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Texto publicado originalmente a 20 de março de 2018 e republicado a propósito da morte do fundador do CDS.)
“Isto que lhe vou dizer… Suponho que se for crime já prescreveu.” Segue-se um curto silêncio para aumentar o suspense do que vai revelar a seguir. Alfredo Barroso, sobrinho de Mário Soares, aceita o convite do Observador e recua 32 anos no tempo. O mesmo farão outras figuras conhecidas da política portuguesa.
Voltamos a 1986, ano das mais emblemáticas eleições que Portugal já viu e as únicas que elegeram um Presidente numa segunda volta. O confronto final é entre dois fundadores da democracia portuguesa: Mário Soares e Freitas do Amaral. Esquerda contra direita. Ganhará o primeiro por uma unha negra.
Três décadas depois, essa ida às urnas serviu de inspiração para Nuno Markl escrever a série “1986”, que é transmitida na RTP às terças-feiras à noite. Esta terça vai para o ar o segundo episódio. E é a propósito desta série que viajamos no tempo.
Nuno Markl. “O Soares e o Freitas eram os Beatles e os Stones”
A paulada da Marinha Grande
Voltemos então ao crime (se é que o foi, de facto) e que terá acontecido a 14 de janeiro de 1986, na Marinha Grande. A pergunta no ar era qual teria sido o momento de viragem que tornou possível Mário Soares ser o primeiro civil a ser eleito Presidente da República depois de um começo tão negro — tinha apenas 8% das intenções de voto.
O incidente, que ficou conhecido como a paulada da Marinha Grande, momento em que o candidato foi agredido por contra-manifestantes, vem à memória de Alfredo Barroso, hoje com 73 anos.
[Veja no vídeo os momentos decisivos das presidenciais de 1986]
“Houve o fator Marinha Grande, que foi um impulso extraordinário à campanha. Ainda me lembro… Estava no meu gabinete — eu vivia lá, até lá dormi algumas noites — e liga-me, da Marinha Grande, o Nuno Teixeira, um grande realizador de televisão. E ele diz-me: ‘Alfredo, passou-se uma coisa terrível, tentaram bater no dr. Mário Soares. E eu estou aqui com um problema. Tenho a possibilidade de pedir a um colega da RTP que me empreste a cassete e eu próprio faço uma cópia enquanto ele vai beber uma bica para não ver.’”
Alfredo Barroso, que era chefe de gabinete e braço direito de Soares, não hesitou: “Mande-me isso o mais depressa possível, mande por estafeta se for preciso, que a gente mete isso a abrir o próximo tempo de antena. E assim foi. Não sei quem foi o rapaz da RTP que lhe passou a matriz, e que pode ter incorrido em crime, mas lá chegaram as imagens. E três horas depois, o tempo da viagem de Leiria a Lisboa, tinha as imagens comigo e fui levá-las ao António-Pedro Vasconcelos. E entraram no tempo de antena.”
Com a distância do tempo, ninguém duvida da importância que as imagens da agressão à porta da Fábrica Escola dos Irmãos Stephens, que o candidato ia visitar, tiveram na viragem da campanha.
O incidente deu-se ainda antes da primeira ida às urnas, a 26 janeiro, altura em que ficaram fora da corrida Salgado Zenha (tinha a bênção de Ramalho Eanes) e a independente Maria de Lurdes Pintasilgo. Ângelo Veloso, candidato do PCP, viria a desistir três dias antes do escrutínio.
Soares acusou então os seus agressores de serem apoiantes do candidato do PRD, já que vira autocolantes de Zenha nos seus casacos apesar de a Marinha Grande ser um bastião comunista, que à entrada tinha um cartaz a dizer “Moscovo”.
O futuro Presidente descreveu o episódio da seguinte forma: “Eu ia-lhes a dizer para terem calma, para não se confrontarem com situações de violência e, de repente, deram-me um murro na cara, que me desequilibrou. Depois, veio um jovem pelas minhas costas e deu-me um murro na cabeça, de cima para baixo, com bastante força. Depois ainda apanhei uma paulada, que é o que me dói mais.”
Ao lado de Soares estavam dois homens: o comissário Paulo da PSP, que estaria com o socialista até aos últimos dias da sua vida, e António Carneiro Jacinto, o seu diretor de caravana que nesse dia ficou com a cabeça partida.
“Eu andava sempre na estrada, o meu carro andava à frente do do candidato, era eu que fazia as paragens, depois ia ter com ele ao carro para conversarmos. Não havia telemóveis, as comunicações naquela altura eram diferentes”, relembra o antigo jornalista. Por ter esse papel, sabia bem ao que ia quando partiram da Nazaré para a Marinha Grande.
“Eu não queria que aquilo tivesse acontecido. Fui avisado, penso que ainda na Nazaré, onde tínhamos tido um banho de multidão, pela diretora da campanha de Leiria que me alertou que ia haver tourada. Portanto, falei com o dr. Mário Soares e dei-lhe a minha opinião, achava que era melhor não irmos. Claro que ele disse imediatamente: ‘Vamos embora!’”
E foram. Carneiro Jacinto acabou sujo de sangue, com a cabeça partida, a fazer curativos às feridas dentro da fábrica que iam visitar. O candidato, lembra, queixava-se das costas. Do lado de fora, o som dos operários desempregados e com salários em atraso era assustador.
