrer (gratuitamente) a sala de exposições temporárias do Museu Nacional do Traje, onde os diferentes painéis, debruçados sobre o século XX, refletem sobre funcionalidade, simbolismo, identidade, diversidade e criação artística. Os que pretenderem uma leitura mais longa no tempo, nomeadamente um recuo maior até ao século XIX, podem começar pela exposição permanente do museu, enriquecida com peças alusivas ao tema dominante.

Paris, Lisboa e São João da Madeira: o triângulo da chapelaria

José Carlos Alvarez, diretor do museu lisboeta, destaca, por sua vez, a “fabulosa” coleção de caixas — elas próprias objetos de apreciação, mesmo sem qualquer chapéu no interior –, mas também a pequena vitrine de faturas antigas. “Dá para reconhecer algumas das chapelarias que existiam em Lisboa, onde ficavam e quem eram as suas clientes. A duquesa de Lafões, a condessa de Ponte Lima — era ali que faziam as suas encomendas. Um dos documentos sugere mesmo que havia chapeleiros franceses a estabelecerem-se em Lisboa”, refere.

Entre os documentos, destaque para o mais antigo, um manuscrito datado de 1791, assinado por José Joaquim Lobo Pessanha e relativo à importação de leques. Os restantes são já do século XIX — da Fabrica de Chapeos Movida a Vapor de A. Roxo & Irmãos, da Soares & Cª, “Chapeleiro de Suas Majestades”, da “Chapelaria da Moda” Tavares Bastos & Costa e ainda da Chapellerie dirigée par Charles.

O chapéu de nazarena

Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

“Lisboa era o grande centro das modistas. Obviamente, também havia no Porto, mas em termos de moda e influência, Lisboa era o centro, precisamente porque ia beber muito a Paris”, recorda Joana Galhano. E as caixas não mentem. A maioria surge identificada com os rótulos de estabelecimentos lisboetas, como é o caso da Gardenia, nome que ainda hoje se mantém no número 54 da Rua Garrett, no Chiado. “Existiam caixas de viagem, mais resistentes, mas as outras, sobretudo, eram trabalhadas com motivos decorativos, alguns especialmente encomendados a artistas, ou com estampagens”, continua.

Outras traziam insígnias da capital francesa, embora a proveniência das peças continue a ser a maior incógnita numa parte dos casos. “Às vezes, sabemos quem é que usou os chapéus, temos o historial da peça, mas não conseguimos chegar ao sítio onde foram adquiridos. Sabemos que, em Portugal, as elites frequentavam muito Paris e faziam gala em comprar nos grandes costureiros.”, complementa José Carlos Alvarez.

Influencers, cowboys e uma tradição bem portuguesa. Estas marcas trazem o chapéu de volta

A moda estava em Lisboa, vinda de Paris, mas a produção industrial ficava em São João da Madeira, onde o início do fabrico de chapéus remonta ao início do século XIX. “Estamos a falar de dois universos: o chapéu de feltro, de palha ou de pano e o chapéu de modista. Eram mercados necessariamente diferentes, que diferiam no público e no objetivo. A indústria chapeleira produzia maioritariamente um chapéu de identidade tradicional e popular e também modelos de uso civil e quotidiano, como as cartolas, os cocos, os homburgs, os fedoras. Mas as e peças de design, já fora do âmbito industrial, eram feitas por modistas que absorviam influências francesas, inglesas e algumas italianas também”, continua a diretora do Museu da Chapelaria.

Correr Portugal e o mundo, um chapéu de cada vez

De volta à sala de exposições temporárias, destaque para os chapéus que as diferentes regiões portuguesas foram moldando à medida das suas necessidades, mas também dos seus recursos e do meio envolvente. “São peças do traje regional popular, usadas por camponeses, pescadores, campinos. Há uma relação muito próxima entre o meio em que trabalham e o próprio chapéu — os materiais que usam e os métodos para produzi-lo”, explica Joana Galhano.

Salta à vista uma bioca, espécie de capuz (ou parte superior de um capote) preto em sarja de algodão, tradicionalmente usado nos Açores, em particular na Terceira. Na mesma vitrine dedicada às peças de tradição regional portuguesa, vemos o barrete masculino da Nazaré, em lã preta mas com uma forma alongada semelhante ao do campino do Ribatejo, esse sim tingido de verde e vermelho vivos. O chapéu de varina, o gorro da Póvoa do Varzim e o chapéu de trabalho do Algarve — é Portugal, continental e insular, desdobra-se em exemplares de chapelaria.

