“Estamos a divertir-nos imenso aqui na Estação Espacial Internacional.” As palavras da astronauta da NASA Sunita Williams, proferidas a 400 quilómetros de altitude, podem parecer estranhas vindas de alguém que viu uma missão espacial de apenas oito dias ser prolongada para oito meses. Porém, ao lado de Barry Wilmore, o companheiro com quem seguiu para o espaço para estrear uma nova cápsula da Boeing, mantinha um tom otimista e sublinhava que cada viagem “é como regressar a casa” e que, apesar do imprevisto temporal, esta não é uma exceção.
Os dois astronautas chegaram à Estação Espacial Internacional (EEI) em junho a bordo da Starliner, uma viagem vista como uma prova de fogo para a Boeing. O derradeiro teste, um dos últimos passos antes da certificação da NASA, ficou aquém das expectativas depois de serem detetados vários problemas.
Tune in on Friday, Sept. 13, as astronauts Butch Wilmore and Suni Williams take part in a live Q&A from the @Space_Station.
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Learn more about Butch and Suni's stay in space: https://t.co/jn0Qk1LcB1 pic.twitter.com/lsJZ4TnZzY— NASA (@NASA) September 10, 2024
No primeiro sábado de setembro, a cápsula fez a viagem de regresso vazia, pousando numa base no deserto White Sands, no estado norte-americano do Novo México. “Teria sido uma aterragem segura e bem-sucedida com a tripulação a bordo”, reagiu Steve Stich, gestor do Programa de Tripulação Comercial da NASA, apesar de manter que a agência tomou a “decisão acertada” ao não trazer Suni e Butch — como são conhecidos — a bordo.
A dupla só regressará à Terra em fevereiro do próximo ano, com a NASA e a Boeing a evitar expressões como “presos” ou “encalhados”, já que a viagem está assegurada pela nave Dragon, da SpaceX. Apesar da mudança, a agência espacial vai garantindo que os astronautas estão bem e que são um par extra de mãos importante na manutenção da EEI.
“São ambos muito experientes e já passaram muito tempo no espaço, ambos já lá estiveram seis meses seguidos”, destaca ao Observador Joan Alabart, gestor de programas de Exploração Espacial da Agência Espacial Portuguesa, acrescentando que estão bem preparados para contratempos. A própria Williams viu, em 2006, a sua missão na EEI prolongar-se para seis meses e meio depois de a cápsula em que seguia ter sofrido alguns danos. Há um histórico de missões alongadas para lá do seu tempo e de recordistas com mais de um ano em órbita. O norte-americano Frank Rubio passou 371 dias no espaço devido a um derrame do líquido refrigerador na nave em que iria regressar; Sergei Krikalev ficou 311 dias no espaço, ao ver-se apanhado na teia da dissolução da União Soviética.
O derradeiro teste ficou aquém. Havia alternativa ao regresso com a SpaceX?
O dia era 5 de junho. A Boeing apostou todas as suas fichas no sucesso da sua nova cápsula Starliner e a NASA confiou-lhes dois dos seus mais experientes astronautas, ambos ex-pilotos norte-americanos. O caminho até aqui tinha sido atribulado para a empresa: um primeiro lançamento em que a cápsula acabou na órbita errada, testes sucessivamente adiados devido a variados problemas — das válvulas ao sistema de propulsão — e a ultrapassagem inesperada da SpaceX, que ganhou a corrida para transportar astronautas e até turistas para o espaço.
No início de junho, a cápsula foi lançada da estação de Cabo Canaveral, na Florida, Suni e Butch preparados para passar uma semana em órbita. Instantes antes do lançamento, Suni Williams atirava uma mensagem que agora poderia ser considerada premonitória: “Vai, ‘Calypso!'”, nome com que a nave f0i batizada, “leva-nos ao espaço e traz-nos de volta”.
Apesar de passadas 26 horas terem chegado em segurança à EEI, durante o voo foram detetados quatro derrames de hélio e cinco propulsores ficaram offline, trazendo à memória os problemas detetados num importante teste em maio de 2022.
Se a Boeing e a NASA iam admitindo que não sabiam exatamente o que se tinha passado, Suni e Butch mostravam uma face alegre na primeira conferência de imprensa a partir do espaço, onde diriam estar a divertir-se. Em pouco tempo, veriam o seu regresso adiado por três vezes consecutivas, até ser definida uma nova data de partida: 25 de fevereiro, a bordo da cápsula Dragon e na companhia dos astronautas da missão Crew-9 — a nona viagem do programa comercial da NASA protagonizada pela SpaceX.