“Muita gente diz que foi ali que ele ganhou as eleições. Não tenho uma opinião definitiva, mas a partir dali muita coisa mudou. O dr. Soares tinha uma coragem física brutal e não havia quem o segurasse. Mas a história mais importante daquilo tudo era sairmos de lá todos vivos e com a cassete de imagem da RTP.”
Saíram todos juntos, vivos e com as imagens, e com a jornalista e o operador de câmara da RTP dentro do carro do próprio Mário Soares. “Nós sabíamos que era fundamental sair dali com as imagens a salvo, aquilo era uma situação completamente insólita para os padrões de comportamento dos portugueses. Era importante verem o que se tinha passado. Ainda foi notícia do telejornal desse dia, mas as imagens só foram para o ar mais tarde”, recorda Carneiro Jacinto.
Antes de a comitiva se deitar nessa noite, no Hotel Turismo da Figueira da Foz, onde apareceram Maria Barroso e a filha Isabel preocupadas com Mário Soares, houve ainda uma paragem em Pombal. “Foi uma loucura. Quando chegámos lá, era a multidão total na rua para ver os agredidos. Era a curiosidade mórbida dos portugueses a funcionar. E foi aí que notei que qualquer coisa tinha mudado, muito embora a vitória em Pombal acabasse por ser do dr. Freitas do Amaral.”
Nem duas semanas depois, os portugueses iam às urnas para as terceiras eleições presidenciais depois do 25 de Abril, a primeira disputada entre candidatos civis.
A esquerda estava dividida entre vários candidatos. Para além de Soares, que tinha evidentemente apoio do PS, estavam na corrida a ex-primeira-ministra Maria de Lurdes Pintasilgo, que tinha a ajuda da UDP, e Francisco Salgado Zenha que contava com o PRD, partido do antigo Presidente da República general Ramalho Eanes, e depois com o PCP, após a desistência de Ângelo Veloso. Na segunda volta, o candidato do PS viria a colher os votos do PCP. De todos os votos da esquerda, esses seriam os mais difíceis de conseguir.
Mas sobre esse sapo falaremos mais adiante.
Em contrapartida, a direita portuguesa estava unida: CDS e PSD estavam com Diogo Freitas do Amaral.
Mário Soares começou mal. As primeiras projeções davam-lhe 8% da intenção de voto. Mas no final da primeira volta, e depois da Marinha Grande, quem saiu da corrida com valores próximos dos 8% foi Pintasilgo. Zenha ficou nos 20%. E para a segunda volta só sobraram dois candidatos: Freitas do Amaral, com 46%, e Soares com 25%.
“Na fase de pré-campanha, houve um momento muito íntimo e familiar”, lembra Alfredo Barroso. “O partido organizou mal a ida a Oeiras e ele veio de lá desesperado, porque não havia ninguém. Depois foi a Santarém e foi a mesma coisa. E a minha tia ligou-me e pediu-me para ir falar com ele, que estava muito abatido. Eu fui e ele disse-me: ‘Isto está perdido, mas tenho de fazer isto até ao fim.’ ‘Mas quem é que lhe disse que o senhor não vai ganhar?’, disse-lhe eu, com ar de parvo. Naquela altura, ele tinha 8%.”
O próprio Mário Soares, convencido de que a derrota era mais certa que a vitória, afirmaria em público: “Em democracia alguém tem de perder. Se eu perder, apenas perco umas eleições, não deixo por isso de ser quem sou.”
Carneiro Jacinto tem memórias semelhantes às do sobrinho do candidato. “Na primeira volta, a esquerda estava muito dividida. Havia cartazes na rua a dizer ‘Soares, rua’ ou ‘Soares vendido’. Na pré-campanha tínhamos comícios com 100 pessoas. Lembro-me de um que me chocou especialmente no Pavilhão dos Olivais, em Coimbra — que é uma terra mais ou menos de socialistas — e não estava ninguém. Nós tínhamos 8% e a única pessoa que acreditava firmemente que conseguiríamos lá chegar, era eu.”
Depois da conversa com Alfredo Barroso, no dia seguinte Soares aparece na sede de campanha renovado. “Vinha com um bonito sobretudo de pele de camelo, todo perfumado, bem disposto e pronto para o combate. Isto para ver a capacidade que ele tinha de auto-regeneração”, lembra Barroso.
Mas por muito que fizessem, foi só no pós-Marinha Grande que os eleitores começaram a olhar de forma diferente para o candidato. Até lá, o seu passado recente falava contra si. Pouco importava se tinha sido opositor do Estado Novo ou lutado pela democracia. Tinha sido, até ao final de 1985, primeiro-ministro de um Bloco Central que terminou em crise, fora o chefe de governo responsável por chamar o FMI e a cara da austeridade que se vivia: havia uma redução generalizada dos rendimentos das famílias, as falências sucediam-se e os salários em atraso atingiam mais de 100 mil trabalhadores. E havia as bandeiras negras. Muitas manifestações com bandeiras negras por todo o país.
O próprio Soares diria mais tarde: “Até à Marinha Grande, as pessoas iam para aquilo sem nenhuma energia, iam cumprir um dever como quem vai para um funeral”.
A corrida às figuras populares
Bem diferente desse ambiente de cortejo fúnebre de que falava Soares eram os comícios dos candidatos já em plena segunda volta. A música era diferente de tudo o que se ouvira em campanhas anteriores e os tempos de antena estavam pejados de figuras que os portugueses reconheciam. Era a corrida às celebridades.