O chapéu indonésio ti'i langga

Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

O mesmo pode dizer-se do mundo, também ele alcançado de relance num outro momento da exposição. “O chapéu é também diversidade e uma representação de todas as sociedades e da própria miscigenação que acontece entre elas”, introduz a comissária. É neste capítulo que encontramos silhuetas tão inconfundíveis como o sombrero mexicano, o coonskin canadiano, popularizado pela personagem televisiva Davy Crockett nos anos 50, ou o deerstalker inglês, usado por Sherlock Holmes para seguir o rasto, não presas de caça, mas assassinos e meliantes.

Mas a investigadora guia-nos na descoberta de outros chapéus do mundo, caso do miehen lakki (expressão que pode ser traduzida para chapéu dos quatro ventos), usado pelo povo Sámi, na Finlândia, tradicionalmente dedicado ao pastoreio de renas. Ou do kalyeem da tribo Kuba, na República Democrática do Congo — a peça surge decorada com búzios, elementos raros naquele território, o que leva a crer que se trata de um chapéu com um determinado estatuto. Do minimalismo do samo coreano chega-se ao engenho do chapéu leque, ícone malásio que consiste numa pala retrátil feita em batik, método de estampagem também típico da região.

Ascot. Nada para o maior desfile de chapéus do mundo (nem mesmo a pandemia)

Mas é preciso voltar às galerias principais do museu para encontrar um chapéu que atravessou quase meio mundo para se instalar nos hábitos europeus. “São chapéus de fumador”, aponta o diretor José Carlos Alvarez. Redondos, achatados e sem aba, esta importação tornou-se popular entre os cavalheiros. “No final do século XIX, eram muito frequentes nas casas privadas das elites lisboetas. Normalmente, depois do jantar, os homens passavam à sala de fumo e usavam-nos para não ficarem com o cheiro. Muitas vezes, usavam também uns robes no mesmo estilo”, explica. Segundo Joana Galhano, é uma peça com origem na região da Arábia Saudita e do Norte de África — “não nos esqueçamos que estávamos no seguimento das grandes rotas comerciais, responsáveis por trazer influências do Oriente”.

1918 e o Tratado sobre Aves Migradoras

É sabido que a moda, em particular o seu consumo em grande escala, nem sempre teve em atenção a fragilidade do equilíbrio da natureza. “Muitas vezes, a relação entre homem e natureza não era saudável”, admite Galhano, enquadrando a conclusão na própria chapelaria. A pertinência do tema fez com que lhe reservasse um dos painéis — uma vitrine repleta de chapéus e leques, adornados com penas finas e plumas de aspeto luxuriante. “Houve grandes excessos, uma caça intensiva e absolutamente desregrada de aves migratórias que chegou a colocar em risco a continuidade de espécies como garças e socós”, resume.

“São peças de uma beleza extraordinária, mas que conduziram a destruição”, continua. O confronto começou ainda no século XIX, segundo a investigadora, altura em que surge o primeiro movimento de pessoas e entidades a apelar à preservação das espécies animais. Foi precisamente nessa altura que, sobretudo os leques, se tornaram mais exuberantes, armas de sedução cuja produção exigia materiais raros e exóticos, extraídos dos quatro cantos de um mundo imperialista.

Chapéu "Feltro de Bacalhau com Grão-de-bico", de Maor Zabar

Imagem cedida pelo Museu da Chapelaria

A extinção iminente (algumas espécies chegaram mesmo a desaparecer para sempre) levou a que fosse assinado o Tratado sobre Aves Migradoras, na América do Norte, em 1918. “É aí que começam a surgir outros elementos, nomeadamente plumagens de aves não migradoras, materiais sintéticos e até vegetais”, indica.

Sem crueldade animal, apenas total liberdade criativa, a exposição chega a peças concebidas por designers nacionais — Filipe Faísca, Alexandra Moura, Ricardo Andrez, Katty Xiomara, entre outros. No rol de estrangeiros, destaca-se uma peça de Maor Zabar. “Feltro de Bacalhau com Grão-de-bico” foi especialmente feita pelo chapeleiro israelita para uma exposição organizada em 2017, pelo museu de São João da Madeira. Caso surjam dúvidas, é um toucado, não um belo prato de comida portuguesa.

Exposição patente até 2 de outubro no Museu Nacional do Traje (Largo Júlio Castilho, Lisboa), na Loja da Lisboa Capital Verde Europeia 2020 (Praça do Município, 31, Lisboa) e no Museu da Chapelaria (Rua António José de Oliveira Júnior, 501, São João da Madeira). A entrada é gratuita, exceto exposição permanente do MNT (quatro euros) e no Museu da Chapelaria (dois euros).

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