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O Governo colocou em consulta pública, até 31 de julho, o diploma que aprova o Regime do Imposto Mínimo Global (RIMG), mais conhecido como a lei que impõe uma taxa mínima de imposto de 15% para sociedades com faturação acima de 750 milhões de euros. Só após a consulta pública, lançada no portal ConsultaLEX, é que a lei irá para aprovação em conselho de ministros, para seguir, posteriormente, para o Parlamento.
O dossiê já estava a ser trabalhado pelo anterior Governo, até porque a diretiva tinha data limite para transposição o dia 31 de dezembro de 2023. Mas o executivo liderado por António Costa acabou por não enviar para a Assembleia da República qualquer proposta antes da dissolução — e como Portugal não o fez dentro do prazo, a Comissão Europeia já abriu um processo de infração, tendo dado um novo limite, antes de avançar com o caso para o Tribunal Europeu.
Agora, no âmbito do designado pacotão para a economia, o Governo de Luís Montenegro colocou a transposição como uma das 60 medidas a implementar.
Joaquim Miranda Sarmento, ministro das Finanças, explicou no Parlamento que o que se vai criar é um regime específico, não entrando no Código do IRC, ou seja, é como se se estivesse a criar impostos complementares independentes do IRC.
O que é o Regime do Imposto Mínimo Global?
O Regime do Imposto Mínimo Global (RIMG) estabelece a taxa de imposto mínima de 15% em sede de lucros para multinacionais. Deriva do projeto Erosão da Base Tributável e Transferência de Lucros (“Base Erosion and Profit Shifting”) da OCDE, no âmbito do qual 130 países acertaram um quadro geral para estabelecer um imposto mínimo global, no chamado Pilar 2 (o projeto da OCDE tem dois elementos, mas é no Pilar 2 que está integrado o imposto mínimo). Foi neste contexto que a União Europeia avançou e aprovou uma diretiva em dezembro de 2022 para garantir a aplicação dessa taxa no bloco. E é essa diretiva que Portugal tem de transpor, já tendo ultrapassado o prazo e arriscando um processo em tribunal.
Que empresas estão abrangidas?
A taxa mínima abrange empresas — nacionais e estrangeiras — que façam parte de grupos presentes em vários países e que, no conjunto, tenham um nível de faturação de 750 milhões de euros em, pelo menos, dois dos quatro exercícios fiscais imediatamente anteriores. Mas em caso de fusão de empresas vale qualquer um dos quatro exercícios anterior na aferição de rendimentos de 750 milhões de euros. Em caso de cisão fica abrangido se atingir os 750 milhões no primeiro ano fiscal após a operação ou dois anos do segundo, terceiro e quarto exercício.
Ou seja, para ficar abrangido neste diploma a empresa tem de fazer parte de um grupo que, no total, fature pelo menos 750 milhões e esteja em várias jurisdições. Segundo o Público, o Governo estima que em Portugal esta legislação apanhe entre 2.700 e 3.000 entidades. Só que não é certo que todas estas empresas acabem a pagar pelo menos 15% em Portugal.
Há exceções?
Sim. Segundo o diploma em consulta pública, preveem-se “regras específicas para os grupos de empresas multinacionais que se encontram na fase inicial da sua atividade internacional”. Mas também há uma exclusão dos grupos que tenham uma receita média inferior a 10 milhões de euros e uma média de resultado líquido inferior a um milhão de euros.
Também não se aplica a “qualquer entidade pública, organização internacional, organização sem fins lucrativos, fundo de pensões, fundo de investimento que seja uma entidade-mãe final ou um veículo de investimento imobiliário que seja uma entidade-mãe final”, nem por empresas detidas em pelo menos 95% pelas anteriores. Isto porque se pressupõe que os fundos não são sociedades-mães últimas.
Além disso, nem todos os rendimentos concorrem para apurar o lucro tributável.
Em que Estado fica o imposto?
Há três mecanismos específicos para garantir um nível mínimo de tributação: a regra de inclusão de rendimentos – (income inclusion rule — IIR), a regra dos lucros insuficientemente tributados – (undertaxed profits rule — UTPR) e o imposto complementar nacional qualificado mínimo – (qualified domestic minimum top-up tax — QDMTT). E que pressupõem que as entidades de um grupo calculem a taxa efetiva de imposto em cada país em que operem (jurisdição). Sempre que, numa jurisdição, o conjunto de entidades do grupo tenha uma taxa efetiva inferior a 15%, os Estados devem cobrar o imposto complementar até esse patamar, de acordo com uma ordem hierárquica.
