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Síndrome de Noé. Quando acumular animais é doença

Começam por ter dois, três animais de estimação. Ao fim de um ano, têm mais do dobro. A acumulação de animais é mais do que uma mania: é uma doença que tende a ser ignorada.

Alice Cardoso mudou-se para a Rua das Amendoeiras, em Pegarias de Baixo, em 2009. Na altura, ninguém desconfiou de nada. Sabia-se que Alice, com cerca de 50 anos, tinha animais, muitos deles de raça, e que até fazia criação. Em Setúbal, onde viveu durante alguns anos, chegou mesmo a ter várias lojas de animais.

Mas o que os moradores da Rua das Amendoeiras não sabiam era que, por detrás do portão verde da vivenda de Alice Cardoso, viviam centenas de animais, que enchiam todas as divisões da moradia. Não tardou até um cheiro nauseabundo começar a encher a rua de Pegarias de Baixo. Nos caixotes do lixo, começaram também a aparecer cadáveres de animais, que apresentavam sinais de maus tratos.

A situação, insustentável, levou os moradores a avisarem as autoridades. Mas a resposta tardou. Seriam precisos vários anos para que a Guarda Nacional Republicana (GNR) conseguisse finalmente entrar na vivenda da Rua das Amendoeiras onde, todos os dias, de acordo com o relato dos vizinhos de Alice, entravam animais dentro de sacos de plástico.

A intervenção aconteceu em 2014, e o cenário que os militares do Serviço de Proteção à Natureza e Ambiente (SEPNA) da GNR encontraram foi tal que a moradia de Alice Cardoso ficou conhecida para a posteridade como a “casa dos horrores de Palmela”. “Havia um longo caminho legal e também logístico a percorrer até conseguirmos intervir”, esclareceu na altura ao jornal Público Teresa Palaio, diretora do departamento de ambiente e gestão operacional, da Câmara Municipal de Palmela.

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No interior da vivenda, assim como no terreno anexo, viviam centenas de cães, gatos e até ratos domésticos. Ao todo eram mais de 200 animais. A casa estava suja, descuidada e havia excrementos por todo o lado. Os animais, negligenciados, tinham sido vítimas de maus tratos e os múltiplos cruzamentos, entre pais e filhos, fizeram com que muitos tivessem problemas graves de saúde e deficiências.

Alice Cardoso não era nova nestas coisas. Na casa antiga, um apartamento em Setúbal, chegou a viver rodeada por cerca de 200 animais. As queixas constantes de vizinhos e associações de proteção animal, como o Grupo de Intervenção e Resgate Animal (GIRA), levaram a câmara a intervir. Mas de nada valeu. Alice limitou-se a mudar de ares e a comprar uma vivenda em Pegarias de Baixo, que encheu de animais.

Para a mulher de 50 anos, porém, era tudo “normal”. Com um ar impávido e sereno, limitou-se a observar os trabalhos de resgate dos mais de 200 animais que albergava na vivenda de Palmela. Questionada pelos jornalistas, não hesitou em esclarecer que os animais estavam “saudáveis”, porque não tinham “doenças”. “Qual é o problema?”, questionou.

Sandra Duarte Cardoso, presidente da SOS Animal, garante que os casos de acumulação de animais como o de Alice Cardoso são cada vez mais frequentes. “É um flagelo que é crescente”, disse a veterinária ao Observador. “Não sei se é de agora ou se já existiam e estavam camuflados. Existem até pessoas ligadas a associações que são acumuladoras.” Apesar disso, o número de queixas apresentadas é relativamente baixo. Contactada pelo Observador, a GNR referiu que os casos de denúncias associadas à acumulação de animais “são pontuais”.

Sandra, que também esteve envolvida no resgate dos mais de 200 animais da vivenda de Palmela, lembrou ainda um outro caso que foi seguido pela sua associação. No início de 2014, a SOS Animal foi alertada para o caso de Maria José, uma senhora com cerca de 60 anos que vive numa moradia em Sintra na companhia de vários cães.