“Confesso que me roí de inveja quando vi o Rui Veloso a alinhar na campanha oposta”, lembra o advogado Daniel Proença de Carvalho, então diretor político da campanha de Freitas do Amaral e hoje presidente do Conselho de Administração da Global Media. O “Rock da Liberdade” do músico portuense tornou-se o hino de Soares. “Ainda por cima gostava muito do Rui e éramos amigos. Mas nós também tínhamos um hino fantástico que o Thilo Krasmann orquestrou de várias formas, umas mais heróicas outras mais populares.”
“Tentei que fosse a Amália a cantar o nosso hino. Passei uma noite inteira em casa do João Braga, eu e ele a tentar convencê-la. Ela gostou imenso daquilo que ouviu e eu saí dali com alguma ilusão de que ela ia mesmo cantar o nosso hino. Mas depois não aconteceu. Mas tivemos o Eusébio. Naquela altura andávamos todos à procura de símbolos e de gente valente.”
Se Proença de Carvalho não gostou de perder Rui Veloso, Alfredo Barroso gostava de ter tido Eusébio. “O Eusébio, coitadinho, pensou que era o Freitas que ia ganhar e passou-se para o lado dele”, diz a rir. Mas lembra que conseguiu o “Rock da Liberdade” de Rui Veloso sem ter feito qualquer esforço. “Uma noite, estava eu no meu gabinete no Saldanha e aparece lá o Rui Veloso para falar comigo. E ele diz-me: ‘Ó Alfredo, estive ontem em minha casa a trautear umas coisas e fiz uma maquete. Quer ouvir?’ ‘Quero, quero’, disse eu, e a maquete era uma maravilha. Era o ‘Rock da Liberdade’. ‘Fico já com isto’, disse-lhe eu. ‘Eu ofereço-lhe’, disse o Rui, ‘tem é de fazer a letra’. Bom, eu a letra não fiz mas pedi a um tipo que tinha muito jeito que era o António-Pedro Vasconcelos e metemos a música nos tempos de antena.”
A ideia das figuras públicas, confessa Alfredo Barroso, não foi sua. A Internacional Socialista tinha um alemão, muito bom em campanhas, que ajudava os vários partidos membros a organizar-se.
Era Harry Walter, do Partido Democrático Liberal: “Ele não tinha muito tempo, mas fez uma paragem no hotel Le Méridien, ao pé do Parque Eduardo VII, para um pequeno-almoço. Fui eu mais o António-Pedro Vasconcelos e no fim de nos ouvir, ele disse: ‘O Mário Soares tem tantas amizades e tão importantes no mundo dos espetáculos que vocês têm de fazer valer isso. Porque é que não fazem cartazes?’ ‘Bela ideia’, pensámos nós, e arranjámos a fadista Hermínia Silva, o Carlos Lopes, que tinha ganho no ano anterior a maratona olímpica, o pianista Adriano Jordão e fizemos os cartazes. O Mário Soares nem precisava de aparecer. O efeito foi extraordinário.”
Os cartazes onde apareciam os apoiantes, e onde se via apenas a sua cara, uma frase e o emblema da campanha eram muito maiores em dimensão do que quaisquer outros usados até então e aproximavam-se do tamanho dos outdoors de hoje. Tudo isso eram novidades que a campanha trazia e que fizeram escola.
“Nós estávamos na nossa melhor forma política na altura — eu, o António Barreto, o Vasco Pulido Valente, o António-Pedro Vasconcelos — tínhamos muita experiência e apreendíamos as coisas com muita facilidade. O nosso grupo tinha muita experiência, mas do outro lado também tinham uma bela equipa com o Daniel Proença de Carvalho e o José Ribeiro e Castro.”
Ribeiro e Castro, que seria depois líder do CDS, era diretor executivo da campanha de Freitas e lembra também o trabalho de João Braga e de Maria Elisa Domingues, que conseguiram que muitas figuras conhecidas aderissem à campanha.
“O trabalho dos dois resultou muito bem. E depois eu lembrei-me de uma coisa que já tinha feito para o CDS que era ir buscar temas populares do folclore português e fazer letras adaptadas ao candidato. Tínhamos a ‘Tia Anica do Loulé’, ‘Tenho uma Carta Escrita’, ‘O Passarinho’… Foi um grande sucesso nos carros de som e introduziu uma nota de alegria e de novidade.”
Entre o “tapem-lhe a cara” e a capa de jornal em branco
Já na segunda volta, no primeiro domingo de fevereiro e na quinta-feira seguinte, duas coisas extraordinárias aconteceram, na perspetiva dos apoiantes de Mário Soares. A 2 de fevereiro, o Partido Comunista engolia o célebre sapo e emendava uma resolução de um anterior congresso onde excluía a hipótese de apoiar o socialista. No seu XI Congresso, Álvaro Cunhal lançava a frase que fez história: “Se for preciso, tapem-lhe a cara com uma mão e votem com a outra”.
O líder do partido avisava assim os militantes que teriam de “engolir um sapo”, mas alertava que Soares, o homem do Bloco Central e do FMI, era o menor de dois males. Muito mais do que votar em Soares, os militantes comunistas encaravam aquela cruz — a metafórica e a do boletim — como um voto contra a “direita fascista”.
“A segunda volta ia ser muito difícil”, confessa Ribeiro e Castro. “Eu sempre fui muito pessimista, porque nós não tínhamos mais por onde crescer. O dr. Freitas do Amaral tinha feito o pleno — à direita do centro e à direita da esquerda — na primeira volta. Ora, todos os outros candidatos eram de esquerda, portanto a transferência de votos far-se-ia obviamente para o candidato de esquerda que sobrevivesse. O risco de perder era muito elevado.”
