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Street racer que matou condutor a 204km/h queria evitar prisão. Juiz Carlos Alexandre rejeitou recurso e confirmou pena de 4 anos e meio

Decisão da primeira instância conhecida em outubro do ano passado determinou prisão efetiva. Defesa recorreu, alegando que pena era "excessiva" e "desproporcional". Relação confirmou pena.

O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou esta semana o recurso de um street racer que embateu contra outro carro na CRIL e foi condenado em primeira instância a uma pena de quatro anos e meio de prisão efetiva pelos crimes de homicídio por negligência grosseira de um homem de 27 anos, além de condução perigosa agravada e omissão de auxílio agravado. “​​Só uma pena de prisão efetiva é adequada à situação concreta, que é extremamente reprovável”, escreve o juiz Carlos Alexandre no acórdão de 6 de novembro, a que o Observador teve acesso.

O caso é paradigmático porque, ao contrário do que tem sido habitual em processos em que são julgadas mortes no contexto de street racing — corridas ilegais com carros de alta cilindrada em estradas públicas —, o autor do homicídio acabou condenado a uma pena de prisão efetiva. “Não podemos deixar de sublinhar a extrema gravidade, a todos os títulos, da conduta do arguido, a justificar as penas parcelares acima fixadas, pelo que, tendo em consideração a gravidade global dos factos praticados, o modo de atuação do arguido e a sua personalidade, entende-se ser justa e adequada a pena única”, justificava a decisão da primeira instância, de outubro do ano passado.

Pena “excessiva, desproporcional e desajustada”, argumentou defesa do autor do acidente

A defesa do condutor considerava, no entanto, que a pena de prisão efetiva era “excessiva, desproporcional e desajustada às finalidades da punição” pelos crimes de homicídio, condução perigosa e omissão de auxílio. E, por isso, avançou com um recurso.

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Um street racer matou Rodrigo a 204km/h. O tribunal não fez o que é habitual: condenou-o a quatro anos e meio de prisão efetiva

Na contestação à decisão do tribunal, o advogado que representa o street racer sustentava que, na altura da condenação, tinham passado já quase três anos sobre o acidente que provocou a morte de Rodrigo, um professor do ensino básico que regressava a casa depois de um jantar em família e de um encontro com um amigo. Rodrigo tinha saído de Campolide e conduzia em direção a Bucelas quando o seu carro foi abalroado por um condutor que circulava a 204km/h numa zona da CRIL em que a velocidade está limitada a 70km/h (os mais de 200km/h a que seguia o autor do acidente foram calculados pela investigação com base em imagens de videovigilância naquela zona de túneis).

“Os factos que integram a atividade delituosa foram praticados em 6 de março de 2021, tendo sobre essa data decorrido cerca de 2 anos e 8 meses (o que com o feito do presente recurso, irá passar os 3 anos), durante os quais o mesmo tem mantido uma boa conduta e tido como socialmente bem integrado, além de que o arrependimento demonstrado ao longo de todo o processo, mas também convictamente constatado pelo tribunal, são circunstâncias [que devem servir de] atenuante especial”, argumentava o advogado.

Em vez da condenação a quatro anos de prisão pelo crime de homicídio por negligência grosseira, a defesa considerava que a decisão só poderia ser “justa e adequada” se a pena de prisão não fosse além dos 2 anos e 6 meses, “um pouco superior a metade do máximo acima previsto, tendo em conta o elevado grau de ilicitude e a culpa que se apresentou bastante significativa e de se encontrar aquele socialmente integrado, mantendo uma boa conduta posterior à prática do crime”. Ou seja, defendia que o autor do homicídio não deveria cumprir pena de prisão efetiva.

Tribunal condenou a 4 anos e meio. Defesa queria, no máximo, 2 anos e 9 meses — sem prisão efetiva

Além de contestar a pena atribuída ao crime de homicídio, a defesa também considerava que a condenação a um ano de prisão pelo crime de omissão de auxílio agravado era “bastante elevada”.

As imagens de videovigilância, que também mostravam os minutos seguintes ao acidente, foram fundamentais para sustentar essa decisão do tribunal.

