Já andava a sentir-se mal há alguns dias, mas na passada sexta-feira, 26 de junho, não aguentou mais e foi diretamente ao Hospital Beatriz Ângelo, em Loures. Tinha dores no corpo e arrepios de frio, só lhe apetecia deitar-se e dormir, não conseguia continuar a trabalhar. Saiu da clínica de imagiologia, em Lisboa, onde trabalha como empregada de limpeza, e foi às urgências. Fez o teste ao novo coronavírus; no dia seguinte, sábado, dia 27, recebeu o resultado: positivo.
“No domingo liguei para a Saúde 24, para pedir ajuda por causa da minha irmã. Fez um transplante renal no final de janeiro e esteve internada em Santa Maria durante quase quatro meses, teve muitas complicações. Quando saiu do hospital, em maio, veio cá para casa. Ainda não me telefonaram de volta, ninguém me ligou”, contou esta quinta-feira, 2 de julho, Aida Trindade, de 51 anos, ao Observador.
Cinco dias depois de ter testado positivo para o SARS-CoV-2 ainda não tinha recebido qualquer contacto por parte das autoridades de saúde pública para fazer o inquérito epidemiológico e apurar potenciais contactos em risco. João, o marido, de 50 anos, que entretanto começou a ter dores de cabeça e no corpo, também foi testado — e também está positivo, com teste feito na segunda-feira e resultado conhecido no dia seguinte. Também não recebeu qualquer telefonema por parte do delegado de saúde da zona da Póvoa de Santa Iria, onde moram com a filha, Sofia, de 17 anos — para não correr riscos, a irmã teve entretanto de voltar para o apartamento onde morava, sozinha, antes do transplante, em São João da Talha.
Aida trabalha numa clínica em Lisboa, João é motorista de Uber, Sofia, que se está a preparar para os exames de 12.º ano, agora fechada sozinha no quarto, esteve até há uma semana a frequentar as aulas presenciais na Escola Secundária Padre António Vieira, em Lisboa. Como, até à data, não receberam qualquer contacto por parte das autoridades, trataram eles próprios de avisar diretamente as pessoas com quem tiveram contacto próximo nos dias antes de ficarem infetados. “No consultório já há outros sete casos. Eu fui a primeira a ir fazer o teste, avisei a clínica e os outros funcionários foram fazer. Sei que uma das pessoas, minha colega direta, está com sintomas, os outros não sei se estão doentes ou assintomáticos”, conta a empregada de limpeza.
“Disseram-me que o delegado de saúde ia entrar em contacto comigo, mas até agora nada”
Depois de, na passada segunda-feira, Fernando Medina ter criticado a atuação das autoridades de saúde no controlo da pandemia na região de Lisboa e Vale do Tejo (LVT), surgiram várias notícias que davam conta de cadeias de transmissão por controlar e de centenas de inquéritos epidemiológicos feitos com vários dias de atraso.
Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP), explicou ao Observador que cada doente tem obrigatoriamente de ser contactado por parte das unidades de saúde pública do local onde tem morada, para que se proceda à investigação da cadeia de transmissão a que pertence e sejam identificadas as pessoas com quem manteve uma interação próxima — que por sua vez terão também de ser contactadas, para que iniciem um período de quarentena, tenham ou não sintomas da Covid-19. “Deve ser feito o mais depressa possível. Demorar dias ou semanas pode dar origem a que pessoas potencialmente infetadas continuem a fazer as suas vidas e a disseminar a doença”, alertou o especialista, que estabeleceu as primeiras 24 horas após a comunicação de resultados positivos como prazo máximo para ser feito o primeiro contacto.
Entretanto, esta quarta-feira, dia em que entrou em vigor um despacho interministerial a determinar a obrigatoriedade da conclusão do inquérito epidemiológico “até 24 horas após a notificação no SINAVE”, o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, a ministra da Saúde deu uma entrevista a garantir que o problema estava ultrapassado e, “pelo menos até terça-feira à noite”, não havia quaisquer inquéritos epidemiológicos em atraso, não apenas na região de LVT mas em todo o País.
O caso de Aida Trindade, no dia seguinte à entrevista de Marta Temido há já cinco dias à espera de um telefonema, é a prova de que não será bem assim. O do marido, positivo desde terça-feira e ainda por contactar, também. Há mais: Ana Bertelo, 27 anos, fez o teste na passada segunda-feira, 29, recebeu o resultado um dia mais tarde. Continua igualmente à espera, assintomática e isolada, no seu quarto, na casa onde mora com os pais, que estão também a cumprir quarentena mas não foram testados, em Loures. “Disseram-me que o delegado de saúde ia entrar em contacto comigo, mas até agora nada”, contou esta quinta-feira, pelo telefone.