As imagens captadas pela SIC para o programa SOS Animal mostram o estado da casa em que Maria José vive. Por todo o lado, há objetos e lixo empilhado, que a mulher de 60 anos recolhe da rua, juntamente com animais. “Não se consegue entrar da porta para dentro”, contou Sandra Duarte Cardoso.

Maria José respondeu simplesmente que “tirarem-me os cães não me tiram, porque já disse que a seguir mato-me”.

Maria José, acumuladora compulsiva, já se viu obrigada a mudar de casa várias vezes, devido a queixas dos vizinhos. “Quando é despejada de um sítio, arranja outro para começar novamente a acumular”, contou a diretora da SOS Animal. A casa de Sintra foi entretanto submetida a uma limpeza, mas Sandra garante que a mulher de 60 anos já voltou a acumular outra vez.

Quando questionada sobre o que acontecia se lhe tirassem os cães, Maria José respondeu simplesmente: “Tirarem-me os cães não me tiram, porque já disse que a seguir mato-me”. Para ela, os animais são o seu maior tesouro.

Quando o amor pelos animais se torna numa doença

Alice e Maria José têm uma coisa em comum: são ambas acumuladoras, uma condição clínica que se caracteriza por uma dificuldade em desfazer-se de objetos ou animais que ocupam várias divisões da casa e que causam “incómodos ou danos significativos aos doentes e àqueles que os rodeiam”, explicou ao Observador Randy Frost, um psicólogo norte-americano que há vários anos estuda o fenómeno.

A maioria dos acumuladores guarda objetos comuns e sem valor, que toda a gente tem em casa. “Os objetos mais acumulados são roupas, papéis, livros, revistas e caixas”, referiu Frost. A acumulação de animais, apesar de também acontecer, é menos recorrente, “mas muito devastadora quando acontece”, uma vez que está associada “a um maior grau de delírio e a uma maior resistência à autoridade”.

Apesar de ninguém saber ao certo porque é que os acumuladores acumulam, esta condição clínica está muitas vezes relacionada com algumas “doenças psicopatológicas”, como a esquizofrenia, perturbações de personalidade, perturbações obsessivo-compulsivas e, principalmente, com a depressão. “A depressão ocorre em mais de 50% dos casos de acumulação, e os distúrbios de ansiedade também são frequentes”, salientou o psicólogo norte-americano. Para além disso, os acumuladores tendem a sofrer de doenças crónicas e de problemas de obesidade.

Os cinco sintomas da Síndrome de Noé

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De acordo com Rosa Almeida, os cinco sintomas que levam normalmente a determinar um caso de Síndrome de Noé ou de Síndrome de Diógenes são:

  • O descuido severo com o auto-cuidado social, que se manifesta “numa quebra de padrões normais para os cuidados e higiene pessoal”;
  • O abandono do cuidado ambiental;
  • O isolamento marcado;
  • A falta de pudor e o “reduzido insight para o problema”, visível através da “quebra de condutas sociais básicas”;
  • O comportamento acumulador.

 

A acumulação de animais poderá ser ainda sinal de uma outra doença, a Síndrome de Noé. Esta é uma variação de uma outra patologia, a Síndrome de Diógenes (SD) que, de acordo com Frost, “se trata mais de um subgénero da acumulação compulsiva do que de um fenómeno diferente”, ainda que com outros sintomas.

Ao contrário dos acumuladores compulsivos, quem sofre de Síndrome de Diógenes procura isolar-se, negando a doença e evitando todo e qualquer contacto social. Porém, o sintoma mais vincado é a auto-negligência. Nos casos que vão surgindo na comunicação social, é comum a descrição de habitações quase em ruína, onde se acumulam objetos e lixo recolhido da rua. Nos casos mais severos, existem muitas vezes alimentos em putrefação, espalhados pela casa, a presença de excrementos e infestações de insetos e roedores.