"Atendendo a todo o histórico do arguido, à data dos factos com 25 anos e com os sinais referidos nos autos, maxime na sentença que o condenou, melhor seria e que aqui se roga, ser aplicada ao arguido uma pena de prisão, seguindo o critério acima defendido, de 2 anos e 9 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo."
Recurso da defesa do autor do acidente ao despacho de condenação da 1.ª instância

Como o Observador escreveu em dezembro, depois do embate na faixa da direita do túnel, o Audi A3 — conduzido pelo autor do acidente — e o carro de Rodrigo ainda embatem na parede que separa os dois sentidos daquela estrada, do outro lado da via, antes de acabarem imobilizados mais de 100 metros à frente. Passam-se largos segundos sem que alguma coisa aconteça. Mas, quase um minuto depois, o autor do acidente toma uma decisão. “Às 23h40m03s, ou seja, cerca de 50 segundos após a colisão, o condutor arguido, ainda no interior do seu veículo, lança para o exterior, pela janela da porta do condutor, um objeto que posteriormente se veio a constatar ser a placa da matrícula do seu veículo”, refere o auto do visionamento das imagens de videovigilância feito pela PSP na sequência do acidente e a que o Observador também teve acesso na altura.

Pouco depois, o homem sai do carro, dá à volta pela traseira, passando para o lado do passageiro, e agacha-se. O tribunal deu como provadas as suspeitas de que, nesse momento, o autor do acidente estava a colocar a segunda placa de matrícula junto ao seu carro, para despistar as autoridades da corrida ilegal em que estava a participar quando provocou o acidente — é que tanto o autor do homicídio como o condutor de um segundo carro circulavam sem as respetivas matrículas.

O carro de Rodrigo estava mesmo ali ao lado, imobilizado a poucos metros de distância, sem que se visse qualquer movimento no seu interior. O condutor do Audi nunca se aproxima do Volkswagen. Volta a contornar o seu carro para o lado do condutor, pega na primeira matrícula, que tinha lançado pela janela, e coloca-a num local mais próximo da parte da frente.

Imagens do carro em que Rodrigo seguia dão conta da força do embate
O Volkswagen ficou totalmente destruído depois de ser abalroado pelo Audi que seguia a mais de 200km/h
Rodrigo seguia sozinho no carro na noite do acidente
Carro ficou compactado com força do impacto e traseira foi empurrada praticamente até ao lugar do condutor

Por fim, dirige-se ao separador central, pega no telemóvel e passa os minutos seguintes a falar com alguém. Em alguns momentos leva as mãos à cabeça. Noutros, faz sinal aos outros condutores que passam no local — poucos, uma vez que o país estava genericamente em regime de confinamento devido à pandemia da Covid-19.

Durante todo o tempo em que esteve ao telefone, nenhuma das chamadas que o condutor do Audi fez foram para o INEM, uma vez que não há qualquer contacto com o número de emergência que tenha partido do seu número. A equipa de emergência chegou minutos depois. Retiraram Rodrigo do interior do carro, mas o jovem professor já estava sem vida.

Apesar de toda essa sequência de acontecimentos, a defesa do autor do acidente contestou a pena aplicada pelo crime de omissão de auxílio. “O tempo passado sobre a data dos factos, em que o arguido tem mantido uma conduta a este nível irrepreensível, a que acresce a confissão integral e sem reservas, bem como o total arrependimento demonstrado, são circunstâncias” que, como também já tinha alegado para o crime de homicídio, devem servir de “atenuante especial”.

Neste caso, o advogado de defesa entendia que a condenação por este crime não deveria ir além dos oito meses de prisão. E justificava assim: “Não obstante o elevado grau de ilicitude e a culpa que se apresentou bastante significativa, as circunstâncias da pressão causada pelo evento e o curto tempo decorrido entre o violento embate e a chamada feita por terceiros para o socorro — 3 minutos e 51 segundos —, não nos dá por garantido que a postura do arguido face ao evento não viesse a ser outra.”

O autor do acidente só não contestava a condenação a uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor durante 2 anos e 6 meses, “porquanto desde a data dos factos que o trouxeram a juízo até à presente, o arguido nunca mais conduziu qualquer viatura”.

"Essa pessoa? Sim, essa pessoa manda-se, assim, para a prisão. E se o recorrente ainda não percebeu a gravidade dos seus atos, então mais um motivo nos dá, para que continuemos a pugnar pela prisão efetiva."
Posição da família de Rodrigo sobre o recurso apresentado pelo autor do acidente

A defesa considerava que a condenação, já com cúmulo jurídico pelos vários crimes dados como provados, deveria ser encurtada em um ano e nove meses — e nunca obrigar ao cumprimento de tempo na prisão. “Atendendo a todo o histórico do arguido, à data dos factos com 25 anos e com os sinais referidos nos autos, maxime na sentença que o condenou, melhor seria e que aqui se roga, ser aplicada ao arguido uma pena de prisão, seguindo o critério acima defendido, de 2 anos e 9 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo.”

Street racer “ainda não percebeu a gravidade dos seus atos”

Na resposta ao recurso apresentado pela defesa do autor do acidente, o Ministério Público defendeu que a pena aplicada era “totalmente compatível” com a gravidade dos crimes praticados e que enviava uma mensagem para fora de que o street racing é uma atividade condenável aos olhos da Justiça.