Fisioterapeuta, foi testada por rotina, no lar de idosos onde trabalha, na Ajuda. “Foi o terceiro teste que fiz, de 15 em 15 dias o lar está a fazer testes. Nunca pensei testar positivo desta vez e por mais que tente não consigo perceber onde fui infetada. Há alguns casos no lar mas estão no piso de cima, em isolamento, e eu não vou lá. E mesmo as auxiliares que vão vestem todo o equipamento de proteção. Há duas semanas meti um implante dentário, talvez tenha sido no dentista. Ou então não, e apanhei noutro sítio qualquer, tomei antibióticos e a minha imunidade baixou muito. Mas não tinha, nem tenho, sintomas”, revela. “Trabalho também numa clínica, era onde estava quando a assistente social do lar me ligou a avisar. Saí imediatamente e vim para casa.”
Para já, e como não foi contactada pelas autoridades de saúde, Ana Bertelo não tem como saber onde foi contagiada ou a que cadeia de transmissão poderá ou não pertencer. Já o trabalho de rastreio dos seus contactos, que deveria ter sido feito pela unidade de saúde pública do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Loures, foi, para já, em parte assegurado pela assistente social do lar, que fez uma lista de todos os pacientes com quem a fisioterapeuta manteve proximidade.
“Os utentes com quem lido no lar, cerca de duas a três pessoas por dia, entre oito e dez no total, deram todos negativo, acho que isso demonstra bem como sou uma pessoa cuidadosa. Tenho transporte próprio, não estive com outras pessoas, não saio nem vou a festas”, garante Ana Bertelo, que também presta cuidados, além de no lar e na clínica, a uma outra utente, que visita no próprio domicílio. “Não fez o teste, é uma senhora bastante idosa, mas está bem, sem sintomas, portanto não me parece que esteja infetada.”
Profissional de saúde, diz que até consegue perceber os atrasos nas diligências para proceder aos inquéritos epidemiológicos, mas que ainda assim “preferia ser contactada o mais rapidamente possível”, até para poder fazer novo teste. “Está tudo uma grande confusão, tem havido imensos casos de repente e nem os médicos têm todas as respostas sobre como isto se propaga. Acho que é mais difícil chegarem a toda a gente. Não tenho sintoma nenhum, se fosse outra pessoa se calhar até tinha continuado a trabalhar ou a sair de casa, porque não há controlo nenhum. Depende muito do bom senso de cada um.”
Há duas ou três semanas, só na Amadora havia 200 inquéritos por fazer. Agora já não
Guilherme Gonçalves Duarte, membro da ANMSP e médico da Unidade de Saúde Pública do ACES da Amadora, concelho composto por seis das 19 freguesias na Área Metropolitana de Lisboa ainda em estado de calamidade, confirma: não têm sido meses fáceis.
“Temos estado a trabalhar permanentemente, quase sem folgar, muitas vezes 12 e 14 horas ou mais por dia. A nossa unidade tem 15 pessoas, divididas em médicos, médicos internos de saúde pública, enfermeiros de saúde comunitária e técnicos de saúde ambiental, sendo que nem todos têm feito este trabalho. Somos 15 para toda a Amadora, para os 190 mil habitantes”, enquadrou, via Skype, esta quinta-feira à tarde ao Observador.
Mesmo assim, acrescentou logo depois, a situação já esteve bem mais complicada: com a chegada de reforços, nas últimas semanas, à equipa responsável pelos inquéritos epidemiológicos e pela vigilância ativa de infetados e casos suspeitos no concelho, conseguiram passar de 15 ou 18 inquéritos por dia para 30 ou 40. “Se não fosse isso continuávamos com os 200 ou 150 casos de atraso que chegámos a ter há duas ou três semanas. Houve pessoas que só foram contactadas quatro ou cinco dias depois dos resultados positivos, fora aquelas que não sabíamos onde estavam”, admite o especialista.
“Neste momento não temos inquéritos em atraso. O que acaba por nem ser bem verdade porque há pessoas com quem não conseguimos entrar em contacto. Tentamos telefonar, mas os números estão desatualizados. Chamamos a polícia, mas nem eles conseguem saber onde as pessoas estão. Mas, daqueles que conseguimos contactar, estamos a zeros”, congratula-se Guilherme Gonçalves Duarte, que tem dado formação aos profissionais que se têm voluntariado, ou têm sido desviados dos respetivos serviços para ajudar cumprir esta tarefa.