A aparência de quem sofre desta condição é, quase sempre, descuidada — os cabelos sempre emaranhados e as roupas sujas, vestidas em camadas. A nível físico, Oscar Ribeiro e Rosa Almeida, no artigo Intervenção na Síndrome de Diógenes: desafios à Prática Social e à Saúde Públicaapontam ainda a “presença de parasitas, sujidade, feridas, infeções dérmicas e/ou urinárias” e de “odores incómodos”.

Os contactos sociais são ocasionais e as relações pessoais pouco significativas. A solidão, muitas vezes potenciada por circunstâncias da vida, acaba por se tornar voluntária. Com o passar do tempo, os doentes acabam por procurar, cada vez mais, o isolamento e, em última instância, poderão mesmo desenvolver “uma fobia à mudança de espaço”, como referem Oscar Ribeiro e Rosa Almeida.

Esta condição afeta sobretudo pessoas mais velhas, que vivem sozinhas e isoladas. De acordo com o artigo Noah Syndrome: A Variant of Diogenes Syndrome Accompanied by Animal Hoarding Practices, de Alejandra Saldarriaga-Cantillo e Juan Carlos Rivas, os doentes são maioritariamente mulheres, com mais de 65 anos e um QI acima da média. Apesar disso, a doença não é exclusiva de nenhuma faixa etária, género ou condição social.

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Esta patologia passa facilmente despercebida, uma vez que é muito comum “a imagem do idoso que alimenta gatos ou cães de rua”, como referem Castillo e Rivas. “O comportamento é interpretado como um ato altruísta em relação aos animais. É socialmente aceite porque os idosos que recolhem animais são vistos como pessoas solitárias, que procuram companhia e afeto.”

A recolha dos animais pode ser feita de duas formas — de forma “passiva” e de forma “ativa”. Na primeira, estes tendem a ser recolhidos com a ajuda de terceiros (através de abrigos, associações ou até vizinhos). Isto é muito comum, uma vez que quem sofre desta síndrome é “conhecido por resgatar animais, e estes são-lhe entregues deliberadamente e de boa vontade”, como aponta o artigo Noah Syndrome.

Noutros casos, o número de animais aumenta através da reprodução. “Muitas vezes levam cinco gatos e ao fim de um ano têm 70”, referiu Sandra Duarte Cardoso, da SOS Animal. “Os animais nunca têm acesso a um veterinário e não são esterilizados.”

“Muitas vezes levam cinco gatos e ao fim de um ano têm 70.”
Sandra Duarte Cardoso, presidente da SOS Animal

Já na forma ativa, é o próprio doente que procura os animais, existindo uma intenção e esforço em acumular. Estes podem ser apanhados da rua ou adotados em abrigos. Mafalda Campos, do movimento Movido a 4 Patas, garante que existem muitas “pessoas que se desculpam com o facto de estarem a ajudar os animais de rua” mas que, na verdade, “são verdadeiras acumuladoras“.

Para Castillo e Rivas, a “relação recíproca” que é criada com os animais pode explicar a origem “deste comportamento anómalo”: “O animal é visto como sendo de confiança e acessível e, patologicamente, pode ajudar o doente a ultrapassar situações traumáticas, como o desgosto ou o abandono social”, que muitas vezes estão na raiz do problema.

Diógenes, o filósofo que vivia dentro de um barril

O termo “Síndrome de Diógenes” foi criado por A.N.G. Clark, G.D. Mankikar e Ian Gray, autores do no estudo Diogenes syndrome: A clinical study of gross neglect, publicado em 1975 na revista de medicina britânica Lancet. A expressão é uma referência ao filósofo grego do século IV a.C. Diógenes de Sínope, que ficou conhecido por ter levado ao extremo os ideais de privação e de desprendimento total dos bens materiais.

À procura de um homem honesto

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Diógenes nasceu em Sínope, uma antiga cidade costeira no norte da atual Turquia, no século V a.C. Depois de ter sido expulso da sua cidade natal, mudou-se para a capital grega, Atenas, onde, de acordo com os relatos, se terá tornado discípulo de Antístenes, antigo aluno de Sócrates.

