Chama-se SUA-Saúde e é o Sistema Universal de Acesso à Saúde proposto pela Iniciativa Liberal para alterar um sistema atual que “está em colapso” e que “já não serve os portugueses que sentem e sofrem, todos os dias, os impactos dos graves problemas que afetam o SNS”.
O documento com a proposta de lei de bases da saúde — a que o Observador teve acesso — pode sofrer alterações após ter sido apresentado e discutido no Conselho Nacional da IL, mas deve ver a luz do dia em breve, até porque Rui Rocha avançou no arranque da mais importante reunião entre convenções que a proposta será entregue nas próximas semanas na Assembleia da República.
A apresentação à porta fechada não deixou dúvidas sobre a relevância dada pelo partido ao tema, desde logo pela escolha de João Cotrim Figueiredo, ex-presidente da IL, para a dar a cara pelo novo modelo liberal para a saúde, ao lado da deputada Joana Cordeiro, responsável pela pasta no Parlamento. Um trunfo chamado à primeira linha do combate político que o partido quer travar em prol da saúde — e que sabe que será difícil, da esquerda aos privados.
“Este sistema é de facto universal, ninguém pode ser excluído, nenhum subsistema pode recusar as pessoas por nenhuma razão. E, ao contrário do sistema atual, este permite que as pessoas tenham mesmo acesso à saúde”, assegura João Cotrim Figueiredo ao Observador, reconhecendo até que a IL não está preocupada que a proposta saia um pouco mais cara aos bolsos do Estado se isso se refletir na prestação de bons serviços de saúde para os portugueses.
Subsistemas, o centro da solução liberal
O sistema pensado pela IL não apaga o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e opta por integrá-lo num modelo que inclui subsistemas e prestadores dos setores privado, social e cooperativo — uma das grandes lutas políticas do partido. Mas o que são e para que servem os subsistemas do modelo criado pela IL?
Os subsistemas de saúde que os liberais ambicionam têm a missão de assegurar a “prestação da generalidade dos cuidados de saúde”, onde só há lugar a uma “intervenção pública apenas quando os subsistemas não suprem uma determinada necessidade”. Esses mesmos subsistemas podem ser de “natureza pública, privada, social ou cooperativa” e asseguram os serviços através de uma “rede de prestadores” com quem são firmados contratos ou convenções. Apesar de não haver limites neste esboço de projeto-lei ao qual o Observador teve acesso, os liberais consideram que um subsistema público e três privados seria o ideal.
A rede de prestadores de cada subsistema só será aceite caso assegure uma “cobertura territorial e clínica adequada, nos diversos níveis e tipologias de cuidados” de saúde. Por outras palavras, para que um subsistema de saúde seja considerado pelo regulador, além de assegurar uma cobertura nacional, tem de incluir “pelo menos as patologias e terapias que o atual SNS cobre”, confirmou Cotrim Figueiredo.
Nesta proposta, o SNS (“que poderá assentar na ADSE e na sua experiência adquirida na gestão da rede de prestadores) representa “o conjunto dos prestadores públicos”, devendo manter-se como “prestador estatal de cuidados de saúde, de administração central, garantindo o serviço público, mas assegurando equidade, coesão nacional e saúde a todos os cidadãos e utentes”. Já o mercado de prestadores, que integra privados, sociais e cooperativos, deverá ser “livre, aberto e concorrencial”.
A escolha pessoal, o preço de cada ato médico e as “coberturas adicionais”
A escolha do subsistema de saúde é pessoal: “Todos deverão aderir a um subsistema de saúde com liberdade de escolha.” E os prestadores de serviço não têm a possibilidade de “rejeitar a adesão de ninguém”, independentemente do motivo. Seja um subsistema público ou privado, a última palavra é do cidadão.
Ainda assim, os subsistemas de saúde podem disponibilizar “pacotes de coberturas adicionais, aos quais os aderentes poderão livremente escolher aderir mediante o pagamento ao subsistema de contribuição adicional”. Não sendo especificados que serviços poderiam ser prestados no caso desse pagamento adicional, a IL refere quais os cuidados que têm de estar incluídos para serem aceites como subsistema (entre eles cuidados de farmácia, saúde oral, cuidados oncológicos, rede de saúde mental, rede de cuidados continuados e paliativos).
