A história é relativamente simples e comum a muitos jovens: alguém tem uma ideia (seja ela qual for), investe entusiasticamente tudo o que tem nela, as coisas não correm como espera, esse alguém facilmente desanima, não sabe o que fazer, mas na chamada Hora H — antes que o resto desmorone — há um amigo que se junta com distanciamento suficiente para resolver o problema. Missão: salvar o que pode ser salvo. E não é de estranhar que dessa energia e visão conjunta saiam outras ideias.
Pelo meio, “os dilemas morais” que atravessam gerações, quer estejamos em 2021 ou nos anos 1980: como lidar com o falhanço, o final de uma relação amorosa, a desilusão, a incerteza face ao que se quer, as relações dentro do local de trabalho, os limites que têm de ser respeitados, a gestão de expectativas e as dúvidas sobre onde acaba o amor e começa a amizade (e vice-versa).
Poderíamos, neste momento, estar a escrever um testemunho sobre o dia a dia de um millennial que vários leitores se identificariam, é certo. Mas escrevemos sobre um novo livro de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, as autoras da coleção– abram alas para a nostalgia — “Uma Aventura”, que na última narrativa que escreveram para a Associação Portuguesa de Seguradores (APS) quiseram desmistificar o que é isto de lançar uma startup e criar uma (ou mais) aplicação móvel.
Em “Talvez uma App”, Mário ajuda Manel a dar a volta ao fiasco que foi a sua tentativa de negócio, enquanto, simultaneamente, tentam lidar com as outras esferas e preocupações das suas vidas. Há ainda o desporto a servir de amparo — neste caso, o surf — e a concretização do propósito inicial: canalizar, então, a narrativa para o setor dos seguros. O objetivo da APS e das autoras é o de fazer ver aos jovens que entre as escolhas de futuro podem estar novas ideias de negócio no setor e também contribuir para a educação relacionada com temas financeiros.
“Temos colaborado com a APS, escrevendo histórias com personagens, mas que, de alguma forma, deem a conhecer aos mais novos o valor social do seguro e o seu interesse para a proteção das pessoas. O tema geral é este, mas temos carta branca para escrever sobre o que quisermos e organizar a história como entendermos”, explica Isabel Alçada ao Observador numa entrevista por videochamada. Para se inteirarem sobre o universo das aplicações móveis e das startups, tiveram a ajuda de alguns especialistas. No que diz respeito ao surf, contaram com os ensinamentos de um dos netos de Isabel.
“Há muitos assuntos sobre os quais realmente sabemos um pouco, mas não o suficiente para escrever uma história e o ideal é falar com quem saiba, que nos diga muito e que, desse muito, vamos aproveitar o essencial, o que melhor se encaixar. E isso tem sido muito interessante”, acrescenta.
A escreverem livros infanto-juvenis juntas desde 1982, são várias as conclusões que tiram sobre as diferenças geracionais. Ana Maria Magalhães diz que “o mundo está sempre a mudar,” a humanidade é que não muda, para o bem e para o mal. “O essencial do que os homens sentem está igual desde o Homo Sapiens. O amor, a amizade, a raiva, a inveja, o desejo de ir mais longe , etc. Nada disso mudou. Só está encaixado em novas molduras, que é o mundo que vai mudando”, diz.
Isabel Alçada acrescenta que a par das mudanças do mundo, é importante não esquecer que também o cérebro se tem alterado. “As conexões cerebrais têm evoluído e uma das razões que tem contribuído para isso é a leitura. Está mais do que provado que a leitura é uma das atividades que mais desenvolve o ser humano do ponto de vista cognitivo.” E como é que isso impacta as histórias para jovens? “Nas nossas aventuras temos tentado fazer refletir essa mudança. Em cada livro que escrevemos procuramos retratar a realidade de hoje. Quando fizemos o primeiro livro, que foi publicado em 1982, era a realidade de 1982, mas já demos um salto enorme”, diz.
Perto de quarenta anos depois, as autoras recordam um dos momento iniciais da sua escrita conjunta com alguma nostalgia: “Nessa altura, escrevemos uma história para os nossos alunos em que havia uma coisa que nos pareceu uma invenção quase inalcançável: os cientistas reuniam, porque iam viajar no tempo (isto era da coleção ‘Viagens no tempo’) e os cientistas que viajavam no tempo reuniam por televisão”, conta, entre risos, Isabel Alçada. “Na altura achávamos que era pura ficção científica.”
Voltando às mudanças ao longo do tempo que tiveram impacto na vida das pessoas, Ana Maria Magalhães destaca outra coisa: o ritmo. “Vivemos a um ritmo perfeitamente tresloucado e não há velocidade que nos satisfaça. Aquilo que demora dois minutos nós achamos que devia levar um. Se tivermos uma viagem que demora duas horas, achamos que meia hora chegava perfeitamente”, diz. E a junção deste ritmo às novas tecnologias não fez com que os dilemas morais de sempre se agudizassem nesta geração? Para Isabel Alçada, esse é um cenário possível.
