“A senhoria não permite barulho”, “não têm internet em casa” nem “privacidade”, “os vizinhos estão em obras” ou “o trabalho é complexo”. São assim, variadas, as justificações que Célia Silva e Ana Costa, inspetoras do trabalho, ouvem sempre que encontram trabalhadores a exercer funções presencialmente, quando suspeitam que o poderiam estar a fazer em casa. Mas são analisadas caso a caso, antes de decidirem se configuram motivo para levantar ou não uma contraordenação.
“O papel do inspetor do trabalho é avaliar a situação concreta e decidir em conformidade. Não há uma baliza ou uma obrigatoriedade, mas, sempre em cumprimento da lei, se existir uma justificação plausível, e se estiverem reunidas todas as condições para o desempenho de funções daquele trabalhador naquele local, não há problema em admitir a sua presença, porque não há outra solução”.
A explicação é dada ao Observador por Célia Silva, depois de ter fiscalizado, com a colega Ana Costa, duas empresas — uma de recursos humanos, outra de comércio por grosso de equipamentos e assistência técnica — no concelho de Lisboa, onde o teletrabalho ainda é obrigatório. A lei prevê que o trabalhador possa recusá-lo se não tiver condições, mas tem de o fundamentar.
No caso das duas empresas que visitaram esta quarta-feira, as justificações foram consideradas válidas, e não foram encontrados problemas de maior. O mesmo não aconteceu em 160 outros casos. Esse foi o número de processos de contraordenação instaurados pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), desde o início do ano, nas visitas que visavam o teletrabalho obrigatório. O valor representa apenas 7% do total de contraordenações levantadas pela ACT, mas inclui mais do que o teletrabalho: também contém infrações com o desfasamento dos horários e com as medidas de prevenção da pandemia.
Além destas, foram detetadas pela ACT 1.279 “situações irregulares” (que por serem mais leves, não implicam multa) nas 1.400 empresas visitadas. Segundo o Ministério do Trabalho, que tutela a ACT, as principais irregularidades “relacionam-se com obrigações gerais do empregador em matérias de segurança e saúde no trabalho, exposição a agentes biológicos e o teletrabalho obrigatório“.
Esta semana (de terça a sexta-feira), a ACT reforçou as inspeções nos concelhos de risco elevado ou muito elevado. Só o centro local de Lisboa Oriental, do qual fazem parte Célia e Ana, num total de 40 inspetores, espera fazer, pelo menos, 120 fiscalizações. A escolha das empresas é aleatória, mas tem em conta a dimensão — estão a optar pelas médias e grandes para “abranger um maior número de trabalhadores” — e o setor — para chegarem àqueles em que, à partida, “o teletrabalho é possível”.
Seria de esperar que isso acontecesse na empresa de recursos humanos que visitaram na manhã desta quarta-feira e que emprega 500 trabalhadores. O espaço é partilhado com outras duas empresas, de menor dimensão. Ao todo, estavam no edifício 20 trabalhadores, “todos distribuídos por cinco andares”. Que motivos alegaram? Se alguns têm de se deslocar “pontualmente” ao local de trabalho para “prestar assistência técnica” ou porque são “chefias” (tendo uma declaração que “fundamenta essa necessidade”), outros dizem que não têm condições em casa para trabalhar longe da empresa.
“Alguns partilham residências e, por esse motivo especial, não tinham tinham condições particulares para estar em teletrabalho“, explica Célia. Ou porque não se sentiam “confortáveis” a ter reuniões em casa devido ao nível de confidencialidade dos dados que são tratados, ou não tinham sequer internet disponível ou não lhes era permitido “fazer barulho”.
“São razões que excedem o padrão normal. Tendo condições para estar a trabalhar ali, neste caso, nós automaticamente consideramos como justificação, não há infração em matéria de teletrabalho”, afirma a inspetora. Ainda assim, os fundamentos apresentados serão analisados pela ACT na fase posterior da inspeção — aquela em que são analisados todos os elementos e, se for o caso, instauradas contraordenações. Nas instalações, os funcionários “cumpriam o distanciamento social, havia acrílicos, tinham máscara, a limpeza é “diária”.
Na segunda empresa, a Tecnilab, também não foram identificados problemas de maior. De um total de 60 trabalhadores que, em condições normais, estariam no escritório, agora estão 40 distribuídos em duas equipas – em espelho, com rotação semanal. “São aqueles que não temos hipótese de colocar na rua [alguns trabalhadores prestam serviço assistencial presencial fora do escritório] ou que, por algum motivo, não podem trabalhar a partir de casa, quer por motivos pessoais, quer porque o trabalho em si é mais complexo”, aponta Carla Dias, diretora financeira da Tecnilab. Foi a única empresa visitada por Célia Silva e Ana Costa esta quarta-feira que permitiu a presença dos jornalistas, embora apenas numa parte da ação.
Uma em cada dez inspeções foram ao incumprimento do teletrabalho e horários
As inspeções da ACT ao teletrabalho são apenas uma parte do trabalho da ACT — das 15.900 visitas inspetivas realizadas pela autoridade desde o início do ano, apenas 10% (ou 1.646 vistorias) foram ao trabalho remoto e aos horários desfasados de entrada e de saída (que são obrigatórios em empresas com mais de 50 trabalhadores).