Apesar do apelo de Cunhal, Freitas do Amaral continuava a ter comícios cheios e as suas declarações de então não levavam a crer que tivesse consciência de que a derrota podia estar iminente: “Em mim ninguém votará de olhos fechados. Os objetivos das próximas eleições são: consolidar a democracia, criar estabilidade e recriar confiança”.
Ribeiro e Castro tinha outro entendimento. O então diretor executivo da campanha lembra-se perfeitamente do que disse há 32 anos a um diplomata que lhe pedia previsões: “‘Ou ganhamos folgados ou perdemos por uma unha negra’, disse eu. E ele pergunta-me por que motivo. ‘Tudo depende do voto do PCP’, respondi. E dependia. Ou a campanha do voto útil do PCP funcionava e nós perdíamos por uma unha negra ou não funcionava e ganhávamos folgados”.
E assim aconteceu. Os militantes do PCP votaram em Soares, que também angariou os votos de Salgado Zenha e de Pintasilgo. Alfredo Barroso, tal como Ribeiro e Castro, sabia que os votos dos comunistas eram essenciais. Mas foi uma declaração de Proença de Carvalho que o fez crer que a vitória era possível. “Quando ele passou à segunda volta, o Daniel Proença de Carvalho teve uma tirada pouco perspicaz. Disse que o dr. Soares devia desistir, porque o professor Freitas ia à frente com 46% e ainda ia subir mais. E aí, percebi tudo. Estes tipos estão com medo de perder, porque o Cunhal mandou os militantes taparem a cara do meu tio no boletim de voto”, relembra Barroso.
Freitas do Amaral conseguiria crescer na segunda volta — um aumento de 250 mil votos que Ribeiro e Castro confessa não saber de onde veio — mas os seus 48,8% não foram suficientes para os três milhões de votos (51%) de Mário Soares.
Quanto ao sapo que o PCP engoliu, foi bem aproveitado pela campanha de Soares. Abriu o tempo de antena com a imagem de uma vendedeira do PCP, numa estação de barcos, como conta Alfredo Barroso. “E ela dizia assim: ‘Ai… eu agora vou ter de votar no Soares. Mas tomo um copo de bicarbonato, tapo-lhe a cara e voto nele.‘ Estas coisas não valia a pena esconder. Acabavam por funcionar muito bem, como aconteceu com a agressão da Marinha Grande.”
Ainda a direita se recompunha do congresso do PCP — sabiam que a abstenção deste eleitorado funcionaria a seu favor — e é transmitido o frente-a-frente televisivo entre Soares e Freitas.
[Veja aqui um excerto do debate entre Mário Soares e Freitas do Amaral na primeira volta, moderado por Miguel Sousa Tavares]
https://youtu.be/vYaVaBZ-6Fg
Eram 21h15 quando os candidatos se sentaram com os jornalistas e moderadores Margarida Marante e Miguel Sousa Tavares nos estúdios da RTP, no Lumiar. “O clima era tenso, bicas a rodos, cinzeiros improvisados a abarrotar por todos os cantos e o ar quente irrespirável”, escrevia o Expresso naquela data.
Uma hora e meia depois, Soares despede-se de Freitas: “Então ‘bonne chance‘, senhor doutor”. A resposta do adversário foi um sorriso mudo.
Ao contrário do que tinha acontecido nos debates da primeira volta, este último frente-a-frente poderia ter sido recusado por Freitas, que não o fez. Entre os fiéis da sua campanha, havia duas escolas de pensamento: os que estavam a favor e os que estavam contra a ida à televisão. Mas todos sabiam que Soares o atacaria com todo o tipo de fantasmas do tempo do fascismo. O conselho era de que não se defendesse, mas que tentasse desconversar. Naquele momento, como em muitos outros, o candidato não ouviu a sua equipa. E o desfecho não lhe foi favorável.
“Sabe… Eu tenho uma quota parte da responsabilidade e tenho pena disso. À distância sei que foi um erro ter aceitado aquele frente-a-frente. O Freitas do Amaral estava com 46%, o Mário Soares estava a 20 pontos de distância. A partir do debate, ele empatou o jogo. Demos de borla 20 pontos ao adversário. E eu estive do lado que tomou a decisão errada”, conta Ribeiro e Castro.
Também o diretor político da campanha, Proença de Carvalho, concorda. “Foi um momento crucial para definir os resultados da segunda volta.”
Alfredo Barroso acha que a campanha de Soares ganhou na televisão, mas lembra um outro fator curioso. “Na segunda volta, o semanário Expresso fez as mesmas perguntas aos dois candidatos e incompreensivelmente — mas ainda bem — o Freitas não respondeu. E nós respondemos. Isto foi importantíssimo. Está a ver o que foi? A primeira página do Expresso a dizer de um lado Mário Soares, do outro Freitas. De um lado, Soares a responder a todas, e do lado do Freitas tudo em branco, só as perguntas. Estas pequenas coisas acabaram por ter uma relevância que as pessoas nem imaginam.”
Para Barroso, um outro dado foi essencial: a intervenção de Maria Barroso, mulher do socialista, na campanha. “A intervenção da minha tia foi fundamental, foi um prolongamento da campanha. Eles nunca andavam juntos, porque foi decidido que seria um desperdício fazê-lo.”