“Conseguimos arranjar dez pessoas da Cruz Vermelha Portuguesa, que vão estar cá um mês a ajudar-nos; pessoas de outras unidades funcionais do ACES; temos cerca de seis higienistas orais que fazem vigilâncias ativas; alguns colegas da Faculdade de Medicina Veterinária; tivemos voluntários da Escola Nacional de Saúde Pública; e temos também internos de formação geral do Amadora-Sintra, que nos ajudam em horas extraordinárias aos fins de semana”, vai enumerando, enquanto consulta a folha de Excel onde vão sendo esquematizadas as escalas, feitas à medida da disponibilidade dos colaboradores.
“Neste momento temos uma força de trabalho aumentada mas que, enfim, não é a situação ideal. Daqui a uns meses as pessoas voltam à sua vida normal e as coisas vão voltar a ficar por fazer. Isto é tudo muito em cima do joelho”, critica o especialista, também ele de saída, da Amadora para Genebra, para integrar a Missão Permanente de Portugal junto dos Organismos e Organizações Internacionais das Nações Unidas. “Não podemos aspirar a uma sociedade parecida com antes do Covid se não tivermos esta capacidade de detetar atempadamente os casos, de investigar os casos e de implementarmos o rastreio e vigilância de contactos e a vigilância, para podermos interromper as cadeias de transmissão e a infeção pessoa a pessoa.”
“Identificar, testar e isolar muito rapidamente”, eis a estratégia apresentada por Graça Freitas para conter o crescimento e disseminação do novo coronavírus na zona de Lisboa — e que esbarra, acusa o médico de saúde pública, logo nas ferramentas à disposição dos profissionais: “Os atrasos não acontecem apenas pela ausência de profissionais capacitados, também acontecem porque para as unidades locais isto é uma grande confusão, não há um sistema concreto que ajude a concatenar e sistematizar todas as fontes de informação. Na minha unidade recebemos várias bases de dados, uma por cada laboratório privado; depois temos o Sinave Lab, que é onde todos os laboratórios, independentemente de serem hospitalares ou privados reportam; e a seguir temos ainda o Sinave Med, onde os clínicos deveriam notificar mas muitas vezes não o fazem, porque a notificação é morosa, etc. Nós temos de andar à pesca dos casos e muitas vezes eles não nos chegam, temos de andar a escarafunchar. Porque o Sinave Lab e o Sinave Med foram implementados de forma diferente e não comunicam um com o outro, o que não faz qualquer sentido”.
Basta haver um processo sem número de utente do Sistema Nacional de Saúde, explica o médico, para tudo se complicar e os profissionais terem de se desmultiplicar em pesquisas em busca do potencial infetado perdido — isto porque, além dos positivos, são também reportados os casos suspeitos e até os negativos.
Nesta fase da pandemia, acrescenta o especialista, a unidade de saúde pública da Amadora está a receber entre 60 e 80 notificações por dia. Em média, e de acordo com as recomendações do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças, cada inquérito epidemiológico deve demorar uma hora (duas para os casos considerados complexos), sendo que cada conversa com os contactos próximos dele resultantes deve levar entre 3 e 20 minutos. Não são necessárias muitas contas para perceber por que motivos, desde o desconfinamento, no final de maio, tem havido centenas de atrasos na região que acumula a grande maioria dos casos diários de infeção do país.
Na fase pré-confinamento este problema não se colocou, garantem os especialistas e testemunha Carlos Pimenta, 59 anos, que, desde que na sexta-feira 27 de março recebeu o teste positivo até ao momento em que finalmente negativou o vírus, falou todos os dias com médicos de saúde pública, que lhe ligavam religiosamente às 9h30. “Ligavam para mim, para a minha mulher e para a minha filha, que também foram positivas, mas completamente assintomáticas. Sempre em separado, até brincávamos com isso, ‘Já recebeste a tua chamada hoje?’.”
Na altura, recorda o conservador do registo comercial ao Observador, os problemas eram outros: “Estava com uma tosse seca, liguei para o SNS 24, logo no início de março, e mandaram-me tomar um xarope. Tomei, fiquei na mesma, e passado uma semana liguei outra vez. Só à terceira semana, quando liguei a dizer que continuava com tosse e que tinha também perdido o olfato, é que encaminharam para o centro de saúde da Lapa. A partir daí foi impecável”.
