José Sócrates e Armando Vara não formaram apenas parceria no Governo de António Guterres. A ligação é mais antiga e mais próxima. Os dois tiveram uma empresa em conjunto, licenciaram-se na mesma universidade, têm amigos em comum e o percurso de ambos cruzou-se em muitos momentos da história. Agora estão os dois novamente no mesmo barco, embrulhados na Operação Marquês, que levou o ex-primeiro-ministro ao Estabelecimento Prisional de Évora e o ex-ministro a ser interrogado pelo Ministério Público por “factos suscetíveis de integrarem os crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais”. O Observador recorda-lhe algumas das mais importantes histórias entre estes dois homens.
A primeira associação no papel
A relação entre os dois foi pessoal e de confiança, antes de serem os dois membros do mesmo Governo. A assinatura em conjunto num mesmo assunto já vinha de 1990, quando se associaram para a criação de uma empresa, depois de se terem tornado amigos no Parlamento na década de 80 (Vara entrou em 1985 e Sócrates em 1987). Armando Vara e José Sócrates eram dois dos sócios da Sovenco – Sociedade de Venda de Combustíveis, Lda, com sede na Reboleira, na Amadora. Curiosidade: o escritório para a sede da empresa foi cedido por um empresário, agora bem conhecido dos portugueses, José Guilherme, o homem que terá dado uma prenda de milhões a Ricardo Salgado.
Na Sovenco, Sócrates entrou com 150 contos e Vara também. Mais tarde aumentaram a participação para 400 contos. O ex-primeiro-ministro diria mais tarde que tinha entrado no capital dessa empresa a pedido do amigo e foi também por ideia de Vara que ambos saíram da empresa meses depois. Contou Sócrates que a desvinculação aconteceu porque Vara deixou de ter confiança nos restantes sócios da Sovenco – também esses dois sócios viriam mais tarde ficar a braços com casos na justiça, mas sem qualquer relação com esta empresa.
Os dois encontram-se mais tarde no Governo de António Guterres, primeiro como secretários de Estado (Sócrates no Ambiente, Vara na Administração Interna) e depois como ministros. Sócrates, que transitou para ministro-Adjunto, passou para o Ambiente no segundo Governo, e Vara ficou com o lugar do amigo (1999). Depois passou a ministro do Desporto, mas estaria pouco tempo no cargo. Logo no virar do século haveria de sair, acusado pela oposição de usufruir de dinheiro do Estado. O caso, que morreu sem qualquer acusação, conta-se assim: Amando Vara criou a Fundação para a Prevenção e Segurança Rodoviária, que tinha como missão o combate à sinistralidade rodoviária. A oposição acusou o então ministro – que tinha sido secretário de Estado da Administração Interna no mandato anterior durante o qual criou a Fundação – de duplicar o trabalho do Estado através da Fundação e com isso usufruir de dinheiro público. Conclusão política? Vara saiu do Governo e a Fundação foi extinta.
Esta Fundação tinha sido criada para fazer cumprir os objetivos do MAI. E, ao contrário do que a lei obrigava, não dispunha de qualquer património. Uma das fontes de receita eram os valores transferidos pelo próprio ministério para campanhas de prevenção rodoviária. O Tribunal de Contas ainda fez uma auditoria à Fundação, houve comissões parlamentares sobre o tema e a investigação terminou arquivada em 2005, com a justificação do Ministério Público de que não tinha sido cometida qualquer irregularidade.
Vara não seria o único nome a aparecer ligado à Fundação e a sofrer as consequências políticas do caso. Luís Patrão, que ocuparia a secretaria de Estado depois de Vara sair, também saiu do Executivo de Guterres pela mesma razão. Passados quase 15 anos, o atual secretário nacional do PS diz ao Observador que este foi “um caso político”. “Nunca saiu qualquer sanção desse processo. Foi um processo político. Depois disso, feitas as averiguações, as autoridades chegaram ao fim com um zero absoluto em termos de sanções”, conta.