[“Viajei por toda e qualquer estrada”. Memórias e frases de Freitas do Amaral]
As valentes sestas depois de almoço e um carro espampanante
“Se há coisa que aprendi naquelas eleições, é que para ganhar é preciso estar à frente na área metropolitana de Lisboa, na do Porto e no distrito de Braga”, conta Carneiro Jacinto, o diretor da caravana de Soares. “E foi por aí que nós andámos na segunda volta.”
Com o voto do PCP no bolso e a sensação de ter ganho o frente-a-frente, a luta fazia-se agora mais do que nunca na rua. Os candidatos da direita e da esquerda apostavam forte nas caravanas, nos comícios, no contacto direto com os eleitores.
“A candidatura do dr. Freitas implementou-se mais facilmente no terreno e na sociedade do que propriamente na superestrutura política. Ali, gerava muitas desconfianças, quer a nível do PSD quer a nível do CDS. Os partidos não gostavam de partilhar espaços de liderança”, afirma Ribeiro e Castro.
Na rua, tudo era diferente. “Era a manifestação espontânea das pessoas. Não havia Twitter, nem Facebook, e as pessoas apareciam do nada. A expectativa e a esperança era muito grande. Era a primeira vez que, num combate corpo a corpo, a direita tinha uma hipótese de ganhar com maioria do voto popular. Nunca tinha acontecido. E o povo de direita foi ganhando entusiasmo.”
A mobilização de rua era, diz, fora de série e foi a penúltima campanha de grandes comícios. A última foi a de Cavaco Silva, a da maioria absoluta de 1987. “As pessoas pareciam nascentes que vinham do chão. Tenho essa memória do início da segunda volta. Queríamos despertar as pessoas e fizemos o arranque com um desfile na Avenida da Liberdade. O Freitas ia num autocarro aberto, chegamos ao Marquês e havia pessoas a sair das ruas, das bocas de metro, parecia um formigueiro. A Avenida encheu-se. Não havia telemóveis, Whatsapp. Como é que as pessoas apareciam era um bocadinho misterioso. As notícias saíam nos jornais e as pessoas respondiam.”
Para além dos comícios, as caravanas eram fundamentais para passar a palavra e para ter alguma proximidade com os eleitores. “Era a forma de as pessoas dizerem: ‘Ele esteve cá, eu dei-lhe um abraço’”, relembra Ribeiro e Castro, que também se recorda de serem jornadas muito cansativas.
Nas caravanas de Soares o cansaço era combatido com sestas. “As viagens tinham uma coisa óptima”, lembra Carneiro Jacinto, que hoje trabalha na Santa Casa da Misericórdia. “A seguir ao almoço havia sempre uma paragem na estrada e o dr. Soares dormia. Chegávamos a estar 40 carros parados na estrada à espera que ele acordasse. Ele, quando encostava, adormecia imediatamente e dava-me ordem para acordá-lo exatamente 30 minutos depois.”
O candidato acordava fresco, como se tivesse dormido duas horas, conta. Noutras alturas, dormia no automóvel, seis horas de seguida se a viagem fosse prolongada.
“Mas era um desgaste físico brutal”, argumenta Carneiro Jacinto, que anos mais tarde trabalhou com Freitas do Amaral no Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Eu e o dr. Freitas conversávamos muito sobre aqueles tempos e ele contou-me os muitos problemas físicos que teve durante a campanha. Eu era jovem e aquilo era uma coisa que dava cabo de nós.”
Para além das viagens em automóveis muito menos confortáveis do que os atuais, havia também o contacto com o povo, que, por vezes, deixava mazelas. “Era o empurrão, o beijo, as palmadas. As palmadas nas costas eram uma coisa brutal, era o que eu mais pedia aos seguranças para tentarem evitar.”
Pelo meio, era preciso alimentar os candidatos. Ribeiro e Castro conta que eram sempre coisas rápidas e a correr, Carneiro Jacinto tem outras memórias. “O almoço era sempre arroz à valenciana, menos para o dr. Mário Soares. Ele só comia bifes com batatas fritas e ovo a cavalo. E aquilo era um sarilho, porque às vezes o secretariado esquecia-se de avisar o restaurante e lá tinha eu de ir arranjar um bife. O dr. Soares deve ter comido para aí uns 70 bifes ou mais”, recorda entre risos.
A ideia das caravanas foi obra do PSD, muito usada antes das presidenciais, nos tempos da AD. Havia então a caravana de líderes da Aliança Democrática onde seguiam Freitas, Francisco Sá Carneiro e Gonçalo Ribeiro Telles. Depois das presidenciais, o PS continuaria a usá-las para as Presidências Abertas.
Na campanha, os automóveis do PS eram alugados, recorda Alfredo Barroso. “Também havia o automóvel do partido, um Volvo, que tinha sido oferecido ao meu tio pelo Olof Palme. E havia os carros particulares, o Renault 17 do dr. Soares que agora está numa montra na Casa Museu João Soares, em Leiria.”
Já os motoristas eram os desempregados da UGT. “Foi uma exigência do António Janeiro, um grande sindicalista, que nos disse que em vez de contratarmos os nosso amigos, tínhamos de ir buscar os tipos da UGT que estavam desempregados, que ainda por cima eram nossos apoiantes, e foi isso que se fez.”