Foi aí que terá decidido desprender-se de todos os bens materiais. Passou então a viver na rua, dentro de um grande barril, que lhe servia de casa. Defendendo que a pobreza era uma virtude, costumava caminhar durante o dia pelas ruas de Atenas, carregando uma lamparina. Aos que o interpelavam, Diógenes dizia que estava à procura de um homem honesto.

Defensor de uma vida austera e de “renúncia extrema às comodidades e convencionalismos do meio social”, como escreveram Rosa Almeida e Oscar Ribeiro, Diógenes acreditava que a felicidade — a verdadeira felicidade — não podia ser atingida através dos bens materiais. Por isso, não tinha casa, família ou qualquer recurso económico. Chegou a viver dentro de um barril, e os seus únicos bens eram um cajado e uma tigela, que trazia sempre consigo.

A designação, criada em 1975, não deixou, porém, de gerar debate. Ainda hoje se discute se “Síndrome de Diógenes” será o termo mais adequado para descrever os diferentes sintomas que lhe são associados, uma vez que o mesmo pressupõe um comportamento voluntário, que nem sempre se verifica.

Uma doença que ninguém leva a sério

Como aconteceu nos casos de Alice Cardoso e Maria José, as situações de acumulação de animais são geralmente sinalizadas por terceiros — familiares ou vizinhos –, que se sentem incomodados e decidem apresentar queixa. Quando isso acontece, cabe ao SEPNA intervir e avaliar o caso, “essencialmente ao nível da vacinação e condições de alojamento, reportando eventuais infrações contraordenacionais”, explicou ao Observador Marco Cruz, chefe da Divisão de Comunicação da GNR.

No caso de serem detetados “riscos higio-sanitários, maus-tratos, problemas relativos ao bem-estar ou falta de condições de segurança”, a divisão da GNR entra em contacto com o veterinário municipal, que depois tomará “as medidas consideradas adequadas”. Por sua vez, é às câmaras municipais que cabe zelar pela segurança e salubridade das habitações, assim como proceder à captura, alojamento e abate de cães ou gatos.

Porém, a denúncia dos casos costuma acontecer vários anos depois de as situações surgirem, o que pode representar um problema, não só para o doente, mas também para aqueles que o rodeiam. Muitos nem sequer “chegam a ser do conhecimento público”, garantiu ao Observador Rosa Almeida.

Mafalda Campos, da Movido a 4 Patas, garante que esta é “uma questão pública que está a ser deixada para trás”. “Não há perspicácia por parte das autoridades no sentido de agilizar os meios”, disse ao Observador. Mafalda, que admitir conhecer vários casos de acumulação, incluindo perto de casa, considera que as queixas não são tomadas como “casos sérios”. “Se o tribunal dá razão a quem tem os animais, essa pessoa ainda se sente no direito de ter mais animais.”

Para Rosa Almeida, é claro que estas situações deveriam ser entendidas como “sinais de alerta à comunidade e aos serviços de proximidade”, uma vez que constituem uma “ameaça à saúde e à segurança pública”. “Alguns casos que mais suscitam alertas de perigo são aqueles que são acompanhados de acumulação exagerada de animais, de toneladas de objetos e lixo no domicílio. São situações que, no caso de perda de controlo, podem levar à morte”, frisou a especialista.

Para além do estigma que existe em relação a estes doentes, a gerontóloga acredita ser “também evidente que a nossa sociedade e os profissionais de distintos setores prestadores de serviços não se encontram suficientemente sensibilizados”, e que até são ignorantes em relação ao tema. “Não quero falar num tom demasiado forte, e portanto quando digo ‘ignorância’ não é no sentido depreciativo, mas sim no sentido de que já é hora de dar-se devida atenção e formação aos profissionais que podem estar de alguma forma envolvidos”.