Patrão foi chefe de gabinete de António Guterres e depois secretário de Estado da Administração Interna, cargo que Vara tinha ocupado no primeiro Governo de Guterres, antes de subir a braço direito do primeiro-ministro, enquanto ministro-Adjunto. A relação com Vara não era apenas profissional, era também de amizade e mantém-se: “É meu amigo”, diz ao Observador sem querer referir mais sobre a atual situação dos dois ex-governantes. Enquanto secretário-nacional do PS, alinha na mesma bitola de António Costa e refere que neste caso deve ser deixado à justiça o que é da justiça. A ligação entre os dois é ainda importante por uma razão: Vara e Patrão não fizeram apenas parte do círculo próximo de António Guterres mas também do de José Sócrates.
As ligações à licenciatura e ao professor António Morais
Na relação entre estes dois homens, aparece mais um elemento-chave de algumas polémicas e casos na justiça: António José Morais, professor da Independente. Enquanto secretário de Estado da Administração Interna (entre 1995 e 1999, primeiro secretário de Estado da AI e depois como secretário de Estado adjunto do MAI), Vara contratou António José Morais para o Gabinete de Estudos. Mais tarde, Vara contaria que conheceu Morais numa reunião do PS no Altis tendo depois disso sugerido o seu nome quando precisou de quem ocupasse o lugar vago. Mas a relação com este homem ainda daria muitas voltas.
José Sócrates e António Morais conheciam-se da Covilhã, cruzaram-se já enquanto Sócrates tutelava o Ambiente por causa da construção do aterro da Cova da Beira – que também deu origem a vários processos judiciais -, mas também na Universidade Independente quando Morais foi professor de quatro das cinco cadeiras que deram o canudo ao ex-primeiro-ministro.
Anos mais tarde, em 2003, Armando Vara acabaria por se licenciar em Relações Internacionais na mesma Universidade. A licenciatura chegou nos tempos livres entre a saída do Governo de António Guterres e a vida de banqueiro pela mão de Sócrates em 2005.
A relação entre Vara e Morais conheceria outro episódio polémico. De acordo com notícias do Público, Armando Vara recorreu ao diretor-geral do GEPI (Gabinete de Estudos e Planeamento de Instalações do MAI) e a engenheiros que dele dependiam para projetar a moradia que construiu perto de Montemor-o-Novo. Na equipa, que planeou a casa do então governante, também trabalhou a arquiteta Ana Simões, na altura companheira de António José Morais. Curiosamente os mesmos dois nomes que acabariam por ser arguidos no caso Cova da Beira. Entretanto foram ambos absolvidos.
O caminho entre José Sócrates e Armando Vara voltaria a cruzar-se já com Sócrates como primeiro-ministro. Se houve nomeações polémicas, a de Vara para a Caixa Geral de Depósitos foi uma delas. O recém-licenciado em Relações Internacionais, que nos anos 80 chegou a trabalhar como administrativo da dependência da caixa Geral de Depósitos em Mogadouro, é nomeado para a administração da Caixa cinco meses de pois de Sócrates tomar posse como primeiro-ministro. O currículo de Vara foi questionado nos meios políticos e a oposição acusou o Governo de estar a fazer um favor a um amigo.
Face Oculta
Obra dos “pistoleiros do costume” foi assim que José Sócrates classificou a tentativa de o envolverem no caso Face Oculta. O ex-primeiro-ministro falava ainda como comentador na RTP, antes de ser ele próprio detido e posteriormente preso no âmbito do Operação Marquês, sobre a decisão do Tribunal de Aveiro de condenar todos os 36 arguidos do processo, entre eles Armando Vara, sujeito a cinco anos de prisão efetiva.
Rewind. O nome de José Sócrates aparece neste processo, que investigava a alegada rede de influências para favorecimento em concursos públicos do sucateiro Manuel Godinho, mas não como arguido, nem como testemunha. Aparece por causa da relação com Armando Vara. Na investigação à rede tentacular de influências do sucateiro, foram registadas escutas entre o então primeiro-ministro e Armando Vara sobre o caso.
A história destas conversas seria mais um caso com implicações ao longo dos anos e em vários processos. Na investigação constavam gravações de cinco conversas e 26 mensagens escritas trocadas entre José Sócrates e Armando Vara.