Dos dias passados em caravanas, houve um momento decisivo para a vitória do seu candidato, conta Carneiro Jacinto. “Eu disse isto ao dr. Freitas quando trabalhei com ele. Eles cometeram um erro lamentável e que para nós foi ótimo. Na terça-feira de Carnaval, em vésperas da eleição, decidiram não fazer campanha porque os portugueses iam brincar ao Carnaval. Nós montámos uma caravana que começou na Figueira da Foz e foi por ali acima — Ovar, Espinho, tudo o que tinha Carnaval nós estávamos lá. O dr. Soares ia num Pink Cadillac aberto, que era de um imigrante que apareceu lá no meio, e desaguámos num comício no Porto, nos Aliados, que dizem que foi o maior comício de sempre em Portugal com 120 mil pessoas. Ali percebemos que a música era outra. Eu senti isso. Parecia que estava tudo na rua. De noite ou de dia as pessoas estavam na rua.”
Para a frente, prá frente ou p’ra frente e outras coisas fixes
“Para a frente, para a frente Portugal”, cantavam os freitistas. O slogan da candidatura de Freitas do Amaral estava por toda a parte, nos cartazes, nos autocolantes e, claro, no álbum em vinil “O Povo Canta Freitas do Amaral” onde se ouviam cantigas populares com letras adaptadas ao momento eleitoral. Mas de onde veio aquela frase?
“Julgo que a ideia foi minha e achámos que era de facto um slogan apropriado para aquele momento. Vínhamos de uma crise muito grave, tínhamos muito desemprego, desesperança, havia salários em atraso e até tínhamos um surto de terrorismo”, recorda Proença de Carvalho. “Era um slogan que tinha a ver com um renascimento e uma certa dose de patriotismo, que achávamos ser necessário incutir nas pessoas, e também de otimismo, ter uma ideia de futuro.”
Ribeiro e Castro lembra-se bem daquele momento em que nasceu o slogan da campanha. “Foi um brainstorming, logo nos primeiros dias de pré-campanha, penso que já na sede em Santa Catarina. Houve várias ideias — zás, pás, trás e bum! — o Proença de Carvalho arrematou essa. Depois houve muitas variações e parecia a discussão do acordo ortográfico. Como é que se vai escrever o prá? É ‘para’, ‘p’ra’, ‘p’rá’, ‘pra’, ‘prá’? Tem apóstrofo? Tem acento? Foi uma grande discussão e acabamos por simplificar a grafia. Ficou ‘prá’.”
O slogan acabou por marcar o tom da campanha, recorda Ribeiro e Castro entre risos. “O Freitas tinha um discurso, e nós já não o podíamos ouvir, que era assim: ‘Portanto, portugueses, eu não sou para a esquerda nem para a direita. Eu quero é ir em frente Portugal.’”
Aquilo, diz, era muito dele. “O Freitas do Amaral da campanha presidencial é o melhor Freitas que eu alguma vez vi. Ele vestiu por inteiro aquele fato e estava verdadeiramente feliz — e como é difícil uma pessoa estar verdadeiramente feliz. Ele tinha passado por momentos difíceis, a morte do Adelino Amaro da Costa. E eu encontrei-o mais decidido, mais ágil do que quando tinha ao seu lado o seu amigo de sempre. Ele, que é uma pessoa reservada, transfigurou-se e foi um tempo magnífico.”
Também como uma pele assentava-lhe o sobretudo verde seco, o seu famoso casaco loden que depois se multiplicava por todos os seus apoiantes. “Isso não fomos nós. Era a sua imagem de marca e a partir do outono ele começou a aparecer muito com o loden vestido e aquilo caía-lhe como uma segunda pele. E as pessoas passaram a andar com os seus loden. Isso não foi pensado. Esse mimetismo acontece quando a pessoa tem uma liderança muito forte e as pessoas começam a copiar, a falar como elas, a imitar os gestos.”
O que foi pensado foram os palhinhas, os chapéus que se assemelhavam aos típicos usados na ilha da Madeira. “Um dia apareceu um tipo com aquilo, a forma era de plástico, e eu achei que era uma coisa diferenciadora. Levavam uma fita com o ‘Prá Frente, Portugal’ e aquilo teve um resultado muito engraçado e era uma coisa completamente diferente.”
Se na campanha de Freitas Portugal ia para a frente, na de Soares o sol risonho dizia aos eleitores que aquele candidato é que era fixe. Alfredo Barroso recorda como aconteceu: “O ‘Soares é fixe’ é uma coisa extraordinária. Juntámos numa mesa o grupo do costume mais a Maria Filomena Mónica e a Clara Ferreira Alves e já íamos numa lista brutal de slogans. Não eram maus, mas nenhum deles era assim uma coisa louca. Às tantas entra um miúdo da campanha, que era da Juventude Centrista. Explicámos-lhe o que estávamos a fazer e perguntamos-lhe se teria alguma ideia. E o rapaz do CDS diz isto: ‘Ora essa, Soares é fixe.’”
E assim ficou o slogan que o próprio Ribeiro e Castro considera ter sido muito bem conseguido, tendo até o condão de atenuar um “radicalismo excessivo” que surgiu na campanha do adversário. Aliás, considera que a mudança de tom da primeira para a segunda volta foi fundamental para os resultados conseguidos por Soares.