Apesar de ter sido infetado na fase inicial da pandemia — “Na altura havia uns 1500 testes positivos em todo o País” — e de ter sido submetido ao inquérito epidemiológico atempadamente, Carlos Pimenta acabou por não saber onde contraiu o novo coronavírus. “Na altura perguntaram-me tudo; onde tinha estado, com quem tinha estado, tive de indicar umas 40 pessoas e a conservatória teve inclusivamente de fechar durante uns dias. Ninguém conseguiu perceber como foi. Eu tinha estado em Sevilha, no final de fevereiro, num torneio de bridge; e a minha filha esteve no Mónaco no início de março, poderá ter sido num desses sítios.”
“Tem ido trabalhar todos os dias, não tinha sido informado de que era positivo”
Basta um exercício de busca rápido e arbitrário no SINAVE para perceber que no último mês e meio os casos de inquéritos epidemiológicos feitos muito depois da hora têm sido tudo menos ocasionais, garante ao Observador Guilherme Gonçalves Duarte. E a tendência não será para melhorar: “Nós, na Amadora, até fomos privilegiados pelos recursos que recebemos, mas algumas unidades começam agora a claudicar. Lisboa Central, por exemplo, começa a ficar um bocado exacerbada. E agora, com o Verão, vamos ver como corre o Algarve. Queremos chamar turistas — e bem —, mas estamos preparados para responder? Tenho muitas dúvidas. No Inverno, a nível nacional, vão ser só doenças que vão mimetizar o Covid, nem é só a gripe. Isto vai ser um completo caos, da forma como está organizado. Vamos ver se com o abanão político se começam a mudar também algumas coisas que até aqui não têm sido mexidas”, alerta o especialista.
As consequências, revela a já citada pesquisa no Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, podem ser desastrosas: um homem, lojista num centro comercial de Lisboa, testou positivo para o novo coronavírus num rastreio organizado pela entidade empregadora a 3 de junho, e só foi contactado pela unidade de saúde pública da sua residência a 14 de junho, 11 dias depois. “Tem ido trabalhar todos os dias, não tinha sido informado de que era positivo”, cita o especialista, a partir do relatório. Não há qualquer informação disponível sobre se a partir deste resultaram ou não outros casos de infeção.
“É um absurdo completo, mas não fico nada espantado. Por isso é que quando vêm com isto do “testar, testar, testar”… Corretíssimo, mas há que saber o que fazer a seguir. Isto foi completamente aleatório, basta escarafunchar para ver que é o que está a acontecer. E é muito preocupante”, alerta Guilherme Gonçalves Duarte.
Desde que o filho, de 24 anos, testou positivo, há quase duas semanas, Odete Tavares, 42, não tem feito outra coisa a não ser ligar para a linha SNS 24, a pedir informações. “Vivo com o meu filho, que está infetado, com o meu marido, com o meu filho mais velho, com a minha nora, com o meu neto e com a minha filha. E quando isto aconteceu a minha neta também estava cá em casa, a passar o fim de semana com o pai. Ligaram para o meu filho e ele deu os dados todos da família, mas ninguém ligou. Ele até já deu negativo mas ninguém nos ligou ainda”, diz ao Observador a cabo-verdiana, há 16 anos a viver em Portugal.
Explica que, da primeira vez que telefonou para o 808 24 24 24, lhe disseram que devia continuar a fazer a vida normal, mas que essa informação mudou umas quantas chamadas mais tarde: “Na sexta-feira passada outra senhora disse-me que tinha de ficar em casa, e eu fiquei, mesmo sem baixa. O dinheiro faz-me falta, mas nem sequer é esse o meu problema, quero fazer a minha parte, não quero infetar pessoas. Se posso ter vírus não posso ir para o trabalho, contagiar as senhoras ou as minhas colegas, que têm filhos e família. Além disso ando de transportes públicos, se estiver doente vão ser milhares de pessoas que vou contaminar.”
Empregada de limpeza, trabalha todos os dias das 6h às 9h numa empresa, na margem sul do Tejo, onde mora, e depois faz horas em casas particulares. Tem medo de estar doente — “Na terça-feira senti-me mal, estava zonza, com frio e calor ao mesmo tempo e com tonturas” — e quer fazer o teste ao SARS-CoV-2, mas garante que o orçamento familiar não comporta a despesa. Acima de tudo, confessa, sente-se desapoiada: “Eu sei que é difícil, que há muita gente, mas também não pode ser assim”. No final, fala não por si mas pelos que conhece e que com ela partilham dificuldades: “Não sou uma pessoa que pensa só em mim, se fosse assim estava no trabalho, eu penso em proteger as outras pessoas. Mas o que está a acontecer não é fácil, muito menos sem ajuda. O que vai acontecer neste caso é que toda a gente vai ter o vírus e vai calar a boca, porque se não for trabalhar não tem como pôr comida na mesa”.