A prioridade é dada ao Estado onde estão as afiliadas e das sucursais (fonte), o qual pode cobrar o QDMTT e ficar com a receita. Trata-se de um imposto complementar sobre os lucros excedentários de todas as entidades sujeitas a baixa tributação localizadas num determinado país. Ou seja, o QDMTT permite que um Estado com uma taxa efetiva abaixo de 15% não transfira a receita para o Estado da sociedade-mãe: “A diretiva permite aplicar um regime de QDMTT, opção adotada por Portugal no presente diploma, que cria o imposto complementar nacional qualificado português (ICNQ-PT). Trata-se de um imposto complementar sobre os lucros excedentários de todas as entidades constituintes sujeitas a baixa tributação localizadas em Portugal”, lê-se no diploma em consulta pública.
Se o Estado da fonte não cobrar o QDMTT, o país onde a última empresa-mãe está sediada cobra o diferencial, caso o conjunto de entidades pertencentes à multinacional e situadas em alguma outra jurisdição pague abaixo de 15%. Enquanto o QDMTT permite ao Estado da fonte de baixa tributação ficar com a receita e não transferi-la para o Estado exportador de capital, o IIR dá vantagem ao Estado exportador de capital, explica Ana Paula Dourado, professora catedrática de Direito Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
O sócio da área de Fiscal da Cuatrecasas, Pedro Vidal Matos, explica ao Observador através de uma metáfora: “Cada empresa é como um bago parte de um cacho de uvas que forma o Grupo Multinacional. Todos os anos cada bago tem de declarar o rendimento e os impostos locais e informar a casa-mãe, que tem de fazer as contas e reportar à sua autoridade fiscal”, o que implica um aumento das obrigações declarativas.
Na União Europeia, o IIR e o QDMTT também se aplicam aos grupos domésticos, por razões de não discriminação.
Finalmente, caso o Estado da empresa-mãe não cumpra a tributação mínima, o Estado da afiliada deve aplicar a regra UTPR, ficando com o diferencial de imposto. Mas este é um caso para multinacionais em países terceiros. Quando se trate de multinacionais situadas na União Europeia, o UTPR não se aplica porque aí o IIR é obrigatório (o Estado da sociedade-mãe vai sempre cobrar o imposto e portanto não há lugar à cobrança subsidiária pelo Estado da afiliada). A opção é apenas entre o IIR e o QDMTT. O UTPR só se aplica num Estado da União Europeia se a sociedade-mãe estiver fora do bloco europeu e o Estado da sociedade-mãe aplicar uma taxa efetiva abaixo dos 15% e não aplicar o IIR.
O dinheiro vem todo para Portugal?
Não. Pois, como se viu na pergunta anterior, há casos em que é o Estado onde está a empresa-mãe que vai receber a diferença. Neste momento, segundo disse ao Observador fonte do Ministério das Finanças, é difícil quantificar quanto virá para Portugal. Em 2021, um relatório do Observatório Fiscal da União Europeia (UE), um organismo independente sobre fiscalidade comunitária, estimava para Portugal a possibilidade de um adicional de receitas de mais 100 milhões de euros.
Portugal poderia arrecadar 100 milhões de euros este ano com IRC mínimo de 15% às multinacionais
Mas como diz o Ministério das Finanças agora, “não dispomos ainda de uma estimativa fechada para a receita que irá ser gerada pelo regime”. Até porque, acrescenta, “a receita irá depender não apenas dos impostos pagos e dos lucros obtidos pelos grupos abrangidos, mas também daquelas que forem as opções que as diversas jurisdições a nível global fizerem quanto à adoção das regras modelo da OCDE”. Ou seja, não é fácil apurar por um lado quantos outros países aplicarão o regime QDMTT, ficando com o imposto nessa jurisdição e não passando para o Estado da casa-mãe, por exemplo. “Não sabemos exatamente, ainda, que países vão adotar o QDMTT”, corrobora Ana Paula Dourado.
A nível global, as estimativas da OCDE apontam para receitas adicionais com impostos sobre lucros entre 155 e 192 mil milhões de dólares.
Como se aplica este regime à Zona Franca da Madeira?
A Zona Franca da Madeira permite que as empresas aí estabelecidas tenham uma taxa de imposto menor. E esta terá sido, mesmo, uma das razões para Portugal adotar o QDMTT. “Sempre que esta seja inferior a 15% (caso em que se considera estar em causa uma jurisdição de baixa tributação), os Estados ficam legitimados a liquidar um imposto complementar até ao referido limiar”, lê-se no diploma em consulta pública. O que significa que no caso das empresas na Zona Franca, que têm um imposto de 5%, o Estado pode aplicar o QDMTT para evitar transferir receita para o Estado da casa-mãe, mas para o cálculo da taxa efetiva mínima concorrem todas as empresas do grupo que estejam dentro da mesma jurisdição, ou seja, se um grupo tiver uma entidade na Zona Franca e outra no Continente, é a taxa conjunta que conta.