“Estas escutas foram obtidas de forma ilegal”, referiu o ex-primeiro-ministro da última vez que falou do caso, mas o argumento tinha sido repetido ao longo dos anos em que houve hesitação sobre o contributo das conversas para o caso. Depois de mandos e desmandos e de vários anos, as escutas acabariam por ser destruídas, por ser considerado pelo então procurador-geral da República que não tinham interesse para a investigação do caso. O mesmo entendimento teve o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha de Nascimento, que mais tarde disse em entrevista ao Expresso que se tratavam de “conversas pessoais”: “Havia umas conversas que eram ambíguas, em termos de linguagem, mas baixas em termos de nível indiciário. Não eram suspeitas”, disse.
A destruição das escutas foi posteriormente usada pelos arguidos do processo para pedirem a nulidade do caso. Contudo, a decisão em primeira instância foi a de condenar todos os arguidos, entre eles Vara. O Tribunal de Aveiro deu como provado o tráfico e influência consubstanciado num pagamento de 25 mil euros de Godinho a Vara. Para o juiz ficou provado um “pacto criminoso” e provaram ainda que “houve vários contactos, entre Manuel Godinho, Armando Vara e Lopes Barreira em conjunto ou isoladamente para concretizar esses objetivos estabelecidos”, ou seja, o favorecimento da empresa do sucateiro em diversos concursos públicos.
A reação de Armando Vara foi a de surpresa: “Estou em choque”, disse aos jornalistas à saída do julgamento, onde foi condenado a cinco anos de prisão efetiva. No entanto, como recorreu, a pena não está a ser aplicada. “Estou em choque, confesso. E a sensação que me fica é que a sentença não é sobre as acusações, não é sobre o que estava em causa. Eu acho que tem muito a ver com a minha circunstância”, disse sem clarificar se as “circunstâncias” a que se referia se prendiam com o facto de ter sido ministro ou o seu relacionamento com José Sócrates.
É na troca de mensagens, que foi publicada na comunicação social, que se conhecem os planos de Sócrates para a compra da TVI. Segundo essas escutas, em junho de 2009, Armando Vara e o primeiro-ministro falam sobre “a possível aquisição de uma posição dominante no capital social da empresa detentora da TVI por parte de uma das empresas do grupo PT”. Uma das conversas acontece 11 dias antes de Sócrates garantir no Parlamento que desconhecia o negócio.
Vale de Lobo e Operação Marquês
Ambos fora da política ativa, viram os seus nomes cruzarem-se novamente num processo judicial. Desta vez, já com José Sócrates arguido e preso preventivamente e com Vara condenado em primeira instância por outro processo. As circunstâncias destes dois homens cruzaram-se no resort de luxo de Vale do Lobo e no processo Operação Marquês. Em causa estão suspeitas em relação ao envolvimento da Caixa Geral de Depósitos (CGD) no processo de financiamento do resort de Vale de Lobo, na altura em que Vara era administrador do banco e sugeriu este negócio e José Sócrates era primeiro-ministro.
A Procuradoria-Geral da República disse em comunicado que estavam em causa “factos suscetíveis de integrarem os crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais”. E acrescentou ainda que a detenção para interrogatório foi feita “na sequência das investigações em curso no âmbito da designada ‘Operação Marquês'” a partir do qual “foi emitido um mandado de detenção fora de flagrante delito” a Armando Vara.
O caso de Vale do Lobo é apenas um dos tentáculos da Operação Marquês, que levou à detenção de vários arguidos, entre eles José Sócrates e o amigo Carlos Santos Silva, mas neste momento é o caso central em que se concentram as investigações. Em resumo, o resort de luxo no Algarve foi comprado, em 2006, através de um empréstimo da Caixa Geral de Depósitos, sendo que o banco do Estado acabou por participar também na operação através de participação acionista e financiamento.
Em comum, Sócrates e Vara têm ainda uma condecoração atribuída pelo ex-Presidente da República, Jorge Sampaio, por causa da organização do Euro 2004: a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Mas, se algum deles vier a ser condenado por pena superior a três anos, também essa condecoração pode ser perdida.