Um pastor evangélico e uma maratonista. Os primeiros astronautas da NASA a embarcar na Starliner
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- Butch Wilmore
Aos 61 anos, completa a sua terceira incursão espacial. No entanto, começou a carreira como piloto da Força Aérea e da Marinha. Chegou a voar em missões em apoio às operações Tempestade no Deserto e Escudo do Deserto, durante a Guerra do Golfo, e também sobre os céus da Bósnia em apoio aos interesses dos Estados Unidos e da NATO.
Enquanto astronauta, passou um total de 178 dias no espaço, entre duas missões em 2009 e 2014 — a primeira como piloto e a segunda como comandante — e durante as quais teve a oportunidade de fazer quatro passeios espaciais. Wilmore é também pastor evangélico na Providence Baptist Church, na cidade de Pasadena (Texas) e também já participou em várias viagens pela América Central e do Sul para colaborar com médicos e dentistas no apoio às populações locais.
- Sunita Williams
Vai completar 59 anos a bordo da Estação Internacional Espacial. É piloto e capitã reformada da Marinha norte-americana e em 1998 foi selecionada pela NASA como astronauta. Já passou 322 dias na EEI e chegou a colaborar em alguns retoques da sua construção.
A sua primeira missão foi em 2006 e nela quebrou o recorde de uma mulher com o maior número de horas em passeio espacial, com um total de 29 horas e 17 minutos — acabaria por ser superada pela astronauta Peggy Whitson dois anos depois. No total, acumulou 50 horas e 40 minutos depois de uma nova missão à EEI em 2012. Foi também a primeira pessoa a participar numa maratona a partir do espaço e numa prova de triatlo.
Não há muitas alternativas para trazer a dupla de volta à Terra. “A única nave dos EUA que agora consegue ir lá de forma demonstrada é a Dragon, da SpaceX. O que se queria precisamente com a Starliner era criar uma alternativa”, lembra Joan Alabart, da Agência Espacial Portuguesa. Além da Dragon, só a Soyuz russa faz também viagens para a EEI, tendo deixado esta quarta-feira três astronautas lá. No entanto, este não seria o modelo mais indicado para o regresso de Williams e Wilmore, diz o gestor de programas de Exploração Espacial.
“A capacidade da Soyuz é mais limitada, só leva três pessoas e creio que não pode seguir viagem com apenas uma para cima”, refere. Nota, além disso, que os assentos da nave estão adaptados ao corpo das pessoas que lá seguem, o que num momento tão delicado como o regresso tornaria mais difícil trazer alguém para o qual o lugar não tenha sido desenhado.
A dupla vê-se assim obrigada a passar oito meses em órbita e para assegurar o seu regresso a NASA teve de cortar a viagem de dois dos quatro astronautas que deveriam seguir na Dragon. Até ao regresso, em fevereiro, ambos vão perder datas importantes que esperavam passar com a família e até às eleições norte-americanas, ainda que seja possível para os astronautas votar a partir do espaço.
Suni completa 59 anos em setembro, enquanto Butch vai celebrar o 30.º aniversário de casamento sem a mulher e as filhas, que vão tentando relativizar a situação. “Tens de te deixar levar e esperar o inesperado”, admitiu a mulher de Wilmore, Deanna, numa entrevista ao WVLT. Já o marido de Suni, Michael, acredita que esta não estará de todo desapontada por passar mais tempo no espaço. “É o lugar feliz dela”, disse ao Wall Street Journal.
Frank Rubio viu a viagem adiada por um derrame, Sergei Krikalev pela dissolução da União Soviética. Um histórico de missões prolongadas
O momento em que a Starliner aterrou no deserto White Sands, a 7 de setembro, foi acompanhado atentamente por Suni e Butch. “Acho que não podia ter corrido melhor”, sublinhou Williams. Dentro da nave seguiam apenas os fatos espaciais azuis que a dupla usou durante a missão e que deixaram de ser necessários já que no regresso serão usados os modelos brancos da SpaceX, adaptados à cápsula Dragon.
The #Starliner spacecraft is back on Earth.
At 12:01am ET Sept. 7, @BoeingSpace’s uncrewed Starliner spacecraft landed in White Sands Space Harbor, New Mexico. pic.twitter.com/vTYvgPONVc
— NASA Commercial Crew (@Commercial_Crew) September 7, 2024
O prolongamento de uma missão espacial não é inédito, apesar de neste caso a diferença ser muito significativa face à expectativa inicial da missão. Há, no entanto, outros exemplos. Basta recordar o caso do astronauta da NASA Frank Rubio e dos cosmonautas da agência espacial russa (Roscosmos) Sergey Prokopyev e Dmitri Petelin, que em março de 2023 viram a sua missão de seis meses prolongada por mais seis depois de ser detetado um derrame do líquido refrigerador na nave que os traria de volta à Terra.