“Têm condições para se agudizar se, de alguma forma, a sociedade não ajudar os jovens a superar situações que podem ser de isolamento. Eles podem estar permanentemente online e isolados de um ponto de vista social e isso é um risco”, diz. E não se fica por aqui, acrescentando que a internet também veio baralhar a formação da consciência moral e a distinção entre o risco e o que é seguro, entre o que é verdadeiro, sobre o qual há informação credível, e o que é falso ou aproximado.
“E tem outro problema”, acrescenta Ana Maria Magalhães, que é a construção do mundo de amigos, “porque nada substitui um encontro pessoal”. “Costumo dizer que um amigo virtual não tem cheiro e o cheiro pode ser péssimo. E, por isso, as pessoas têm mesmo de se encontrar e conhecer e formar uma amizade sólida, que só acontece ao vivo”, diz, lembrando as crianças que às vezes vivem inclusive isoladas da própria família. “Estão em casa, os pais e os filhos, cada um agarrado ao seu telemóvel, a falar com pessoas que podem não corresponder à verdade e um dia descobrem que estão completamente sós. Isso é um grande perigo da internet.”
No livro que escreveram para a coleção Seguros e Cidadania, da APS, a amizade continua a ser um dos pilares da narrativa, sem esquecer o amor. E uma das coisas que as autoras sempre tentaram fazer nos seus livros é estimular a iniciativa entre os mais jovens. “Em todos os nossos livros, desde que começámos, uma das espinhas dorsais é estimular os mais novos a tomarem iniciativas. Eles nunca ficam parados quando enfrentam um problema. A nossa ideia é: vocês podem resolver coisas, pensar sobre a realidade e agir para melhorá-la, para ajudar os outros, para resolver situações, etc. Isso é, aliás, a essência da aventura”, diz Isabel Alçada. Fazem ainda parte da mesma coleção o livro “Um Perito em Busca da Verdade”, o “Encontro Acidental”, o “Alerta Máximo” e a “Armadilha Digital”.
Um dos temas abordado no “Talvez uma app” é bem familiar dos empreendedores: o do falhanço, uma ideia que não resulta. Como diz Ana Maria Magalhães, “é preciso saber ganhar e saber perder”, porque quando se arrisca, nem sempre corre bem. “Às vezes, é preciso uma pausa para a pessoa refletir e não se meter a correr numa outra coisa qualquer… Depende do que falhou e da maneira de ser da pessoa. Mas é preciso recomeçar e a vida recomeça. Ainda por cima a vida agora é muito longa”, diz, entre risos, e deixando conselhos aos pais de miúdos mais novos.
“Se têm um filho com determinado talento é sobretudo nisso que têm de apostar, tentar, retentar e recomeçar. Às vezes, a escola ainda funciona muito como modelo único. Há que alterar isso. Aqui em Portugal ainda estamos um bocadinho num molde em que tentamos pôr todos à força… E isso acaba por ser péssimo para aqueles que não encaixam ali perfeitamente. Esta é uma das minhas preocupações. Em quarenta anos de vida docente, passaram-me pelas mãos muitos casos destes”, diz.
Sobre a vida docente, diz que a comunidade escolar ainda vive um bocado num mundo de enganos, um mundo de faz de conta. “É muito mais fácil ter uma boa relação com os filhos, os alunos, os filhos dos amigos. É muito mais fácil ter uma relação mais amigável do que verdadeira. Porque a verdade exige muitos cuidados”, diz. Isabel Alçada acrescenta que ao longo dos mais de 30 anos em que escreveram juntas, sempre tentaram mostrar o poder da verdade nas suas obras.
“Nos nossos livros tentámos mostrar que as pessoas têm de ser francas e dizer o que pensam e não pensarem pela cabeça dos outros. É preciso encorajar a que a pessoa tenha a sua própria reflexão e a tome a sua própria decisão. E não está explícito, está implícito na história. Nós temos isto como a rede que está por detrás do nosso trabalho, mas não explicitamos. Porque até se explicitamos no livro, o livro vai perder”, acrescenta.
E pode o universo das apps e das startups ser uma grande aventura? Isabel Alçada não tem dúvidas: “Acho que sim, nunca sabemos o que vem aí. Gostamos muito das coisas abertas, de sentir que a realidade não se esgota naquilo que conhecemos”. E Ana Maria Magalhães acrescenta uma viagem ao futuro: “Ser velho não é só ter rugas e cabelos brancos, é ver o mundo transformar-se diante de nós”, diz, lembrando a forma como o mundo tem evoluído desde os tempos em que tinha de ligar para uma telefonista para conseguir falar com alguém em Vila Franca de Xira.
“O que espero que venha a acontecer é que haja uma app para transportar a matéria. De repente, a pessoa vive em Lisboa e trabalha na Austrália e bebe um café em Singapura, uma viagem instantânea para outro país. Com tudo que já vimos a acontecer, porque não sonhar com o teletransporte?”, diz. Talvez numa app próxima.