"As administrações públicas devem compreender que, ainda que pouco relevante, trata-se de um fenómeno com um tremendo impacto nas vidas daqueles que sofrem."
Rosa Almeida, gerontóloga

Porém, a atuação nos casos de Síndrome de Diógenes (SD) nem sempre é fácil, uma vez que os acumuladores tendem a negar qualquer tipo de ajuda. E o facto de não existirem “abordagens pensadas, adequadas ao fenómeno” só piora a situação. “Existem inúmeros casos que, devido a intervenções bruscas e que não se centraram na pessoa, acabaram por piorar em muito a sua condição”, salientou Rosa Almeida. “Já foram documentados pelos meios de comunicação diferentes casos e, na sua maioria, as respostas definitivas e impostas não foram nem suficientes, nem adequadas e muito menos integradas, gerando muitas vezes mais estigma.”

Por essa razão, a especialista em SD defende que “uma abordagem multidisciplinar na comunidade” é a melhor solução, uma vez que “permite reduzir a ineficácia de uma intervenção fragmentada”, diminuir o “isolamento, verificar sinais de alerta, identificar os principais fatores precipitantes, sensibilizar e solicitar o apoio e o compromisso e acompanhar e controlar o sucesso do plano de intervenção”.

Os animais também precisam de ajuda

Mas não são apenas as pessoas que sofrem. Os animais também. Sandra Duarte Cardoso explicou ao Observador que estas situações podem ser muito perigosas, uma vez que os animais não têm acesso a cuidados veterinários. Tornam-se “portadores de doenças infeto-contagiosas” e, como não são esterilizados, reproduzem-se sem qualquer tipo de controlo.

Para Gonçalo da Graça Pereira, da Associação Portuguesa de Terapia do Comportamento e Bem-Estar Animal, “a acumulação é uma forma de abuso animal, de crime” para a qual não existe solução à vista.”Apesar de estas pessoas precisarem de acompanhamento psiquiátrico, estão a infligir sofrimento nos animais. É da nossa responsabilidade garantir que eles não passam por isso.”

O veterinário explicou ao Observador que existem “acumuladores de cães e de gatos”, e que são raros os casos em que a acumulação engloba vários tipos de animais. Até porque, quem tem muitos cães, geralmente não tem muitos gatos. A acumulação de cães é sempre mais fácil de detetar por causa do barulho. De acordo com Gonçalo da Graça Pereira, estas situações são mais comuns em zonas rurais, onde por norma as pessoas têm mais espaço.

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No caso dos gatos, porém, a situação é mais complicada. Estes animais, mais pequenos e silenciosos, são sempre mais fáceis de acomodar. “É mais fácil acumular 30 gatos num apartamento. Costumo dizer que o gato é tão subtil que pode passar anos em silêncio, a sofrer”, referiu o veterinário.

Para além disso, os acumuladores “não têm noção” do que estão a fazer. “A pessoa sente-se benemérita, pensa que está a salvar o mundo. Acredita que não há ninguém no mundo que trate melhor o cão ou o gato do que ela.” Mas não é bem assim. “Os animais estão a sofrer. As pessoas precisam de apoio psicológico, mas os animais também. Não podemos separar o corpo do cérebro.”

Porém, nestes casos, “a reabilitação pode ser muito complicada”. “Existem vários problemas de comportamento, e alguns animais tornam-se agressivos e praticam automutilação”. Isto faz com que, muitas vezes, os animais sejam novamente abandonados depois de resgatados. “Eles não aprenderam as regras sociais, as regras de convivência. Não aprenderam a viver em grupo. Costumo dizer que é como se fosse um Big Brother que, em vez de dez pessoas, tem 50”, referiu Gonçalo da Graça Pereira.