Rubio detém, até hoje, o recorde de voo espacial contínuo mais longo de um americano, com a missão de 371 dias. A sua primeira refeição após o regresso seria uma simples salada. “O que a maior parte de nós anseia ao chegar é comida fresca, fruta fresca e legumes”, disse à revista Time na primeira entrevista de volta à Terra. “O espaço é incrível. Estás a fazer algo que menos de 700 humanos tiveram a oportunidade de fazer, por isso cada dia lá em cima é especial”, acrescentou. Mas cada dia tem também um custo. À saída da nave, Rubio teve de ser carregado em braços, como muitos astronautas são.
No histórico de viagens prolongadas, o nome do cosmonauta russo Sergei Krikalev é incontornável. Quando viajou numa missão de rotina para a estação espacial soviética Mir, em maio de 1991, antecipava-se que ficasse em órbita apenas alguns meses. Mas eis que, na Terra, o seu país começava a desintegrar-se. Em agosto desse ano, tanques estavam nas ruas de Moscovo enquanto avançava um golpe comunista contra o Presidente Mikhail Gorbachev. “Ouvíamos falar de toda esta turbulência e instabilidade lá e, claro, estávamos preocupados pelos nossos amigos, os nossos familiares”, recordou Krikalev à BBC, em 2019.
Quando a União Soviética colapsou, a 26 de dezembro, Krikalev ainda estava no espaço com o companheiro Aleksandr Volkov. As dúvidas eram muitas quanto à data de regresso, já que o local de lançamento e de aterragem das missões soviéticas ficava agora num novo e independente país: o Cazaquistão. Restava ao governo russo negociar um acordo para manter o seu programa espacial e trazer de volta os cosmonautas.
“Ouvi todas as histórias sobre termos sido esquecidos na estação. Claro que não era verdade, porque todos os dias comunicávamos com a Terra, havia voos programados para nos trazer o que precisávamos, tínhamos experiências para fazer e dados [para recolher], tínhamos comida e água”, disse também à BBC. No total, Krikalev passou 311 no espaço. Só regressou a 25 de março de 1992, dando os primeiros passos num novo país.
Das alterações nos músculos e ossos ao sistema imunitário e ADN. A lista de efeitos nos corpos de astronautas é extensa e inclui a mente
A adaptação dos astronautas no espaço é geralmente descrita como rápida. Já o processo de readaptação à vida terrestre pode ser mais demorado e difícil. “As forças em jogo na Terra, incluindo a gravidade, têm tendencialmente um efeito mais forte no corpo”, dizia Frank Rubio à Time, acrescentando que podia levar dois a três meses para alguém regressar à forma original.
A forma como os astronautas são afetados pelas condições do espaço e a sua recuperação tem sido alvo de vários estudos. É bem conhecida, por exemplo, a forma como crescem alguns centímetros, já que na ausência de gravidade a coluna descomprime. Há três principais efeitos, produzidos pela falta de gravidade, a diferença de radiação e o isolamento, resume Joan Alabart, da Agência Espacial Portuguesa. Vão desde mudanças nos nossos membros — a massa muscular e óssea diminui rapidamente —, à perda de peso e a alterações no sistema imunitário ou visão, não esquecendo o efeito que pode ter na mente. Com mais cinco meses de missão pela frente, Williams e Wilmore poderão sentir de tudo um pouco.
Um dos primeiros grandes testes sobre as consequências que uma estadia prolongada no espaço têm nos astronautas remonta à década de 1990. Se o nome Valery Polyakov soa familiar é porque detém o recorde de voo espacial contínuo mais longo de sempre, com 437 dias inteiros. Tudo para avaliar se o corpo humano aguentava voos além da órbita do nosso planeta — já a pensar numa viagem até Marte — e se as capacidades cognitivas ficariam comprometidas depois de tanto tempo.
Os cerca de 14 meses que passou na estação Mir entre 8 de janeiro de 1994 e 22 de março de 1995 são bem mais do que os estimados nove meses para chegar a Marte. Nessa viagem, o cosmonauta fez exercício físico para contrariar os potenciais efeitos da microgravidade na massa muscular e fez questão de sair pelo próprio pé depois da Soyuz o ter trazido de volta à Terra, o que não acontece normalmente no regresso dos astronautas. A conclusão foi a de que as funções cognitivas de Valery Polyakov, que morreu em 2022, aos 80 anos, não tinham sido comprometidas pela expedição de 14 meses.
Num teste bastante mais recente, uma equipa de investigadores olhou para os efeitos de uma missão prolongada no espaço com um cunho de originalidade e sorte. Tomaram partido do facto de a NASA ter escolhido e formado como astronautas dois irmãos gémeos, Scott e Mark Kelly, que se tornaram cobaias perfeitas para o estudo. O primeiro passou 340 dias a bordo da EEI, entre 2015 e 2016, enquanto o segundo ficou em Terra. O estado de saúde de ambos foi comparado quando Scott regressou à Terra.