“Na segunda volta o tom foi de grande dureza, de uma brutalidade excessiva. Veio tudo: a Guerra do Ultramar, o Campo de São Nicolau, as bombas no Vietname. Tudo o que são os fantasmas de esquerda inundaram os tempos de antena de Mário Soares contra Freitas do Amaral. Como se diz no futebol, foi a carne toda no assador. E isso foi o António-Pedro Vasconcelos, ele precisava de fazer isso para arrastar o voto da esquerda contra o candidato da direita. A ideia era: ‘Gente de esquerda, mobilizemos-nos contra o fascista.’”
Daí o deputado do CDS achar que o slogan foi muito feliz: “Era um sol com um smile. A nossa imagem era fortíssima, mas esta ideia do fixe não era menos feliz e atenuava este radicalismo excessivo que apareceu nalguma estética da campanha”.
Alfredo Barroso acusa os adversários do mesmo: “O Freitas não era radical e foi posto a fazer uma campanha radical de direita”.
Proença de Carvalho recusa completamente essa ideia. “Todos os dias me entravam tipos na sede de campanha a dizer que devíamos falar da bandeira que o Soares tinha pisado em Londres e eu dizia que nunca acreditei nisso. Foi uma campanha muito bipolarizada e nós não queríamos, de maneira nenhuma, ficar identificados com a extrema-direita. Claro que havia gente colada e queriam que fossemos muito agressivos contra o Soares e nós resistíamos a isso. Queríamos uma campanha que se dirigisse também às pessoas do centro esquerda e à classe trabalhadora. Havia muito essa dinâmica também na primeira campanha do Soares, mas depois foi o contrário.”
Corria o boato de que no início dos anos 1970, durante uma visita de Marcelo Caetano a Londres, Mário Soares teria pisado uma bandeira portuguesa numa manifestação. Sobre o assunto, diria anos mais tarde: “Um patriota e um republicano, como eu sou e sempre fui, nunca iria pisar a bandeira da República, que nunca foi a bandeira do salazarismo”.
O voto do povo e o candidato sem gravata
Chegados à segunda volta, os elementos do núcleo duro da campanha de Mário Soares decidem que não irão gastar mais dinheiro em cartazes e promoção. A primeira volta já custara aos cofres da campanha 24.600 contos (que hoje equivalem a cerca de 400 mil euros) e para a segunda volta ainda teriam de desembolsar mais 11.900 contos (aproximadamente 200 mil euros, considerando a inflação).
Mesmo assim, sobrar-lhes-iam fundos que seriam usados para criar a Fundação Mário Soares. Os gastos de Freitas do Amaral, segundo os dados da Comissão Nacional de Eleições, andariam taco a taco com os da campanha da esquerda.
Com mais ou menos dinheiro, os soaristas fizeram um único cartaz. Nele, o candidato socialista aparecia sem gravata. O slogan era “O Voto do Povo”. “Isso é Vasco Pulido Valente, o seu a seu dono”, conta Alfredo Barroso, referindo-se ao novo slogan. “Como tínhamos decidido que só íamos fazer um cartaz também tínhamos de aproveitar uma fotografia. Aquela imagem dele sem gravata já tinha sido usada para o postal de boas festas do candidato, porque a campanha passou pelo Natal. Na imagem original está ele com a minha tia, a Maria Barroso, mas cortando-a ao meio, ficava só ele e continuava a ser muito bonita.”
Na fotografia — da autoria de Alfredo Cunha e Luís Vasconcelos (pai da artista plástica Joana Vasconcelos) —, Soares aparece propositadamente sem gravata. Freitas do Amaral tinha um ar muito formal e à esquerda interessava explorar uma imagem diferente, mais próxima da classe trabalhadora, e que ganhava especial importância na sequência do congresso e do apoio comunista.
Apesar disso, o estilo de Freitas, sempre com o seu loden verde, também era apreciado, como escrevia o vespertino A Capital na altura, reproduzindo o diálogo de duas jovens: “Que bom deve ser ter um marido como o Freitas. Ele deve fazer feliz uma mulher.”
Nada disso travava Alfredo Barroso e a entourage de Soares. “O dr. Soares ficava muito melhor do que o dr. Freitas no género informal. E aquelas fotografias eram magníficas, foram tiradas numa sessão em Nafarros e na Praia Grande onde estava a família Soares inteira, a minha tia, o João, a Isabel e os netos que já existiam e que estão ainda hoje nos álbuns de família”, conta Barroso. “O Vasco era um tipo com uma grande perspicácia e disse logo que tinha de ser o voto do povo por causa do PCP e nós achámos óptimo e o candidato também. Tinha de ser um cartaz simples e foi.”
Antes da segunda volta, e como escreveria, em 1991, Vasco Pulido Valente numa crónica, o discurso era de centro. “De acordo com a lunática lógica do candidato e dos seus amigos, a esquerda votaria em Pintasilgo, a direita votaria Freitas e o ‘centro’ votaria Soares. Não ocorreu a ninguém que o ‘centro’ talvez não existisse ou não excedesse os 8 a 10 por cento das sondagens. (…) Os comunistas, claro, não contavam. Por conseguinte, ele precisava do eleitorado do ‘centro’.”
Antes das presidenciais, o Partido Socialista tinha sofrido a sua maior derrota de sempre numas legislativas. Em outubro de 1985, enquanto Cavaco Silva saía triunfante da sua primeira vitória eleitoral, o PS era esmagado e reduzido a 20%, em boa parte graças ao novo partido de esquerda de Ramalho Eanes, o PRD. Soares incompatibilizara-se com o então Presidente da República depois de este dissolver o Parlamento. O fim do Bloco Central seria a consequência imediata.