"Os animais estão a sofrer. As pessoas precisam de apoio psicológico, mas os animais também."
Gonçalo da Graça Pereira, veterinário

Contudo, para o veterinário “o pior é quando” quem “está à frente de supostas associações de animais” também é acumulador. “Há algumas associações que têm pessoas à frente que têm esta perturbação psiquiátrica. Quando existe espaço para 100 cães e estão lá 500, do ponto de vista do bem-estar, isso não é bem-estar animal! Tornam-se em associações acumuladoras de animais. Qual é o objetivo? É criar guetos? Onde os animais sobrevivem? É que eles não vivem, sobrevivem.”

Para Gonçalo da Graça Pereira, o ideal nestas situações é realizar um “trabalho bilateral”, de modo a garantir o bem-estar dos animais e da pessoa “que está a padecer desta doença”. Para o veterinário, é óbvio que retirar os animais não é suficiente. “A pessoa volta a ter problemas, volta a ter a casa cheia de cães e gatos. O acompanhamento psicológico devia ser obrigatório. É em algumas doenças, mas não nesta.”

Provedor recomendou, DGS ainda não respondeu

Em 2013, o Provedor de Justiça deu um primeiro passo na criação de um plano que permita lidar e gerir eventuais casos de SD. Em junho, Alfredo José de Sousa divulgou um documento no qual recomendava ao Diretor-Geral de Saúde a elaboração de um guia para ajudar as autoridades de saúde municipais a lidarem com casos de Síndrome de Diógenes. Após a receção da recomendação, a 7 de maio, Francisco George teve um prazo de 60 dias para comunicar a sua decisão ao Provedor.

Na altura, contactados pelo Diário de Notícias, os responsáveis da Direção-Geral de Saúde (DGS) confirmaram ter recebido a sugestão e salientaram que esta estava “em fase de apreciação”. Dois anos volvidos, o gabinete de Alfredo José de Sousa garante que o “guia não foi remetido ao Provedor de Justiça“.

Álvaro Andrade de Carvalho, diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental da DGS, esclareceu ao Observador que o “manual de procedimentos foi efetivamente um compromisso que assumimos com a Provedoria de Justiça e está a ser ultimado entre o Programa Nacional que dirijo e outra estrutura da DGS”. O “processo sofreu atraso por alterações na equipa da mesma estrutura”, acrescentou Álvaro Andrade de Carvalho.

Na base da recomendação de Alfredo José de Sousa estavam várias queixas remetidas “ao longo dos anos” contra os serviços municipais, por “vizinhos de pessoas que sofrem” de Síndrome de Diógenes. Estas, de acordo com a sugestão do Provedor, revelavam “não só alguma descoordenação entre as várias autoridades competentes”, mas também uma certa negligência “em torno do tratamento das questões”.

Apesar de existir um empenho por parte dos municípios na limpeza das habitações dos acumuladores, o Provedor de Justiça acrescentou que a colaboração das autoridades de saúde é, regra geral, “muito deficitária”, uma vez que os delegados de saúde “limitam-se a encaminhar as queixas para as câmaras municipais“.

“Com efeito, as autoridades de saúde questionam invariavelmente a existência de um risco efetivo para a saúde pública, limitando-se a classificar as situações como de mera insalubridade particular e a colaborar pontualmente, recusando uma interpretação adequada das competências que se lhe encontram legalmente atribuídas”, refere o documento divulgado pelo Provedor de Justiça.

Para além disso, os obstáculos colocados pelos próprios acumuladores, nomeadamente na obtenção de uma autorização para entrada no domicílio, dificultam muitas vezes o trabalho das autoridades. “A garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio não é absoluta, pois pode ser levantada por autorização judicial”, não se subscrevendo à investigação criminal, frisou o Provedor. Porém, os tribunais, “pouco sensíveis a estas matérias”, nem sempre contribuem para diminuir os transtornos levantados contra os técnicos de saúde e outras autoridades municipais.

No mesmo documento, Alfredo José de Sousa salientou ainda que, apesar de o tema ter vindo “a merecer cada vez mais atenção nos planos europeu e internacional”, denota-se em Portugal “uma menor sensibilidade para a problemática, o que surge como principal fator impeditivo de uma conveniente identificação e gestão dos casos”.

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