O preço dos atos médicos também não será um motivo de exclusão. No modelo apresentado pelos liberais, explicou Cotrim, “o preço de todos os subsistemas de saúde é o mesmo”. “As pessoas só pagam os impostos e decidem qual o subsistema a que querem pertencer”, esclareceu, frisando que a liberdade de escolha é uma das principais vantagens do sistema.
As pessoas optam pelo subsistema que consideram prestar melhores serviços no seu local de residência ou tendo em conta, por exemplo, os especialistas das áreas nas quais desejam ser seguidas. Funciona quase como um seguro de saúde: há clínicas e hospitais parceiros daquele subsistema e a pessoa escolhe qual o ato médico e o local que deseja.
A decisão dura um ano e no final desse período os cidadãos têm a possibilidade de mudar de subsistema.
Quanto ao preço, de acordo com a proposta da IL, não há qualquer diferença entre atos médicos ou estabelecimentos de saúde. Seja no público ou no privado, Cotrim Figueiredo explica que “o Estado paga a cada subsistema exatamente o mesmo por cada ato médico equivalente”.
A questão da liberdade de escolha é, por isso, aos olhos dos liberais, uma das maiores virtudes da proposta. Vista como um dos pecados originais do atual sistema de saúde em Portugal, a IL considera que dar às pessoas o poder escolherem o ato médico x no hospital y abre dois caminhos: os cidadãos serem atendidos onde querem e por quem consideram ser o melhor profissional para a circunstância; e o facto de os estabelecimentos de saúde estarem obrigados a prestar melhores serviços para que os utentes não fujam para a concorrência (mais uma palavra de ordem).
O Estado financiador e o sonho de concorrência
Os subsistemas são, segundo a proposta da IL, “financiados por dotações do Orçamento do Estado” e o objetivo é que ninguém fique “excluído do acesso à saúde”. O Estado paga o mesmo por cada ato médico, independentemente de quem presta o serviço e, desta forma, há uma pressão acrescida que fará com que a concorrência funcione.
Se não é pelo preço, a única forma de aumentar as receitas é um subsistema ter mais pessoas e, consequentemente, praticar mais atos médicos, pelo que se torna essencial a necessidade constante de prestar melhores serviços e atrair mais utentes.
Esta ideia agrava-se com a possibilidade de um cidadão mudar de sistema ao fim de um ano: maus serviços levarão as pessoas a trocar de subsistema e esse mesmo subsistema a ter de trabalhar para melhorar. “Os subsistemas irão competir pela preferência das pessoas, desta forma promovendo a qualidade dos cuidados de saúde e a eficiência da sua prestação”, pode ler-se no documento.
A proposta da IL pressupõe também que todos os subsistemas tenham “igual acesso aos prestadores públicos”, assegurando que todos os cidadãos têm acesso aos mesmos cuidados de saúde. Por outro lado, o subsistema público (como já acontece atualmente) também pode contratualizar entre os privados, ficando o cidadão que opta por sistema com mais hipóteses de acesso a serviços.
Um custo superior por um bem maior
Além disso, os liberais admitem que, pelo menos numa fase inicial, o SUA-Saúde pode ter um custo superior ao atual SNS — um ponto que mereceu discussão no Conselho Nacional do partido, com membros a questionarem como é que essa questão seria entendida no espaço público vinda de um partido que apela à descida de impostos.
A perceção no seio da IL leva a afastar uma preocupação acrescida, com Cotrim Figueiredo a justificar: “Se é um melhor sistema de saúde é natural que custe mais.”
Aliás, esta é até vista como uma boa altura para se desfazer o mito relativo à alergia dos liberais ao Estado e ao serviço público: “Esta proposta mostra que não estamos contra os serviços públicos, na lógica do Estado mínimo, na lógica de que só os privados é que podem prestar serviços. Temos noção da importância dos serviços públicos, mas queremos que sejam objeto da gestão mais eficaz possível e este sistema é muito mais eficaz do que o que existe hoje em dia e vai proporcionar, mesmo que custe mais em termos absolutos, muito melhores serviços de saúde. Se há alguma coisa em que o Estado tem obrigação de prestar bons serviços é na saúde.”