Por tudo isto, de 26 de janeiro para a frente era preciso mudar o tom. Para a campanha da segunda volta, era necessário congregar a esquerda. Toda a esquerda sem exceção. “O Voto do Povo” poderia ter o condão de fazê-lo mas nem todos os apoiantes de Soares acreditavam nisso. Houve mesmo quem achasse que aquela frase era uma péssima ideia, recorda Barroso. “Nessa mesma noite em que o cartaz saiu apareceu um tipo no meu gabinete — não me importo nada de dizer o nome, era o Joaquim Aguiar — que tinha a mania que sabia tudo e mais alguma coisa. E disse-me que aquilo era um disparate, que era a derrota do Mário Soares.” “O que é o voto do povo? É a esquerda?”, perguntaria ao chefe de gabinete do candidato. “Claro que é a esquerda. Ele precisa de ter todos os votos da esquerda para poder ganhar, se não tiver não ganha”, atira-lhe Barroso, para logo de seguida ouvir a resposta.“‘Mas o povo não é também de direita?’, diz-me ele. E eu respondo: ‘Claro que é, mas nós queremos que o povo, de direita ou de esquerda, vote nele e mais nada.’ E ainda lhe digo que o cartaz está feito, a ser colado, e que se o dr. Soares perder ele que volte para reclamar. Nessa altura — disse eu — pode enfiar-me uma faca e até escarafunchar. Mas se ganharmos, tem de ficar caladinho como um rato.”
A vitória que não era para ser e os votos da Galiza
“Quem deu a notícia ao dr. Soares que ele ia ganhar fui eu”, lembra Carneiro Jacinto. “Foi por telefone, eu tinha tido acesso às sondagens e liguei-lhe para lhe dizer. E ele respondeu: ‘Porreiro. Mas vamos aguardar, espero pelos resultados finais para ver.’”
Mário Soares não estava confiante e chegou mesmo a escrever o discurso da derrota. Mas o fim da noite daria razão ao mensageiro da vitória. Mário Soares seria eleito por mais de três milhões de votos, convencendo 51% do eleitorado. Freitas não passaria dos 48%, apesar de conseguir mais dois pontos percentuais de votos do que na primeira volta. A mobilização — que já fora alta a 26 de janeiro — sobe na segunda volta. No dia 16 de fevereiro foram às urnas mais de sete milhões e meio de portugueses, uma adesão de 77,99%.
“Sempre pensei que a abstenção subiria na segunda volta, porque há sempre eleitorado não representado. Mas não. Baixou de forma relevante e durante o dia, quando os números começaram a cair, pensei logo que estava perdido. Significava que tinha havido uma bipolarização muito aguda e isso só poderia funcionar contra nós. Se eles arrastassem os votos do PC, perdíamos. A esquerda tinha convocado os reservistas todos”, lembra Ribeiro e Castro.
Apesar de a contagem ter sido mais rápida do que na primeira volta, só depois da meia-noite é que chegaram os resultados finais. A profecia de Ribeiro e Castro confirmava-se e Freitas do Amaral perdia por uma unha negra.
“Havia um colaborador espanhol, galego, que ia sempre dizendo que íamos ganhar. Os resultados iam chegando e ele não acreditava. Às tantas, já gozávamos. Dizíamos que ele estava à espera dos votos da Galiza. Foi o último a render-se. Estar à frente na primeira volta é muito importante, mas é preciso que haja campo para crescer na segunda.”
E foi assim que Mário Soares se tornou o Presidente de todos os portugueses, a frase usada no seu discurso de vitória que viria a entrar para o léxico dos políticos nacionais, e que naquela altura era essencial para acalmar os ânimos depois de uma tão grande bipolarização entre esquerda e direita.
“Isto mudou muito” — diz Proença de Carvalho — “ainda havia muita carga ideológica, mas hoje as ideologias perderam o sentido. Já nada entusiasma muito. Foi muito importante que tivessem sido derrotados os candidatos mais conotados com a extrema-esquerda e passado à segunda volta os dois candidatos que tinham muito em comum: a pertença ao Ocidente, à NATO, à Europa…”
Para Ribeiro e Castro, outra grande diferença é que eram “campanhas de longo curso”. “Não eram uma coisa em cima da hora. Era uma candidatura com pensamento, com estratégia, com visão. E isto acontece num tempo de grande perturbação do PSD que só tem paralelo com o que acontece hoje. O PSD estava a bater no fundo e a candidatura de Freitas vai preencher naturalmente um vazio referencial à direita.”
Para o centrista, aquela era também a primeira grande eleição em que democraticamente se defrontam os dois campos, a esquerda e a direita, “cada um deles liderado por grandes figuras da democracia portuguesa”. Era por isso normal que a bipolarização acontecesse e também por isso, defende, se tornou num momento estruturante da democracia portuguesa.
Se para Alfredo Barroso estas eleições são o ato político de que mais se orgulha de ter participado, para Carneiro Jacinto são um momento irrepetível da democracia portuguesa. “Estavam em listas adversárias os fundadores da democracia portuguesa, cada um na sua área. E era a primeira vez que os civis iam à luta. Veja o que seria hoje arranjar um Mário Soares, um Freitas do Amaral, uma Maria de Lurdes Pintasilgo, um Salgado Zenha. Não há. Nem que dê 40 voltas consegue arranjar outros quatro assim. Não há dois, quanto mais quatro daquele nível.”