Atento, minucioso e sempre acutilante, o juiz Ivo Rosa voltou a demonstrar um grande conhecimento dos autos da Operação Marquês ao longo do último dia do interrogatório de José Sócrates e bombardeou o ex-primeiro-ministro com perguntas muito específicas sobre os envelopes de dinheiro vivo que recebia da mãe desde os anos 90, sobre as férias pagas por Carlos Santos Silva e a forma como gastava dezenas de milhares de euros em viagens quando não tinha capitais próprios para isso.
José Sócrates, suspeito de crimes corrupção passiva de titular de cargo político (3), fraude fiscal qualificada (3), branqueamento de capitais (16) e falsificação de documento (9), respondeu que o ‘dinheiro vivo’ que recebia de Maria Adelaide Monteiro muito regularmente vinha de um cofre que a mãe tinha na sua casa (havia ainda um segundo cofre localizado nas instalações do BPI) e até confessou que já colocou esse mesmo cofre no seu próprio domicílio. E admitiu que, apesar das dificuldades financeiras que sempre disse ter, sempre que queria ir de férias, “fazia aquilo que os portugueses costumam fazer: pedia financiamento”. Ou à mãe ou a Carlos Santos Silva.
Foi também esta segunda-feira que José Sócrates ficou a saber pela voz do juiz Ivo Rosa que é crime usar a influência conquistada enquanto primeiro-ministro para favorecer empresas privadas — mesmo que essa influência só venha a ocorrer numa fase posterior à sua saída do Governo. Sócrates não sabia.
As quase nove horas de interrogatório também ficaram marcadas pela proibição do juiz Ivo Rosa da entrada de telemóveis e ipads dos procuradores e dos advogados na sala do tribunal, tendo uma funcionária judicial recolhido todos os aparelhos antes de começar a sessão. E pela participação que o mesmo magistrado fez ao Ministério Público para investigar os responsáveis pelas fugas de informação do interrogatório de Sócrates para a comunicação social.
Os cofres da mãe
As férias de luxo de José Sócrates foram um dos pratos fortes do interrogatório liderado por Ivo Rosa e levaram mesmo a uma espécie de confissão do ex-primeiro-ministro sobre a forma como financiava tais férias em algumas das cidades mais caras da Europa: graças à mãe e ao amigo Carlos Santos Silva.
Maria Adelaide Monteiro costumava dar ao seu filho nos anos 90 cerca de 10 mil euros dentro de um envelope sempre que Sócrates ia de férias para o estrangeiro. Tendo em conta, constatou o juiz Ivo Rosa, que a mãe de Sócrates não tinha grandes movimentos bancários nas épocas em que o filho partia de férias, de onde vinha o dinheiro?
“O dinheiro que a minha mãe me dava vinha do cofre”, explicou Sócrates. Havia dois cofres, um na casa de Maria Adelaide Monteiro, e outro alugado no BPI. Curiosamente, o cofre que estava na casa da mãe de Sócrates, foi herdado pelo filho e está agora na sua residência.
Sócrates afirmou que a mãe era uma pessoa de posses e tinha herdado uma herança de cerca de “1 milhão de contos” (cerca de 5 milhões de euros). Tendo em conta que numa sessão anterior, Sócrates terá afirmado que a herança da mãe valia cerca de “200 mil contos” (aproximadamente 1 milhão de euros) há aqui uma contradição.
De acordo com uma notícia do Público de dezembro de 2014, Maria Adelaide Monteiro herdou 12 apartamentos em Setúbal, Queluz, Cacém, Cascais e Covilhã, uma arrecadação em Setúbal, diversas partes de mais quatro imóveis em Queluz, Setúbal e Alijó e outras partes de terrenos rústicos em Setúbal e Barreiro.
A equipa de investigadores liderada pelo procurador Rosário Teixeira entende ter provas de que a herança de Maria Adelaide Monteiro, que sempre foi utilizada pelos apoiantes de Sócrates como justificação para o elevado nível de vida que o ex-líder socialista sempre levou, afinal já não valia grande coisa. Quando Sócrates foi detido em novembro de 2014, Maria Adelaide tinha apenas um rés-do-chão em Cascais, uma arrecadação em Setúbal e uma parte de um imóvel na sua aldeia de Trás-os-Montes.
Em 2011, Maria Adelaide vendeu dois imóveis no Cacém a Carlos Santos Silva por cerca de 175 mil euros e no ano seguinte alienou ao amigo do seu filho o apartamento que tinha no Heron Castillo por cerca de 600 mil euros. O Ministério Público considera estas vendas como simuladas, já que o objetivo das mesmas seria fazer circular os fundos com origem em Santos Silva para os fazer chegar a José Sócrates.
As férias pagas por Santos Silva e o que os portugueses costumam fazer
Entre férias em Veneza (duas vezes), Ibiza, Menorca, Creta, Málaga e Quinta do Lago (Algarve), Carlos Santos Silva gastou mais de 100 mil euros em hotéis e despesas variadas feitas por Sócrates entre 2008 e 2012.
As primeiras férias que constam dos autos da Operação Marquês referem-se a Menorca e a Veneza e terão custado a Carlos Santos Silva um total de cerca de 69 mil euros em dois períodos diferentes entre o verão de 2008 e janeiro de 2009. Entre outros exemplos, Santos Silva pagou ainda as férias de 2012 de Sócrates em Creta (32 mil euros) e Málaga (cerca de 8 mil euros) e ainda a segunda vez que visitou Veneza (cerca de 29 mil euros).