A família da vítima de 28 anos constitui-se assistente no processo. No recurso, o advogado do autor do crime tinha deixado plasmada uma passagem quase em jeito de indignação: “Manda-se assim uma pessoa para a prisão?”

4 fotos

A representante da mãe de Rodrigo foi direta a esse ponto. “A resposta é sim, manda-se sim. Uma pessoa que se encontrava a realizar uma corrida ilegal de carros, em via pública, que conduzia a 204,48 km/h numa via cujo limite máximo era de 70 km/h? Uma pessoa que, por consequência dessa atitude leviana e temerária, matou outra pessoa e que depois do embate demonstra uma total indiferença perante a vida da vítima? Uma pessoa em que a sua única e patética preocupação foi sair do veículo e encenar uma suposta queda das chapas de matrícula, que não estavam devidamente apostas?”, começava por enumerar.

“Essa pessoa? Sim, essa pessoa manda-se, assim, para a prisão. E se o recorrente ainda não percebeu a gravidade dos seus atos, então mais um motivo nos dá, para que continuemos a pugnar pela prisão efetiva”, atirava.

A família de Rodrigido critica “a postura de uma total indiferença perante a vítima”. E defende a ideia de que, se a pena de prisão efetiva viesse a ser substituída por uma pena suspensa, “o sentimento da comunidade de reprovação social do crime seria seriamente posto em causa”.

Carlos Alexandre decide prisão: “É indispensável”

O Tribunal da Relação rejeitou, em toda a linha, a argumentação do autor do acidente que provocou a morte a Rodrigo. No despacho da decisão, o juiz Carlos Alexandre — que assina o despacho juntamente com os desembargadores Cristina Almeida e Sousa e João Bártolo — enfatiza “a culpa particularmente acentuada com que agiu em qualquer um dos ilícitos cometidos, sendo que, no que tange ao crime de homicídio, apesar de se tratar de uma negligência consciente, é reveladora de uma atitude particularmente censurável de leviandade e de indiferença perante o comando jurídico-legal (e que, aliás, justificou o seu enquadramento como grosseira, muito próxima do dolo eventual)”.

Toda a fundamentação da Relação de Lisboa é, aliás, bastante crítica da atitude do autor do homicídio, não apenas após o embate que vitimou Rodrigo mas, também, no que diz respeito à decisão de ter decidido praticar street racing em estradas públicas e de o ter efeito sob efeito de álcool.

Foi o juiz Carlos Alexandre quem apreciou o recurso

JOÃO RELVAS/LUSA

Os juízes começam por considerar que “não se revela desadequada a pena única de 5 anos e 10 meses de prisão aplicada pela 1.ª instância”, que, depois do cúmulo jurídico, resultou na pena de prisão efetiva de 4 anos e meio. “A conduta do arguido é fortemente censurável” e os seus comportamentos são considerados, também pela Relação, “extremamente reprováveis”.

Na leitura de Carlos Alexandre e dos outros dois magistrados, o autor do acidente demonstrou “uma consciência aguda da ilicitude e do perigo social que se dispôs a causar (ao fazer de uma via de circulação rodoviária uma autêntica pista de corrida de automóveis)” e considera “particularmente impressiva a indiferença revelada sobre a ‘sorte’ da pessoa que tinha acabado de abalroar violentamente”.

Os magistrados dizem ainda que o condutor agiu com “leviandade” e “indiferença” perante as consequências do acidente. “Como se alcança nas imagens disponíveis nos autos, após o embate, nunca foi verificar o estado da vítima, nem procurou tratar do seu socorro, andou a ‘tratar’ das matrículas que, de pretérito, não estavam afixadas na viatura para evitar a sua referenciação pelas autoridades no contexto da corrida e, entreteve-se a falar ao telemóvel, junto ao seu carro, sendo que este só se imobilizou a 130m do local aonde o carro conduzido pela infeliz vítima foi embatido pela sua retaguarda.”

“Só uma pena de prisão efetiva, pela prática de ambos os crimes, é adequada à situação concreta, que é, como já se disse, extremamente reprovável”, insiste Carlos Alexandre. Aliás, conclui o juiz, optar — como pretendia a defesa do street racer — por uma pena de prisão suspensa (ou seja, que lhe permitisse não cumprir qualquer tempo atrás das grades) “seria transmitir uma perigosa mensagem de benevolência, com claros prejuízos para a prevenção geral” de que aquele comportamento comporta sérios riscos para a segurança pública. “A efetiva execução da pena de prisão, num caso como o dos autos, mostra-se indispensável.”

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