Ainda assim, Ana Paula Dourado considera que, em termos de imposto final a pagar, “o QDMTT é sempre mais favorável do que subir-se a taxa para os 15%”, já que a base é diferente. Qual é a vantagem então de existir a Zona Franca? Ana Paula Dourado explica: por um lado, pode a multinacional operar não só na Zona Franca como no restante território e com isso contrabalança e consegue uma taxa efetiva em Portugal mais baixa; a outra razão tem a ver com as exclusões previstas, que compreendem os mínimos, os ativos tangíveis e trabalhadores e o transporte marítimo internacional. A Madeira é uma praça fiscalmente favorável para o transporte marítimo.
Para Ana Paula Dourado, a adoção do QDMTT justifica-se também quando há empresas com benefícios fiscais e quando há uma diferença entre lucros contabilísticos e lucros fiscais. E assim Portugal salvaguarda alguma receita de imposto, já que se não adotasse este regime o imposto poderia “fugir” para o estado da empresa-mãe (IIR).
Que impostos é que são considerados para aferir a taxa de 15%?
O imposto sobre rendimentos de pessoas coletivas (cuja taxa em Portugal está nos 21%) concorre para a determinação do apuramento da taxa mínima de 15%. Mas também integrará esse cálculo as derramas (estadual e municipal) que subsistem em Portugal e que o Governo já fez saber que não haverá margem orçamental para mexer nessas componentes.
Mas há duas áreas cinzentas, no entender de Ana Paula Dourado. Uma é a referente às contribuições extraordinárias que a banca, a energia, as farmacêuticas pagam que “provavelmente não irão concorrer” para o apuramento da taxa, já que “provavelmente é mais seguro deixar-se para clarificação em ofício circular da Autoridade Tributária para poder ser estudado” e não atrasar mais a transposição da diretiva. Outra zona cinzenta é a das tributações autónomas em que também se deverá deixar para ofício do Fisco, mas para Ana Paula Dourado não deveriam estar incluídas uma vez que são impostos sobre despesas e não sobre rendimento.
Quando começa a ser aplicada a taxa mínima em Portugal?
A primeira liquidação e pagamento ocorrerá em 2026, segundo o diploma em discussão pública. Até junho desse ano as empresas têm de submeter uma declaração referente a este ano (2024), passando depois o prazo para 15 meses, ou seja, até março. O que significa que em 2027 será respeito ao exercício de 2025.
As empresas que não entreguem ao Fisco as declarações referentes ao IRC mínimo no prazo estão sujeitas a coimas entre os cinco mil e os 100 mil euros. Havendo ainda uma moldura contraordenacional para omissões ou inexatidões — coimas entre 500 e 23.500 euros. Mas há um período de “perdão”. As empresas só enfrentam penalizações a partir do exercício que comece a 1 de julho de 2028, ou seja, em 2029 referente às declarações de 2027.
Como se conjuga este regime com a proposta de descer o IRC?
São duas temáticas distintas. Este novo regime é a fixação de uma taxa mínima. A proposta do Governo, cujo pedido de autorização legislativo já deu entrada no Parlamento, prevê que a redução da taxa geral que está atualmente nos 21%. A proposta traça um caminho até 2027 de descida de dois pontos percentuais por ano: ou seja de 21% passará para 19%; de 19% para 17% e, em 2027, de 17% para 15%, numa descida global que o Governo estima que terá um custo orçamental de 1.500 milhões de euros (500 milhões por ano ou 250 milhões por cada ponto percentual cortado).
Para as pequena ou média empresa ou empresa de pequena-média capitalização (small mid cap) a taxa de 17% será reduzida para 15% (em 2025) para os primeiros 50 mil euros de matéria coletável, passando no ano seguinte para 13% no ano seguinte e para 12,5% em 2027.
Estas são taxas que têm uma base tributária diferente da taxa mínima de 15%.
Pedro Vidal Matos acredita que “os 15% passarão, no entanto, a ser a bandeira com que os estados que querem atrair empresas vão acenar”, sendo, assim, “normal”, que se caminhe para uma taxa de IRC de 15%. Para este advogado também é provável que “se o regime da taxa mínima começar a funcionar bem, a União Europeia baixe progressivamente o patamar de faturação global, atualmente fixado nos 750 milhões de euros, para que o regime passe a abranger cada vez mais empresas”.