Uma das coisas que mudou em Scott Kelly foi a cadeia de ADN, a molécula armazenada nos núcleos das nossas células onde ficam os genes que determinam as nossas características. Foram mais de mil os genes que sofreram alterações provocadas pelas radiações que atravessam o espaço — muitas das quais não chegam à Terra por estarmos protegidos pela atmosfera.
Também se verificaram mudanças ao nível das bactérias que habitam os intestinos — o número de bactérias “Firmicutes” aumentou e as “Bacteroidetes” diminuíram –, a carótida do astronauta também engrossou, assim como a retina nos olhos. Os cientistas observaram, no entanto, que a maior parte das mudanças regrediram. Mesmo a nível da capacidade cognitiva de Scott Kelly, que tinha diminuído quando comparada com os resultados obtidos antes de partir para o espaço, mas se reajustou passados seis meses.
Ao nível da mente humana e da sociabilidade há outros estudos que também trazem algumas luzes. Uma equipa liderada por Mathias Basner, professor do Departamento de Psiquiatria da Escola de Medicina Perelman (Universidade de Pensilvânia), testou em 2021 os comportamentos de um grupo de pessoas que viveu quase dois meses na ausência de peso simulada e dormiram numa cama especial com a cabeça inclinada para baixo num ângulo de 6º. Concluíram que a capacidade dos participantes de ler corretamente as expressões emocionais uns dos outros foi afetada.
De regresso à Terra, tudo é adaptação. “Lembro-me da primeira vez que vi um cão depois de passar quase um ano no espaço. Foi como encontrar-me com um alien que nunca tinha visto antes”, recordou por estes dias à Bloomberg a propósito do prolongamento da missão de Suni e Butch. “[Ainda assim], eu sabia no que me estava a meter, estava mentalmente preparado para isso (…). Quando não se está à espera disso, a mentalidade é um pouco diferente”, acrescentou.
Que futuro para a Boeing e o programa Starliner?
Para tentar contrariar muitos destes efeitos, os astronautas têm um regime diário de duas horas de exercício e mantém-se ocupados com várias experiências científicas e reparos necessários nos módulos que habitam. A bordo da EEI, Suni e Butch têm uma lista de tarefas diária e recentemente organizaram juntamente com a Crew-8 a sua própria versão dos Jogos Olímpicos.
A partir da Terra, a Boeing e a NASA vão acompanhando atentamente a dupla de astronautas. Enquanto tentam perceber o que correu mal com a missão, vão surgindo dúvidas sobre o que se segue, quer para a empresa, quer para o programa Starliner. Não há dúvidas de que a Boeing mantém um papel junto da NASA, já que é o principal fornecedor de componentes-chave para o sistema de lançamento. Mas o que será do Starliner, que custou à Boegin 1,6 mil milhões de dólares adicionais, incluindo mais de 250 milhões só no segundo trimestre de 2023?
Joan Alabart acredita que a NASA tem na Boeing a única opção, se quer pôr fim ao “monopólio” de viagens da SpaceX. “Neste momento não há, de forma realista, outra empresa ou entidade nos EUA que possa enviar astronautas”, sublinha. “Acredito que se conseguirem resolver os problemas técnicos que tiveram com os propulsores ainda terão algumas missões garantidas à EEI”, acrescenta. Isto porque a estação espacial será desativada em 2030.
Por ano são lançadas duas equipas para a EEI, o que deixa no máximo mais seis viagens para a SpaceX e outras seis para a Boeing, caso consiga ultrapassar os problemas técnicos. “Temos contrato para seis ou sete voos. Isso leva-nos até ao final da década e por isso temos muito tempo para pensar no que vem depois”, disse em abril Mark Nappi, responsável do Programa de Tripulação Comercial da Boeing.
Num futuro imediato, resta à Boeing passar novamente por uma série de testes e certificações da cápsula Starliner. O tempo está a contar, principalmente se quiserem cumprir a meta de agosto de 2025, data para a qual estava prevista a missão Starliner 1.
“A Boeing terá de almejar nada mais que a perfeição durante os próximos testes, especialmente quanto à questão do sobreaquecimento e dos derrames de hélio, para a missão avançar”, diz Namrata Goswami, professora de política espacial na Thunderbird School of Global Management. Por agora, a empresa prefere destacar a recente aterragem sem percalços e a NASA tenta pôr os olhos no futuro. Nas palavras do gestor do Programa de Tripulação Comercial, é “preciso olhar para as coisas que não correram como esperado”.