Segundo dados pedidos pelo Observador ao Ministério do Trabalho, que tutela a ACT, desde o início do ano foram feitas 1.646 inspeções relacionadas com o cumprimento do teletrabalho e os horários desfasados a mais de 1.400 empresas, abrangendo mais de 71.900 trabalhadores. Ao todo, foram detetadas 1.279 “situações irregulares”. Destas, a grande maioria (92,5%) foi regularizada.
Por serem casos mais graves, foram instaurados 160 processos contraordenacionais “com uma moldura sancionatória” entre um mínimo de 1,786 milhões de euros e um máximo de 5,7 milhões de euros. Representam 7% das contraordenações aplicadas pela ACT desde o início do ano — que foram 2.235, no total das ações inspetivas da autoridade. Mas, apesar de questionado pelo Observador, o governo ainda não revelou em quanto nem quais as empresas que foram multadas.
O valor das irregularidades, assim como o das contraordenações, pode incluir outras situações não diretamente relacionadas com teletrabalho, como medidas de prevenção contra a Covid-19, que foram detetadas aquando das inspeções ao trabalho remoto obrigatório. Aliás, nota Célia, o incumprimento do teletrabalho obrigatório nem tem sido o principal “problema” identificado nestas ações, mas antes as regras da pandemia nem sempre verificadas entre os trabalhadores que exercem funções presencialmente: como a falta de distanciamento ou do uso da máscara.
Há, por isso, uma parte do trabalho de “sensibilização”, nomeadamente das entradas e saídas. “Às vezes as pessoas saem para ir almoçar ou para ir fumar cigarro ou fazer pausa e é nesses momentos, em que estão fora dos locais de trabalho, que há maior risco de contágio“, afirma Célia Silva. Também há inspeções em que o foco é o teletrabalho, mas são verificadas outras situações graves, como a falta de seguros de saúde.
Com a pandemia, as visitas da ACT querem-se curtas — cada uma durou cerca de 30 minutos, entre entrevistas rápidas com um ou outro trabalhador e pedidos de esclarecimento a, pelo menos, um responsável da empresa. É também por isso que, em vez de analisados no local, muitos documentos são pedidos, por email, pelos inspetores da ACT para posterior análise. É costume solicitar-se o plano de contingência (obrigatório nas empresas), os fundamentos para quem está em trabalho presencial e os registos dos tempos de trabalho, para verificar se existem horários desfasados. Embora não tenha sido o caso das duas empresas visitadas esta quarta-feira — mas foi o de outras duas visitadas em maio pelo Observador, no Porto —, o que acontece quando são detetadas infrações (ou suspeitas de infrações)?
Caso o inspetor detete uma infração laboral, levanta um auto de notícia, que leva a uma coima, ou apenas um auto de advertência, se a situação for menos grave, para que a empresa regularize determinada situação. A empresa deve comprovar que fez essa regularização; senão, a ACT faz uma segunda visita de seguimento. A partir do momento em que a empresa é notificada da coima, pode pagá-la ou contestá-la. O valor da coima aumenta caso a empresa seja reincidente (ou seja, já tenha sido alvo de contraordenação pela mesma razão) e varia consoante o volume de negócio da empresa e a gravidade da infração.
Por exemplo, uma infração grave (como será o incumprimento do teletrabalho obrigatório sem fundamento válido), numa empresa com uma faturação de menos de 500 mil euros, começa nos 612 euros, subindo para os 2.040 euros se for muito grave (como o desrespeito pelo desfasamento de horários nas empresas onde é permitido trabalho presencial). Já numa empresa com um volume de negócio acima dos 10 milhões de euros, a coima inicia-se nos 1.530 euros nas infrações graves e, nas muitos graves, parte dos 9.180 euros e pode ir, no caso de dolo, a 61.200. “Em matéria de segurança e saúde no trabalho, a generalidade das contraordenações são muito graves“, refere.
Além do teletrabalho obrigatório, é fiscalizado o cumprimento das medidas de proteção, como uso da máscara, distanciamento social, higienização das mãos e das instalações, o desfasamento de horários, e analisado o plano de contingência. Na Tecnilab, que a ACT visitou já no início da hora de almoço, pelas 12h45, a copa tem uma lotação máxima de quatro pessoas (que estava a ser cumprida). Além da limpeza diária, mais profunda aos sábados, é feita a desinfeção do ar trimestralmente.
Célia Silva pergunta se a empresa tem o cuidado de sensibilizar os trabalhadores relativamente aos comportamentos nas saídas e entradas. “Ter temos, nem sempre corre bem, mas tentamos evitar que as pessoas se juntem no exterior, porque existe a questão de tomar cafézinho num grupinho de 2, 3 pessoas. Sensibilizamos para evitar este tipo de situações”, afiança a diretora financeira da Tecnilab.
Desde o início do ano de 2020 até 4 de maio 2021, chegaram à ACT cerca de 1.672 pedidos de informação sobre teletrabalho e 1.067 denúncias e pedidos de intervenção .