José Sócrates era primeiro-ministro nessa altura, estava no primeiro mandato em São Bento e ganhava cerca de cinco mil euros mensais. Ivo Rosa constatou isso mesmo e perguntou-lhe porque razão fazia férias tão dispendiosas em Menorca (terão custado cerca de 40 mil euros) e em Veneza. Sócrates foi desconcertante na resposta: fez o que os portugueses costumam fazer: pediu financiamento. Ou à mãe ou a Carlos Santos Silva. E muitas vezes em numerário.
Não foi especificado o valor total de fundos que foram transmitidos pela mãe, sendo que Ministério Público diz que Carlos Santos Silva lhe transmitiu em numerário cerca de 1,1 milhões de euros entre 2012 e 2015, fora as férias pagas.
Ivo Rosa quis saber quando é que Carlos Santos Silva começou a pagar-lhe as férias, emprestando-lhe os respetivos montantes, ao que José Sócrates respondeu que desde os anos 90 que o seu amigo lhe pagava os hotéis e as refeições.
O juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal apanhou ainda José Sócrates numa alegada contradição sobre o início dos empréstimos de Carlos Santos Silva. Na sessão de 6.ª feira, Sócrates tinha garantido que só começara a receber dinheiro do seu amigo em 2013 mas Ivo Rosa afirmou que os registos contidos nos autos indicam que a primeira transferência para José Sócrates foi efetuada no dia 15 de maio de 2012 a partir da conta de João Perna, o seu motorista que recebia fundos de Santos Silva com o objetivo de os fazer chegar ao ex-primeiro-ministro.
“Não li a acusação toda”. Assim, “as minhas respostas são mais genuínas”
Foi mais um momento insólito do interrogatório de José Sócrates na fase de instrução criminal da Operação Marquês. O ex-primeiro-ministro confessou ao juiz Ivo Rosa que não tinha lido a acusação na íntegra.
Isto é, Sócrates não terá lido todas as imputações que o Ministério Públio (MP) lhe faz — e que estão agora a ser escrutinadas no Tribunal Central de Instrução Criminal por requerimento do próprio Sócrates e dos restantes arguidos.
O juiz de instrução criminal não se ficou e, calmamente (como é seu timbre), deu-lhe um conselho: “Mas devia ter lido a acusação para se poder defender.”
Ao que José Sócrates retorquiu com mais uma resposta desconcertante: “Não li a acusação toda. Assim, as minhas respostas são mais genuínas.”
A casa de Paris e a secretária de 7.000 euros
José Sócrates negou uma vez mais que seja o verdadeiro dono do apartamento de Paris que foi comprado por Carlos Santos Silva. De acordo com o Ministério Público, os mais de 3 milhões de euros que custaram o imóvel pertencem a Sócrates — o que o ex-líder do PS também refuta.
Aliás, Sócrates e Santos Silva teriam assinado um contrato de arrendamento do apartamento de Paris que custaria cerca de 3.000 euros mensais mas o acordo nunca foi posto em prática. “O Carlos não deixou que eu pagasse”, explicou Sócrates .
Ivo Rosa questionou de forma intensa Sócrates sobre o tipo de despesas que tinha em França, tendo o ex-líder do PS explicado que a escola do filho mais velho que morava consigo custava por mês cerca de 2 mil e 500 euros.
Depois de ter sido confrontado na semana passada com um valor de 30 mil euros por mês gastos em Paris, o ex-líder do PS diz ter verificado as suas contas durante o fim-de-semana e assegurou que não gastou esses valores. “Foram só 22 mil euros”, enfatizou.
Na véspera da assinatura da escritura de compra e venda, José Sócrates confessou que comprou uma secretária que estava a “namorá-lo”— e que ainda hoje tem. Custo? 7.000 euros.
O crime que Sócrates pensava que não existia
Após ter perdido as eleições legislativas de 2011, o ex-primeiro-ministro português optou por uma atividade generalizada de facilitador de negócios na Argélia, Venezuela e Brasil, entre outros países, através dos contactos políticos angariados enquanto chefe do governo de Portugal.
Os negócios do Grupo Lena na Venezuela, Argélia e Angola beneficiaram de diversas démarches promovidas por José Sócrates para resolver problemas relacionados com adjudicações ou pagamentos de faturas. Do ponto de vista contratual, contudo, tal ligação comercial só era oficial com a farmacêutica suíça – contrato que cessou, por decisão unilateral da Octapharma, dois dias após a prisão de Sócrates.
José Sócrates responsabiliza Governo Passos Coelho pela captura da PT pelo GES
Ora, o juiz Ivo Rosa quis saber por que razão José Sócrates tinha aceitado falar com responsáveis políticos de diversos Estados para resolver problemas do Grupo Lena e, segundo Sócrates afirma, sem receber um cêntimo. O ex-primeiro-ministro afirmou que apenas estava a ajudar empresas portuguesas.
Ao que Ivo Rosa respondeu que essa prática poderia ser crime, se a influência utilizada tivesse sido conquistada através do exercício do cargo de primeiro-ministro. “Não sabia”, terá respondido José Sócrates.
Texto alterado às 13h05m