Estado, o regulador responsável
Os liberais pretendem que o Estado seja uma “entidade reguladora, independente e dotada de recursos”, com autoridade para acreditar os subsistemas e prestadores de saúde.
Na proposta da IL prevê-se a “responsabilidade” do Estado para a definição de uma política de saúde, bem como para “promover e fiscalizar a respetiva execução e coordenar a sua ação com outras entidades”. Tem também de garantir que todas as pessoas aderem a um subsistema do SUA-Saúde.
Nas mãos do Estado ficam ainda as funções de “fiscalizar o adequado funcionamento do sistema a nível clínico, operacional, concorrencial e financeiro através [de uma] entidade reguladora”, sendo que tem de “separar devidamente e com transparência” as funções de financiador, prestador de cuidados através do SNS, e de fiscalizador e avaliador da qualidade dos serviços.
Também a rede de saúde pública e a rede de emergência médica continuam sob alçada do Estado.
Como ficam os seguros de saúde?
Atualmente, o número de pessoas abrangidas por seguros de saúde em Portugal ronda os 3,2 milhões, o que poderia mudar drasticamente com a proposta da IL, obrigando as seguradoras a readaptarem-se.
Tendo em conta que o acesso a privados passaria a não ter custos acrescidos em comparação com o serviço público e num sistema em que existia equivalência em termos de custos para o Estado, os seguros de saúde apenas seriam necessários para prestadores de serviço que não se incluíssem nos subsistemas.
Na visão dos liberais seria difícil um cenário difícil em que alguns prestadores privados optassem por ficar fora do SUA-Saúde. Ainda que possam perder dinheiro pelo facto de o Estado ser responsável por estabelecer os valores a pagar pela prestação de serviços, fora do sistema a perda poderia ser ainda mais avultada.
Por outras palavras: numa realidade vista por olhos liberais, com um sistema universal a funcionar, onde as listas de espera desaparecessem e os serviços fossem prestados sem custos acrescidos, quem pagaria para ter os mesmos serviços fora do subsistema?
Nesse caso, as seguradoras, que poderiam perder clientes, conseguiriam readaptar o modelo de negócios e passar a prestar serviços de gestão dos subsistemas — um mercado que teria espaço entre os subsistemas privados e que seria preciso preencher caso a proposta da IL fosse aprovada.
Um sistema de dados comum
A IL propõe que o SUA-Saúde tenha um Registo de Saúde Eletrónico Universal, que assegure a “circulação de dados de saúde e outros outros dados pessoais em condições de interoperabilidade, interconexão e rastreabilidade dos sistemas de informação”.
Com o sistema em causa seria possível que os prestadores de serviços tivessem acesso aos registos de saúde dos cidadãos, independentemente do local escolhido para consultas e/ou tratamentos.
Taxas moderadoras proporcionais ao rendimento
A IL pretende que seja feita uma “utilização responsável e racional dos serviços de saúde” através de taxas moderadoras, “definidas com base proporcional sobre o rendimento e podendo ser diferenciadas conforme os prestadores”.
A isenção de taxas moderadoras deve ser feita, segundo os liberais, “em função da condição de recursos, de doença ou de especial vulnerabilidade” e pretende-se que sejam estabelecidos “limites ao montante total a cobrar”.
O modelo recusa que as taxas moderadoras sejam uma forma de financiamento do sistema de saúde e refere que as mesmas “não são aplicáveis nos cuidados de saúde primários e, se a origem da referenciação for o SUA-Saúde, nas demais prestações de saúde, nos termos a definir por lei”.
Nas últimas semanas, a IL colocou-se dentro do “arco da governação”, admitindo de uma forma mais clara vir a formar uma alternativa de Governo com o PSD. Algumas das ideias liberais — incluindo as da área da saúde apresentadas neste pré-projeto de lei — irão necessariamente, caso esse cenário um dia se concretize, para cima da mesa de uma negociação de programa de Governo entre PSD e IL. Mesmo que algumas sejam, a priori, incompatíveis com aquilo que o partido liderado por Luís Montenegro tem defendido para a área da Saúde.